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  ENTRE A CRUZ E A ESPADA: O PAPEL DA REVISTA A NOVA ÉPOCA NA CONSTITUIÇÃO DA ESCOLA REPUBLICANA EM MATO GROSSO

Lázara Nanci de Barros Amâncio - Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT

Introdução

Nesta comunicação pretendo apresentar um pequeno recorte de uma pesquisa (Amâncio, 2000) de abordagem histórica (de acordo com Vieira, Peixoto e Khoury, 1995) mais ampla no qual pretendo refletir sobre alguns aspectos do embate estabelecido entre os professores paulistas Leowigildo Martins de Mello e Gustavo Kuhlmann e os representantes da Igreja Católica em Cuiabá-MT, mediante artigos produzidos, especialmente, nos jornais da segunda década do século XX. Com a finalidade de permitir uma compreensão maior do interesse por essa temática procurarei inicialmente situar o trabalho desses professores na organização do ensino em Mato Grosso, apresentando alguns dados que possibilitem conhecer um pouco esses sujeitos, evidenciando o papel que exerceram na reforma da instrução pública no ano de 1910. Destaco, nesta oportunidade, um dos mecanismos a que recorreram na divulgação de uma escola moderna, de caráter republicano – a imprensa escrita cuiabana.
Esses professores foram enviados para Mato Grosso, em missão educativa, no ano de 1910 para implantar uma reforma do ensino a exemplo do que ocorrera no estado de São Paulo, no final do século XIX. Contratados pelo presidente do estado de Mato Grosso, Pedro Celestino, para efetivar a reorganização da instrução pública, esses professores, naturais do estado de São Paulo , eram recém-formados pela Escola Normal de São Paulo, diplomados em 1909. Colocados pelo governo de São Paulo à disposição do governo de Mato Grosso, em 1º de junho de 1910, os professores normalistas – como eram recorrentemente intitulados – chegaram em Cuiabá no dia 1º de agosto desse mesmo ano, (Mello 1911, p. 1). Nessa cidade, Gustavo Kuhlmann assumiu a direção do Grupo Escolar do 2º Districto e Leowigildo Martins de Mello a direção do Grupo Escolar do 1º Districto e da Escola Normal do estado de Mato Grosso; posteriormente o Grupo do 1º Districto recebe o nome de Escola Modelo Annexa à Escola Normal.
Os professores Leowigildo e Gustavo, fruto de uma geração produtiva e comprometida com os princípios republicanos, estavam “afinados” com a metodologia propagada pela Escola Normal de São Paulo e com a bibliografia pedagógica publicada nesse período. A formação realizada no âmbito de uma concepção científico-experimental haurida na Escola Normal da capital paulista, baseada em uma pedagogia moderna visava à preparação de um professor irradiador de novas idéias sobre a escola primária, a partir especialmente da divulgação dos novos métodos de ensino empregados em São Paulo pela Escola Normal, pela Escola Modelo e pelos inúmeros grupos escolares espalhados pelo estado.
Assim, entende-se que a compreensão de algumas medidas adotadas no ensino primário como as regras de funcionamento dos grupos escolares e da Escola Normal do estado de Mato Grosso, a definição e implantação de métodos de ensino de leitura usados nas primeiras décadas do século XX, a escolha de cartilhas e livros usados no início do século passado depende, entre outros fatores e, em grande parte, da compreensão do papel importante que esses normalistas desempenharam, enquanto autoridades da instrução pública mato-grossense, ainda que não tenham ocupado cargos administrativos de maior evidência como o de Diretor da Instrução Pública, por exemplo.
Em Cuiabá os normalistas fixaram residência, constituíram família com mulheres oriundas de famílias cuiabanas tradicionais e criaram raízes. Tudo indica, porém, que foram inúmeras as dificuldades com que se depararam esses professores paulistas, especialmente nos primeiros anos de sua inserção na vida social e política da capital mato-grossense. Dificuldades que, diga-se de passagem, extrapolavam o âmbito das questões puramente pedagógicas.
Leowigildo Martins de Mello dirigiu a Escola Normal do estado de Mato Grosso e a Escola Modelo Anexa, até 1916, quando passou a se ocupar da advocacia. Foi advogado provisionado exercendo interinamente o cargo de Promotor da Justiça de Cuiabá. Chegou a ocupar a Cadeira n. 05 do Centro Mato-grossense de Letras, atualmente n. 14, da Academia Mato-grossense de Letras (AML) . Gustavo Kuhlmann, além de diretor do Grupo Escolar do 2º Distrito, escrevia e publicava suas “Conferências Pedagógicas” na Revista A Nova Epoca, da qual parece ter sido o fundador e diretor, em 1912. Publicou um livro de poesias aprovado em 1915, pela Diretoria Geral da Instrução Pública do estado de Mato Grosso para ser adotado nas escolas primárias. Depois desses normalistas responsáveis pela implantação da reforma da instrução pública mato-grossense, outros professores paulistas foram convidados para darem continuidade à reforma assumindo a administração de novos grupos escolares (criados de acordo com a lei 580/1911), garantindo assim que a reforma da instrução pública se estendesse para o interior do estado.

