Lia Cupertino Duarte Albino - Faculdades Integradas
de Ourinhos – FIO
INTRODUÇÃO
Partindo da constatação de que a comicidade
é um dos traços caracterizadores da produção
literária de Monteiro Lobato, este trabalho objetiva demonstrar
o processo de construção do humor nas narrativas infantis
produzidas pelo autor, tomando como objeto de análise a criação
das personagens presentes em seu universo ficcional. Visto que, ao incorporar
esse elemento aos seus textos, Lobato propõe uma reinvenção
da linguagem literária, este estudo prioriza também a análise
da “solução lingüística adequada”
encontrada pelo autor para, por meio do humor, projetar no texto literário
as contradições da experiência humana.
O processo de construção do humor nas narrativas infantis
lobatianas: personagens
Humor é a maneira imprevisível, certa e
filosófica de ver as coisas . Essa foi a definição
dada por Lobato para um fenômeno que, há muito objeto de
preocupação de inúmeros pensadores, também
o instigava:
Existe toda uma biblioteca sobre o humor, onde cem autores
tentam defini-lo, como há também inúmeras definições
de arte e mil remédios para a tosse. Essa abundância é
comprometedora. Prova que humor e arte são indefiníveis
e a tosse incurável. Mas como é vagamente curável
a causa presuntiva das tosses, também podemos vagamente definir
as causas ou circunstâncias produtoras do humor e da arte.
Embora sucinta, essa citação possibilita a apreensão
de inúmeros conceitos que fundamentam a concepção
e produção da literatura de Monteiro Lobato, fortemente
marcadas pela presença do elemento humorístico. Num primeiro
momento, chama atenção a associação feita
entre o humor e a arte, o que revela que longe de ser um artifício
gerado pela gratuidade, o humor é concebido em sua obra como elemento
estético , uma opção consciente, uma estratégia
discursiva que, entre outras coisas, propunha a renovação
de uma literatura caracterizada pelo tom grave e solene.
Isso fica evidente quando o autor comenta a necessidade da caricatura
– recurso marcadamente humorístico – nas produções
jornalísticas da época. Segundo o autor, a caricatura, à
qual ele associa também a ironia e o chiste, é “um
gênero de primeira necessidade e indispensável ao fígado
da nação”, acrescentando que “o rirmos uns dos
outros é da higiene humana” . Indo mais além, poderíamos
dizer que, para o autor, o humor, enquanto elemento estético, resultado
de uma criação simbólica por meio do signo visual
ou pelo uso do código verbal, adquire a mesma função
humanizadora – que corresponde à necessidade universal de
ficção e fantasia da qual carece o ser humano – atribuída
à literatura por Antonio Candido .
Outra associação – dessa vez, mais insólita
– proposta por Lobato na citação transcrita refere-se
à aproximação entre humor e tosse. Aparentemente
incongruente, essa aproximação acaba atendendo a definição
de humor proposta pelo próprio autor, constituindo-se numa maneira,
ao mesmo tempo, imprevisível, certa e filosófica de ver
as coisas. É imprevisível, porque não há,
aparentemente, nenhuma relação lógica entre os dois
elementos confrontados, já que só conseguimos prever o que
é lógico; é certa, porque numa análise mais
profunda, percebe-se que o humor e a tosse são produtores do mesmo
efeito. No primeiro caso, produz-se o riso que, em última instância,
se relaciona ao que se observa na reação física provocada
pela tosse: expiração brusca e barulhenta. E é também
filosófica na aproximação simples e pragmática
que estabelece.
Esse caráter imprevisível, certo e filosófico atribuído
ao humor explica a grande importância dada pelo autor a esse fenômeno
não só no que diz respeito ao nível do enunciado,
mas também no nível da enunciação, ou seja,
na atualização que faz da língua no contexto comunicativo,
utilizando o humor como elemento constitutivo do processo de construção
da narrativa, como exemplificado pelos trechos abaixo que, apresentados
em ordem de publicação, possibilitam a verificação
de como a ênfase na utilização desse elemento é
uma característica recorrente nas produções do autor:
Os únicos [livros] que não fazem mal são
os que têm diálogo e figuras engraçadas.
Mas o Dr. Livingstone veio ao mundo com um defeito: era
sábio demais. Não ria, não brincava – sempre
pensando, pensando. Tão sério e grave que tia Nastácia
não escondia o medo que tinha dele.
Emília fez focinho de pouco caso.