A missão dos professores paulistas em Mato Grosso

A ida de São Paulo para Mato Grosso da primeira dupla de professores e também de outros normalistas deve ser entendida como parte de um fenômeno mais amplo, ocorrido na Escola Normal de São Paulo, considerada, desde a sua reforma em 1890, como pólo irradiador de um novo ideário pedagógico de alcance rápido para combater o analfabetismo e a ignorância (Tanuri, 1979; Monarcha, 1994; Mortatti, 2000; Souza,1996 e 1998). A divulgação dos sucessos da Escola Normal paulista levou muitos normalistas a ocuparem cargos de liderança na administração pública escolar do estado de São Paulo; muitos outros ainda foram comissionados por governos de vários estados brasileiros . Sobre o assunto Silveira (1917) comenta:

Não são poucos os professores primarios do Estado de São Paulo que teem ido a outras regiões da Republica para organizarem escolas e deixarem-nas funccionando de accôrdo com o que a experiencia adquirida há indicado como o mais viavel, entre nós, em materia de ensino propriamente e nas questões de administração escolar. Várias teem sido, pois, as commissões desempenhadas por professores sahidos alguns da Escola Normal Secundaria de São Paulo, outros das antigas escolas. (SILVEIRA, 1917, p. 240)

Com relação à missão de Leowigildo M. Mello e Gustavo F. Kuhlmann no Mato Grosso, Silveira afirmava (depois de seis anos!) que não tinha notícias do empreendimento desses normalistas, o que permite o levantamento de, pelo menos, duas hipóteses. Uma primeira é o fato de que parece não ter havido, em nível mais amplo, uma divulgação eficiente, pelos poderes públicos das atividades desenvolvidas pelos professores paulistas comissionados , uma outra é a que se refere à pouca importância conferida às notícias da educação em Mato Grosso naquele período.
A escola encontrada em Mato Grosso pelos normalistas paulistas era totalmente desorganizada – era tempo das Escolas Isoladas – do ponto de vista de uma racionalidade defendida por reformadores daquele período que, há mais de uma década, vinham se esforçando para implementar uma pedagogia de caráter científico e racional. Isso parece ter preocupado, mas não impediu que os normalistas iniciassem imediatamente a reorganização do ensino que incluía várias frentes de trabalho: a instalação dos grupos e da Escola Normal, a elaboração de horários e de Programas para os Grupos e para a Escola Normal, a elaboração de Regimentos para os Grupos e para a Escola Normal, a preparação pedagógica dos professores, o contato com a imprensa escrita local etc. Tudo nos moldes da escola paulista.
Os primeiros ofícios e relatórios dos professores ilustram bem a situação em que se encontrava a instrução pública no Mato Grosso e as dificuldades por eles enfrentadas para iniciarem a reforma do ensino para a qual foram convidados.
A entrada dos normalistas paulistas em cena permite levar a efeito a reforma proposta no Regulamento da Instrucção Primaria (1910) que nasceu, sem dúvida, do desejo de o estado de Mato Grosso ter um instrumento normativo adequado à nova realidade do ensino mato-grossense que buscava modernizar-se na área da instrução pública, mas sem recursos profissionais próprios que lhe dessem sustentação. Na Mensagem de 1911, na qual comenta aspectos positivos dessa reforma, à qual se devia dar continuidade, o presidente Pedro Celestino expõe a necessidade de estender para o interior do estado, com a ajuda de mais normalistas, os benefícios da reorganização do ensino que ficaram circunscritos à capital do estado:

Só a multiplicação dos nucleos de ensino moderno, racional e pratico, pelo interior do Estado, nos centros de população, póde apressar a libertação da ignorancia lastimavel em que vae crescendo a nossa infancia, os nossos successores de amanhã...o professorado primario dos municipios, quasi todo interino precisa ser quanto antes substituido, na sua grande maioria, por lhe faltarem preparo e conhecimentos pedagogicos...Essa situação critica apresenta dois alvitres à sua solução: contractar novos normalistas para provimento das escolas das cidades e villas do interior, ou aguardar que a Escola Normal, e mesmo os grupos, os forneçam d’aqui a alguns annos. A opção pelo primeiro alvitre resolve o assumpto com a presteza desejavel; a outra dilatará ainda por algum tempo essa justa aspiração.(CORRÊA, 1911, p. 14)

A sugestão de Pedro Celestino Corrêa de contratar mais normalistas é reforçada/endossada por Mello (1911), no Relatorio da Escola Normal do estado de Mato Grosso e Modelo Annexa, e acatada pelo sucessor do presidente, Joaquim A. da Costa Marques .
Como se viu, a questão da implantação da reforma da instrução primária no Mato Grosso em 1910 não pode, absolutamente, ser compreendida sem referência ao trabalho que tiveram os jovens professores paulistas na divulgação de uma escola moderna, ancorada numa concepção positivista, de um ensino considerado racional que pressupunha novos métodos de ensino e preparação dos professores mato-grossenses que se viram, certamente, frente a muitas novidades. O professor Leowegildo menciona seu esforço nessa preparação.
A necessidade de preparação dos professores, de subsidiá-los para a implantação em Mato Grosso, das modernas pedagogias utilizadas especialmente no estado de São Paulo, continua em foco nos anos que se seguem. Nos anos posteriores à reforma do ensino (tendo em vista inclusive que os grupos escolares só foram estendidos para o interior depois de implantados na capital do estado), encontra-se no Relatório do professor paulista Waldomiro de Campos, diretor do Grupo Escolar de Poconé, em 1914, referências aos “modernos pedagogistas norte-americanos” e ao uso que fez de palestras para os professores, como forma de “treinamento”. Tudo indica que essa estratégia também se constituía numa prática comum, à qual recorriam os diretores de outros grupos escolares, visando a orientar sobre a concretização do novo método de ensino.
A prática de conferências e palestras com a finalidade de divulgar e aprofundar princípios que embasavam os métodos considerados modernos e assumidos pela intelectualidade da época era comum na Escola Normal de São Paulo e nos grupos escolares desse estado (Monarcha, 1994, p.324). Muitas destas palestras e conferências eram divulgadas nos jornais da época e outras eram ainda publicadas na Revista de Ensino (SP) como as conferências de Ugo Pizzoli, de João Köpke, Carlos Escobar, apenas para citar alguns nomes de ampla repercussão entre o professorado paulista.
Essa forma de garantir a difusão de orientações pedagógicas de interesse de uma escola formadora de professores foi, sem dúvida, tentada pelos normalistas que vieram para o Mato Grosso com a missão de organizar o ensino e que conheciam o uso desses recursos, de caráter bem simples, embora se constituíssem em procedimentos aplicáveis apenas à realidade da capital mato-grossense; o interior do estado, obviamente, pelas condições da época, não poderia ser abrangido.