_ Sua alma, sua palma. Quem ficar zangado com o que eu digo, só
prova que não tem “senso de humor...”
Emília nunca vinha espiar na luneta, porque a sua
preocupação era ouvir a conversa dos outros para fazer piadas.
(...) há invençõezinhas engraçadas
nessa história ... está muito interessante ... Acho que
tia Nastácia só deve contar histórias assim.
Obedecendo aos três preceitos (ser imprevisível, certo e
filosófico) por ele mesmo mencionados, o humor na obra infantil
de Monteiro Lobato se manifesta sob várias formas: nas falas do
narrador, na linguagem, na exploração dos aspectos semânticos
das palavras, no nonsense, na paródia, nas comparações
inusitadas, na ironia, no cômico de situação, na inversão
/ subversão da ordem, no grotesco e na construção
das personagens, procedimentos entre os quais, escolhemos a construção
das personagens como objeto de estudo neste trabalho.
Personagens
Em virtude da importância do papel desempenhado
por Monteiro Lobato no processo de formação da literatura
infantil brasileira, o estudo das pessoas dramáticas constituídas
pelas personagens que figuram em sua obra tem sido constante nos textos
que procuram perscrutar o universo ficcional criado pelo autor. Assim,
tomando como base as personagens nucleares desse universo, quais sejam,
Dona Benta, Tia Nastácia, Pedrinho, Narizinho, Emília, Visconde,
Quindim, Conselheiro e Marquês de Rabicó, é comum
encontrarmos nesses estudos caracterizações bem definidas
desses seres. Nelly Novaes Coelho , por exemplo, considera as personagens
do Sítio – à exceção de Emília
– como arquétipos: Dona Benta é a avó ideal;
Tia Nastácia enquanto provedora de alimentos e de apoio logístico
doméstico é a serviçal eficiente, afetuosa e humilde;
Pedrinho, de certa forma, o homem da casa e Narizinho são as crianças
sadias, sem problemas; Visconde, representante do gênero adulto
masculino é símbolo da sabedoria intelectual; Quindim, exercendo
a função de protetor dos habitantes do Sítio, representa
a força bruta; Conselheiro, que em alguns casos age como primeiro-ministro,
auxiliando na tomada de decisões, é símbolo do bom
senso; e Marquês de Rabicó, ser irresponsável e instintivo,
representa a irracionalidade animal da gula .
Além da criação dessas personagens destaca-se também
em Lobato a junção proposta por ele de folclores diversos,
de épocas e culturas diferentes, reunindo no Sítio de Dona
Benta o que a cultura européia ocidental produziu de mais expressivo
ao mesmo tempo em que procurou fazer a síntese desses seres com
elementos ameríndios, africanos e especificamente ibéricos.
Desse modo, propondo uma intercomunicação entre mitos com
raízes e troncos que se perdem no passado, o autor demonstra seu
caráter universal revelando a individualidade de nossa cultura
dentro da generalidade da cultura mundial.
Um dos recursos utilizados por Lobato para proceder a essa junção
foi a anulação de fronteiras entre o real e o maravilhoso,
uma vez que suas histórias não decorrem em nenhum reino
fora do tempo e espaço históricos, mas situam-se no espaço
familiar do Sítio do Picapau Amarelo. A esse ambiente conhecido
e comum são sempre introduzidos elementos estranhos pertencentes
ao reino do imaginário, do sonho ou da fantasia.
Para garantir a naturalidade dessa inclusão, ou seja, para tornar
congruente a junção de seres pertencentes a realidades díspares,
o autor utiliza técnicas de construção que, ressaltando
o que a situação apresentada possui de cômico, tornam
assimiláveis as contradições. Entre tais técnicas,
a construção de personagens ganha um lugar de destaque.
Nesse sentido, ao estudar os mecanismos de construção do
humor nas narrativas infantis lobatianas, um aspecto nos chama atenção:
tomadas em conjunto, que personagens se sobressaem no processo de construção
do humor empreendido pelo autor em suas obras?
Para responder a essa questão, convém retomar a análise
realizada dos recursos cômicos empregados por Monteiro Lobato em
suas narrativas destinadas ao público jovem . Para ilustrar a utilização
desses procedimentos de configuração humorística,
foram coletados aproximadamente 250 episódios que se caracterizam
pela presença de elementos ligados à comicidade; desses,
191 têm Emília como personagem deflagradora do humor; dos
aproximadamente 60 episódios restantes, 16, embora não sejam
levados a efeito pela boneca, têm-na como alvo das tiradas cômicas
e utiliza técnicas que lhe são peculiares. Isso nos permite
a afirmação de que o humor lobatiano é o humor de
Emília.
Centro do sistema planetário do Sítio, Emília é
a única personagem que evolui dentro desse universo. Criada por
tia Nastácia como uma boneca de pano comum, sem vida própria
e muda, a boneca passa por um processo de “evolução
gental” que, embora possa ser observado na versão definitiva
de Reinações de Narizinho publicada em 1931, torna-se mais
expressivo se cotejarmos seu desenvolvimento relacionando as versões
anteriores da obra. Nesse sentido, em A menina do Narizinho Arrebitado
(1920), Emília, reles boneca de pano, subitamente adquire vida
no Reino das Águas Claras e surge armada de um espeto, para furar
os olhos do Escorpião Negro que ameaçava matar Narizinho
e o Príncipe Escamado. Na edição de 1921, na segunda
parte da narrativa acrescentada por Lobato, Emília já é
mostrada falando. Seu processo de transformação de bruxa
de pano em boneca falante por meio das “pílulas” do
Doutor Caramujo somente aparece na versão de 1931, quando surge
o texto definitivo de Reinações de Narizinho. A partir daí
sua evolução foi ganhando dimensões cada vez mais
complexas com a afirmação de sua personalidade livre e voluntariosa
até se transformar em verdadeiro alter-ego do autor , conforme
reconhecido pelo próprio Lobato:
(...) [ela] começou como uma feia boneca de pano,
dessas que nas quitandas do interior custavam 220 réis. Mas rapidamente
foi evoluindo e adquirindo tanta independência que (...) quando
lhe perguntaram: ‘mas que você é, afinal de contas,
Emília?’ ela respondeu de queixinho empinado: sou a Independência
ou Morte! E é. Tão independente que nem eu, seu pai, consigo
dominá-la. Quando escrevo um desses livros, ela me entra nos dois
dedos que batem as teclas e diz o que quer, não o que eu quero.
(...) Fez de mim um “aparelho”, como se diz em linguagem espírita.
(...) Emília que hoje me governa, em vez de ser por mim governada.
Personagem-chave do universo lobatiano, sendo a única segundo Nelly
Novaes Coelho a viver em tensão dialética com as demais
e a única a sofrer transformações em sua personalidade
marcada também pelo caráter contraditório, Emília
é a personagem cujas palavras, gestos e ações são
o fio condutor das narrativas infantis produzidas por Lobato, definindo,
em parte, seu conteúdo ideológico.
Caracterizada pela dualidade, apresentando atitudes, por um lado, positivas,
como sua vontade de domínio e exacerbado individualismo que podem
levar a grandes realizações e ao progresso social e, por
outro, negativas como o seu consciente despotismo que pode resvalar para
a exploração do homem pelo homem, Emília é
a personagem que mais reflete a personalidade de seu criador. É
a válvula de escape de sua rebeldia, das suas irreverências,
dos seus sentimentos mais violentos e do seu humorismo maroto e fantasista
. Isso pode ser observado nos fragmentos apresentados a seguir, selecionados
entre os inúmeros que ocorrem na obra infantil lobatinana, que
demonstram como essa personagem, utilizando como recurso associações
inusitadas baseadas na inversão / subversão da ordem, constrói
lingüisticamente o humor.
Em Reinações de Narizinho, um dos episódios que se
destaca pela apresentação de uma situação
cômica tendo Emília como protagonista ocorre por ocasião
do concurso realizado por Pedrinho para escolher o desenho que serviria
de modelo para a confecção do boneco, “irmão
de Pinócchio”, feito de pau vivente. Como o processo de votação
não obteve sucesso, pois cada desenhista escolhia a sua própria
criação, Pedrinho resolveu fazer um sorteio, descrito na
narrativa da seguinte maneira:
_ Com votação não vai – disse
ele. O melhor é tirar a sorte.
Todos concordaram. Pedrinho escreveu o nome de cada concorrente num pedaço
de papel, enrolou-os e botou-os no seu chapéu, pedindo a Dona Benta,
como mais velha, que tirasse um. Emília, porém, protestou,
erguendo a mão esquerda no ar e escondendo a direita no bolsinho
da saia.
_ Quem vai tirar a sorte sou eu! Dona Benta não sabe!_ Não
é você, não! É vovó! – determinou
Pedrinho.