Os normalistas paulistas e a imprensa cuiabana: A Nova Época

Na tentativa de divulgar as ações empreendidas em favor da instrução pública e no esforço de subsidiar os professores no conhecimento das bases da “pedagogia moderna”, uma estratégia pedagógica à qual se recorreu foi a publicação de uma revista pedagógica, conforme proposta do Conselho Superior de Instrução Pública de Mato Grosso , em reunião do dia 10 de fevereiro de 1912. Embora não se faça, na ata dessa reunião, menção ao título da revista criada, tudo indica que se trata de A Nova Epoca, revista que parece ter tido uma efêmera, mas tumultuada, existência. O Conselho previa “a creação de uma revista littero-cientifica na qual possam promiscuamente collaborar os professores e alumnos dos dois estabelecimentos de ensino acima mencionados [Escola Normal do estado de Mato Grosso e Liceu Cuiabano].” (Acta do Conselho Superior da Instrução Pública, 1912, p. 37)
Nos jornais da época há referências a pelo menos três números de A Nova Época, todos publicados no ano de 1912.
Esse periódico, do qual se tem notícia pelos comentários de jornais do período, parece ter sido o canal, por excelência, para que os normalistas paulistas pudessem – a exemplo do que ocorria em São Paulo – divulgar, ainda que por pouco tempo, seus ideais republicanos e pedagógicos, mediante a reprodução de suas palestras e conferências.
A publicação dessa revista provocou um movimento de resistência da Igreja Católica local contra os princípios republicanos, especialmente contra o ensino leigo exercido nos grupos escolares. A estratégia utilizada nessa disputa foi a imprensa (diária ou semanal) escrita, a que recorriam as duas partes envolvidas. Enquanto os reformadores paulistas se sobressaíam escrevendo sobre política e educação nos jornais de Cuiabá a que tinham acesso, os oposicionistas se empenhavam, dedicadamente, em tentar desqualificar intelectualmente os normalistas, como evidenciam os inúmeros artigos do jornal A Cruz , especialmente os exemplares de 1912, cuja amostra se verá adiante.
Nessa revista o professor Gustavo Kuhlmann publicou suas Conferências Pedagógicas , tendo suscitado a grande polêmica que alimentou muitas páginas dos jornais que circulavam, especialmente em Cuiabá, do ano de 1912 até 1914, aproximadamente. É possível se ter noção dos temas abordados nas conferências, por meio das críticas e polêmicas publicadas no jornal A Cruz, da Liga Católica de Mato Grosso, que traz apenas fragmentos das conferências do normalista, com a finalidade de analisá-los, sempre de um ponto de vista depreciativo. Cada conferência publicada na revista dava origem a muitos artigos publicados nos jornais cuiabanos. O processo obedecia mais ou menos a seguinte ordem: primeiramente, a conferência era publicada; em seguida, A Cruz analisava parte ou aspectos da conferência; o passo seguinte era a resposta de Gustavo Kuhlmann e, às vezes, de Leowigildo M. de Mello que também era provocado, se bem que mais esporadicamente. Os normalistas paulistas rebatiam as críticas do jornal católico, mediante artigos publicados nos jornais de oposição à Igreja, o que dava margem para outras réplicas no A Cruz, com novos ataques, aos quais Gustavo Kuhlmann, pelo que tudo indica, nunca deixava sem respostas.
Os jornais da época registram com detalhes riquíssimos os diálogos provocadas/alimentadas pelos dois jovens professores, “republicanos convictos”, conforme eles próprios se intitulavam. Inserindo-se na vida político-cultural de Cuiabá, conquistaram rapidamente, tanto amplos espaços na imprensa local quanto alguns inimigos ferrenhos, representados pelo grupo do jornal católico A Cruz.
A concepção de ensino leigo, viabilizada na prática inovadora dos grupos escolares recém-criados e a exaltação dos princípios republicanos e patrióticos defendidos ardentemente por esses professores por meio da imprensa cuiabana, trouxeram-lhes sérios conflitos, culminando em debates bastante apaixonados e, às vezes, até temperados com certa dose de agressividade, conforme pode-se perceber, sobretudo, em algumas matérias do jornal A Cruz .
Apesar das polêmicas e da tentativa de desmoralização dos professores paulistas pelos seus adversários político-religiosos mato-grossenses, a presença desses profissionais constituiu-se num marco importante especialmente para a vida sócio-político-cultural de Cuiabá. Pelo que se pode observar nos jornais da época a ação desses professores não se restringiu à reorganização do ensino e suas propostas de caráter pedagógico. A implantação dos grupos escolares, de acordo com os ideais republicanos e positivistas e o envolvimento dos professores na vida pública, com apoio da maior autoridade política – o presidente do estado – constituiu-se numa provocação aos setores conservadores da Igreja Católica que se esforçavam por manter os fiéis distanciados não apenas dos ideais de escola leiga, mas de tudo que pudesse contrariar os dogmas da igreja.
A primeira referência encontrada sobre as conferências evidencia a natureza da revista e os princípios teóricos adotados por Kuhlmann em seus estudos. A inspiração para essas conferências parece ter sido predominantemente o livro Palestras sobre Ensino, de Francis Parker , citado freqüentemente pelos normalistas paulistas em sua palestras e relatórios.
No dia 24 de março de 1912 tem início no A Cruz, a publicação de uma série de artigos, todos intitulados“Conferencia Pedagogica”, com a finalidade de analisar as conferências de Kuhlmann. A distinção fica por conta da numeração, pois cada artigo é seguido pelos numerais romanos I, II, III, IV, V, VI, VII.
No artigo do A Cruz sobre a primeira conferência do professor paulista, explica o analista :