_ Sou eu! Sou eu! – insistiu a boneca.
_ Já disse que é vovó. Não teime!
_ Sou eu! Sou eu! – continuou a boneca, batendo o pé sempre
de mão no bolso.
Narizinho desconfiou da insistência daquela mão no bolso.
_ Deixe ver a mão, Emília.
_ Não deixo! – respondeu a boneca, corando até a raiz
dos cabelos.
Narizinho agarrou-a e, tirando-lhe a mão do bolso à força,
viu que havia nela um papelzinho do mesmo tamanho e enrolado do mesmo
jeito dos que estavam no chapéu.
Foi um escândalo. Todos criticaram, achando muito feio aquele procedimento;
depois caíram na gargalhada, ao lerem o que estava no papelzinho.
Emília em vez de escrever o seu nome, havia escrito, na sua letrinha
torta de boneca de pano – O MEU. Por isso insistia tanto em tirar
a sorte. Já estava com o nome do vencedor na mão...
Embora a teimosia de Emília seja uma característica da boneca
já conhecida de todos, é por meio dela que o suspense desse
episódio vai sendo criado até chegar-se a um desfecho cômico.
Sempre admirada por sua esperteza, Emília surpreende os espectadores
da cena até no exercício dessa virtude que, levada aqui
ao extremo, torna o episódio caricato. Se sua insistência
em ser a pessoa responsável pelo sorteio é compreensível,
tendo em vista o fato de já ser esperado algum tipo de trapaça
em suas ações, o que surpreende, causando o estranhamento
e provocando o riso é essa boneca tão esperta ter cometido
um deslize tão fácil de ser descoberto quando, ao invés
de escrever seu próprio nome no papel, o que tornaria a suspeita
difícil de ser comprovada, escreve a expressão “o
meu”, denunciando sua fraude.
Exemplo especialmente interessante da criação do tom humorístico
como resultado de associações inusitadas pode ser observado
também nas colocações de Emília em História
do mundo para as crianças, quando Dona Benta fala a respeito da
destruição de Pompéia pelo vulcão Vesúvio:
No tempo de Tito aconteceu um desastre célebre.
Com certeza vocês sabem o que é Vesúvio...
_ Sei! – gritou Emília, que acabava de entrar da cozinha
onde estivera atropelando tia Nastácia. Vesúvio quer dizer:
Tu vês, mas o u viu.
Para que o leitor entenda o efeito humorístico
dessa construção exigem-se dele, conforme propõe
Sírio Possenti , as mesmas operações epilingüísticas
efetuadas pela personagem, quais sejam, a segmentação da
palavra “Vesúvio” em “Vês”, “U”
e “viu”; a hipótese de que “U” seja uma
pessoa ou um ente personificado qualquer dotado da capacidade de visão;
“Vês” seja a segunda pessoa do singular do Presente
do Indicativo do verbo “ver” e “vio” (cuja pronúncia
é /viu/, por ser uma palavra formada por um ditongo decrescente)
seja a terceira pessoa do singular do Pretérito Perfeito do Indicativo
desse mesmo verbo. Daí resulta a construção cujo
sentido pretendido é “Hoje, tu vês, ontem foi U que
viu” ou, como proposto pela personagem, “Vês, U viu”
(“Tu vês, mas o u já viu”). É a percepção
da criatividade demonstrada pela boneca com sua construção
que torna o episódio engraçado.
Talvez o mais saboroso de todos os exemplos até agora citados seja
o que se segue. Nele, Emília, por meio de um elaborado jogo de
raciocínio do qual fazem parte elementos lógicos, semânticos
e morfológicos, discute a validade do nome “Corão”,
atribuído ao livro sagrado que contém o código religioso,
moral e político dos muçulmanos ou maometanos. Isso ocorre
no momento em que Dona Benta conta a história de Maomé e
de como esse fundou o Islamismo:
Maomé, que sabia fazer as coisas, de quando em
quando anunciava ter recebido uma mensagem direta de Alá, do mesmo
modo que Moisés afirmou ter recebido ordens de Jeová no
topo do Sinai. Nessas mensagens Alá lhe dava ordens para fazer
isto e aquilo, ou esclarecia pontos da nova religião. Reunidas
mais tarde em livro, formaram o famoso Corão, que é a bíblia
dos maometanos.
_ Era esse livro escrito em pergaminho? – perguntou Emília.
_ Sim – respondeu Dona Benta, sem saber onde ela queria chegar.