Conferencia Pedagogica
I
Inspirado em puros sentimentos de patriotismo e humanidade, o Sr. Gustavo Kuhlmann vae desenvolvendo a serie de conferencias pedagogicas que se propoz, vindo a primeira enserta no 1º n.º da revista “A Nova Epoca”.
Com as palavras de Parker nos recommenda o conferencista a não aceitar as suas ideias sem primeiro discutil-as.
Ora, ao ler essa estréa, sente-se como que um prurido de analysal-a, ainda que perfunctoriamente. (A CRUZ, 1912, n. 68, p.2)

Do dia vinte e quatro de março a quinze de maio de 1912, são publicadas no jornal A Cruz sete “análises” da conferência do normalista. Lamentavelmente, nem mesmo as réplicas do normalista foram localizadas, em função de não se terem preservado todos os jornais de oposição ao semanário católico. Pelos comentários do analista do A Cruz é possível conhecer os temas da Conferência e o teor das réplicas que, após cada “análise”, o conferencista publica nos jornais de oposição ao jornal católico. O analista retira da conferência de Kuhlmann conceitos e/ou comentários para análise e, em cada artigo, determinada parte da conferência é abordada criticamente. O normalista é adjetivado pelo A Cruz de “ignorante”, “neo-pedagogo”, “nemoleque”(sic!), “ingenuo”, “sapateiro”, “energúmeno”, “casca dura”, “rabecão desafinado”, “pseudo-pedagogo” e outros.
O artigo provocativo citado a seguir é ilustrativo do nível de animosidade relativamente ao normalista Kuhlmann, principalmente.

DESMORALISAÇÃO PEDAGOGICA
Acaba “A Nova Epoca” em seu terceiro n.º, de noticiar a terceira conferencia realisada pelo professor de casca dura Gustavo Kuhlmann, e com palavras encomiasticas, exaltando lhe a proficiencia que não possue. Não sabemos si se pode com mais acerto desacreditar a instrucção no Estado do que publicando semelhantes conferencias.
A segunda conferencia estampada no n.º 2 da citada Revista traz as seguintes bellezas:
Pag. 10 : “Mas, ainda muito pouco se cuida da DESENVOLTURA PHISICA, da educação do corpo que é a base das duas primeiras ( intellectual e moral) .”
Pag. 14: “Na Grecia, o berço das artes da antiguidade e a causa da Renascença (?!!), não consta que as mulheres se arroxassem com deformantes espartilhos apezar da semelhança deste nome com Sparta.”(?!!!...)
Si numa Revista littero-scientifica sob os auspicios do Sr. Presidente do Estado e do Sr. Secretario do Interior, Justiça e Fazenda, dá guarida a peças tão classicas, que juizo poderão formar do nivel intelectual de Matto Grosso os que leem “A Nova Epoca”.
Semelhante publicação, semelhante elogio é a desmoralisação da instrucção.” (A CRUZ, 1912, n.º 87, p. 2)