_ E pergaminho não era um “courinho” de carneiro, muito
fino?
_ Sim. E que tem isso?
_ Então... então... disse a terrível atrapalhadeira,
então como é que esse livro se chamava Corão?
Nesse fragmento, o humor se constrói pela relação
feita por Emília entre os vocábulos “Corão”,
livro sagrado dos maometanos, e “courão”, palavra que,
segundo a lógica emiliana, corresponde ao aumentativo de “couro”.
Por meio de um silogismo sofístico, a personagem elabora uma argumentação
capciosa baseada em um raciocínio verossímil, porém,
inverídico, concebida com a intenção de induzir ao
erro. Tal raciocínio, que aparece no texto de forma subentendida,
pode ser descrito da seguinte forma: Todo pergaminho é um courinho;
o Corão é um pergaminho; logo, o Corão é um
courinho. Explicitando: todo pergaminho, escrito ou documento feito com
pele de caprino ou ovino, é um courinho, pelo fato de a pele que
lhe serve de material ter uma consistência muito fina, permitindo
a escrita. Como o Corão, livro sagrado, é um pergaminho,
documento escrito em couro fino ou courinho; o Corão é um
courinho. Tomando por base a síntese desse raciocínio, Emília
procura demonstrar a incoerência nela presente, afirmando que um
“co(u)rão” não pode ser ao mesmo tempo um “courinho”.
Embora simule um acordo com as regras lógicas, esse argumento apresenta,
na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente
enganosa: a correspondência entre “Corão” e “couro”.
Estruturas que mantêm entre si semelhanças apenas no nível
fonológico, essas duas palavras pertencem a campos semânticos
completamente diferentes, fato que é propositalmente desconsiderado
pela personagem para validar seu raciocínio. Desse modo, ao apresentar
uma argumentação baseada num elaborado processo de raciocínio,
mas que ao mesmo tempo mostra ser inconsistente, Emília aproxima
dois universos que se excluem, gerando o estranhamento e provocando o
humor.
Embora esse espírito subversor que caracteriza o discurso humorístico
de Emília seja comumente apontado como o traço que a aproxima
de seu criador, do ponto de vista da construção narrativa
é importante ressaltar que, se em nome da verossimilhança,
a personagem enquanto ser fictício deva manter certas relações
com a realidade – assim como ocorre com Emília em relação
ao seu criador –, esse aproveitamento do real não pode ser
integral ou absoluto. Nesse sentido, são apropriadas as palavras
de Antonio Candido ao afirmar que quando um autor toma um modelo na realidade,
sempre lhe acrescenta, no plano psicológico a sua incógnita
pessoal, por meio da qual procura revelar a incógnita da pessoa
copiada. Desse modo, é obrigado a construir uma explicação
que não corresponda ao mistério da pessoa viva, mas que
é uma interpretação desse mistério .
Não sendo, portanto, simples projeção das aspirações
de seu criador ou uma transposição fiel do real, o princípio
que rege a construção da personagem é o da modificação
criadora, princípio que se encontra intimamente ligado à
função que essa personagem exerce na estrutura do romance.
Qual seria, então, o papel de Emília no universo lobatiano?
Manuel Bandeira nos ajuda a esclarecê-lo:
(...) a personagem mais divertida desse mundozinho, a
de mais vida, a que está sempre saltando das páginas do
livro, é Emília. As suas espevitices, os seus palpites,
a sua ciganagem fazem dela o centro da ação e do interesse
toda vez que aparece. No entanto Emília é ... uma boneca
– a boneca de Narizinho.
Também procedentes são as palavras do crítico
Alfredo Bosi a respeito da boneca:
A figura de Emília, sobretudo, é das mais subversivas da
literatura brasileira. Com ela há uma subversão de valores
muito profunda, não só de valores da racionalidade, mas
até de valores da natureza (...) a figura de Emília é
realmente o inconsciente de Lobato às soltas, desmanchando elementos
da cultura, elementos da razão e elementos da própria natureza.
Quer seja figura central, subversiva, reprodução
fiel da vivência real do autor ou resultado de sua criação
estética manifestada por meio da organização interna
da obra, a materialidade dessa personagem só pode ser apreendida
por meio de um jogo de linguagem que torne tangível sua presença
e sensíveis seus movimentos. Nesse sentido, se o texto é
o produto final desse processo de construção, ele é
o único dado concreto capaz de fornecer os elementos utilizados
pelo escritor para dar consistência a sua criação.
Sendo assim, é somente por meio de sua análise que se pode
detectar os procedimentos encontrados e utilizados pelo escritor para
dar forma, para caracterizar as personagens, sejam elas encaradas como
pura construção lingüística ou espelho do ser
humano .
A respeito da importância da palavra, seja no processo de criação
de verossimilhança ou no processo de convencionalização,
isto é, no trabalho de seleção dos traços
que comporão a personagem, dada a impossibilidade de descrever
a totalidade de uma existência, Antonio Candido afirma:
Se as coisas impossíveis podem ter mais efeito
de veracidade que o material bruto da observação ou do testemunho,
é porque a personagem é, basicamente, uma composição
verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de realidade.
Portanto, está sujeita, antes de mais nada, às leis de composição
das palavras, à sua expansão em imagens, à sua articulação
em sistemas expressivos coerentes, que permitem estabelecer uma estrutura
novelística.
Partindo do pressuposto de que Emília se caracteriza
por sua configuração dialética, subversiva e transgressora,
o discurso utilizado por seu criador para convencionalizá-la apresenta
características semelhantes: trata-se do discurso humorístico.
A partir desse discurso, que tem como porta-voz a própria boneca
– como se pode observar pelo grande número de episódios
humorísticos (mais de duzentos) de que ela participa como figura
central ou secundária – cria-se a língua emiliana
que, servindo de fio condutor para todas as narrativas, faz com que todos
os elementos do texto se ajustem entre si de maneira ordenada, contribuindo
para a coerência interna da obra.
Entre os fatores que cooperam para esse efeito está a figura do
narrador quase ausente, possibilitando por meio do diálogo vivo
entre as personagens o aflorar de um tipo de discurso que é também,
muitas vezes, apropriado por ele. Soma-se a isso o fato de que quando
outras personagens que não a boneca deflagram o humor, a língua
utilizada para a construção da comicidade é também
a língua emiliana marcada pelo tom lúdico-humorístico
presente nos neologismos, nas ironias, nas paródias, no uso do
nonsense etc, elementos que por si sós já revelam o caráter
dialético de Emília, personagem responsável pela
eclosão desses procedimentos.
Prova ainda da relevância de Emília na construção
do humor nos textos de Lobato são as personagens Visconde e Marquês
de Rabicó que também podem ser apontadas como cômicas
no universo lobatiano, mas que só adquirem essa configuração
a partir de sua relação com a boneca. No caso de Rabicó,
por exemplo, temos uma personagem caricata que se define por apenas dois
traços: a gula e o medo. Ridicularizado por manifestar essas características,
representa, muitas vezes, o papel de bufão sendo uma personagem
sem nenhuma densidade psicológica. Destaca-se também em
sua caracterização o caráter cômico do antropônimo
com que é nomeado designativo que propõe a junção
de dois universos completamente dissociados entre si: o nobiliário,
como sugere o título “Marquês”, e o torpe e grotesco,
presente na acepção do nome “Rabicó”.
Tais características o contrastam a Emília, sua esposa,
a quem, aliás, presta uma obediência servil.
Quanto a Visconde, embora tenha com Emília um tronco comum visto
terem sido os dois obras das mãos de tia Nastácia, seu caráter
cômico só se revela pelo contraste que sua gravidade estabelece
em relação à personalidade irreverente de Emília.
Nesse sentido, o sabugo só vai se “redimindo” nas últimas
narrativas, quando se torna, por exemplo, mais “simpático”
e um “gigante” de grande importância em A chave do tamanho
ou quando é acometido de uma loucura “heróica”
que o faz até dançar rumba em Os doze trabalhos de Hércules.
Em outras palavras, Visconde só ganha dimensão quando sua
configuração se aproxima da caracterização
de Emília.
Como se pode observar, responsável pelo jogo de
forças opostas ou convergentes que estão presentes nas narrativas
infantis de Lobato, Emília é a personagem que, direta ou
indiretamente, dá impulso às ações, representando
a força temática das obras do autor. Utilizando procedimentos
que lhe são peculiares, baseados, principalmente, no alogismo e
na transposição de sentidos, Emília cria um discurso
próprio – a língua emiliana – que acaba sendo
incorporada por todas as demais personagens na construção
do humor ao longo das narrativas.
Propulsora do discurso humorístico tão caro a Lobato, suas
“características malasarteanas” a colocam entre as
personagens mais irreverentes e críticas da literatura brasileira.
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