Os comentários de O Debate, por outro lado, possibilitam que se tenha uma idéia do conteúdo da revista e também da importância que, provavelmente, teve para a sociedade mato-grossense:

A Nova Epoca
Abrilhanta a nossa banca de trabalho, o 2º numero desta importante revista littero-scientiphica, que cada dia se vae elevando, pelos seus proprios esforços, no conceito publico.
Portadora escrupulosa de um summario elegante e variado, onde figuram nomes de reconhecida competencia intellectual, traz tambem em as suas columnas uma escolhida secção judiciaria, fóra outros trabalhos de interesse collectivo.
Agradecemos com sinceridade a offerta que gentilmente nos foi feita pelo seu digno director. ( O DEBATE, 1912, n.º 195).

Essa opinião, conforme se pode observar, não era compartilhada pelos adversários da escola leiga, representada pelos articulistas do jornal A Cruz. A visão desse semanário era

bem outra, os normalistas e suas publicações eram considerados algo nocivo à Igreja e à sociedade de modo geral e eram pessoalmente atacados como representantes do Estado.
Numa clara demonstração de que a polêmica sobre suas conferências provocada pelo articulista do jornal A Cruz deveria ter um ponto final e declarando uma trégua, encontra-se Gustavo Kuhlmann enviando-lhe um “recado” em tom conclusivo, mediante artigo no jornal O Debate, de 5 de abril de 1912:

Do Sr. Professor Gustavo Kuhlmann , recebemos e publicamos a seguinte carta:

Illustrados Redactores do O Debate

Satisfeito com o vosso gentil acolhimento à minha carta ultima, venho agradecel-o e pedir-vos, pela ultima vez neste assumpto, a inserção destas poucas linhas, sem que nisto va nem uma imposição como pretendeu intrigar “A Cruz”.
Devo declarar ao orgam catholico e a seu anonymo articulista que, neste assumpto de conferencias, não lhes vou responder mais, sinão quando publicar em volume os meus trabalhos pedagogicos. Então terei ocasião de destruir completamente aos sophismas do perfunctorio e desapercebido critico.
Com protestos de estima, sou vosso amigo e muito grato.
Gustavo Kuhlmann.
Cuyaba, 3 de abril de 1912. (O DEBATE, 1912, n. 161, p.2).

Note-se que o normalista paulista prometeu não mais pronunciar sobre esse “assumpto de conferências”. De fato, Kuhlmann continua a rebater o semanário católico em muitos outros assuntos ligados à política e religião, como se pode verificar nos jornais dos anos seguintes. Indiferente à decisão de Kuhlmann, o A Cruz continua analisando suas conferências até pelo menos o lançamento do terceiro número de A Nova Época, em agosto de 1912.
De qualquer modo, o mais intrigante nesse episódio é o fato de A Nova Epoca, apesar do apoio político recebido, ter tido uma existência efêmera, o que talvez esteja ligado aos conflitos por ela desencadeados. Não é demais, me parece, arriscar a dizer que, na tentativa de acompanhar a polêmica entre os normalistas e os dirigentes católicos do jornal A Cruz, os mato-grossenses, de modo geral, e os professores primários, em particular, não tenham aproveitado o espaço de A Nova Época e a oportunidade de discutir e refletir sobre os problemas da instrução pública de Mato Grosso, no período em questão. Essa afirmação se deve ao fato de que não se encontram outros posicionamentos nos jornais da época. A impressão que se tem, frente ao silêncio em torno da polêmica normalistas X A Cruz, é que o debate entre esses dois representantes do poder local – o estado e a igreja – foi “assistida de camarote” pela maioria dos mato-grossenses que não tomaram partido no conflito.
Talvez por isso, não obstante o apoio político que receberam, e que, em princípio, parecia suficiente para o êxito de seus empreendimentos, os normalistas não conseguiram prolongar a existência da A Nova Época.
Infelizmente, essa revista, em sua aparentemente curta existência, parece não ter cumprido seus objetivos precípuos, determinados pelo Conselho Superior da Instrução Pública de ser um espaço cultural onde professores e alunos das duas escolas públicas de renome em Cuiabá, a Escola Normal do estado de Mato Grosso e o Liceu Cuiabano pudessem participar dando sua contribuições.
Os resultados das conferências de Kuhlmann para o professorado mato-grossense e para os alunos da Escola Normal do estado de Mato Grosso também parece ter sido um enigma, uma vez que não se têm informações a respeito de sua repercussão entre esse segmento de supostos interessados. Foram poucas as vozes que se levantaram, no período, para registrar o significado de A Nova Época, e essas vozes não pertenciam aos professores da escola pública que enfrentavam a reforma de ensino, aparentemente, no silêncio das salas de aula, enquanto a “ala reformista” do ensino e a “ala da resistência” a esse movimento polemizavam entre si por meio da imprensa da época.
O fato é que a presença dos jovens normalistas na administração do ensino público e na imprensa local, ocupando espaços privilegiados em vários jornais de Cuiabá e marcando presença numa revista subsidiada pelo governo do estado que acabara de empreender uma reforma de cunho republicano, implantando uma escola leiga de caráter moderno, pela qual eram literalmente responsáveis, colocava-os em lugar de destaque entre os mato-grossenses o que, provavelmente, gerou antipatia por parte dos adversários do poder republicano do qual eram tidos como representantes. Isso gerou e alimentou a polêmica abordada que parece ter se estendido por vários anos.
Um trecho extraído do jornal católico mostra a natureza e o teor das críticas endereçadas ao normalista Gustavo Kuhlmann :

RABECÃO DESAFINADO
Afinal, o Nemo rendeu-se e nos declarou ter provado que educar pertence à familia das palavras formadas da raiz duc. Ei-nos portanto remettidos ao primitivo duc. Falta-lhe apenas ter dicto que alguns grammaticos dão o nome de radical `a raiz de uma palavra juntamente com o prefixo que se lhe addiciona; que outros usam o termo RAIZ com a mesma accepção de radical.
Portanto, duc é a raiz, e educ é o radical da palavra educar. E é só remontando-se ao primitivo educere que se pode attribuir a educar a significação de – trazer, levar para fora.
Muito bem! Isso mesmo!...
Portanto esta provado cabalmente que o Nemo provou que duc é a raiz de educar conforme as autoridades invocadas, entre outras, a do Z. É. Basófio. Vale bem uma baforada de francez!
Comment s’appelle cette ESTRELLE ? L’obedience à...grammaire...
Cette ETOILE, Nhonhô, não é estrella; elle s’appelle: COMETA...PAULISTA!... (A CRUZ, 1912, n.º 89, p. 2)

Nessa mesma página do jornal mais um artigo complementa a matéria do número anterior do A Cruz (n.º 87), a título de continuação:

DESMORALIZAÇÃO PEDAGOGICA
A dona dos ovos incomodou-se com a nossa publicação sob a epigraphe acima, em o n. 87 deste semanario.
Porque, perguntava, versalete em DESENVOLTURA PHISICA e gripho em – Na Grecia...causa da Renascença, não consta que as mulheres se arroxassem com deformantes espartilhos apezar da semelhança deste nome com Sparta?”
Cumulo da ignorância!
Nhonhô – desenvoltura quer dizer – turbulencia, impudor e não DESENVOLVIMENTO. Mas em parte tem razão e de sobra de nos interrogar – porque? Porque realmente as conferencias do Kuhlmann são de um impudor pedagogico inexcedivel, é uma verdadeira DESENVOLTURA PEDAGOGICA...
Vá fazer derivação assim lá nas pedras de fogo!...
Que professor provecto! (?) ( A CRUZ, 1912, n.º 89, p. 2)

É surpreendente notar o quanto os normalistas incomodavam o grupo da Liga Católica em Mato Grosso. Às vezes, num mesmo número do jornal A Cruz o nome de Kuhlmann aparece citado inúmeras vezes, em duas ou até três matérias diferentes. Como se não bastasse, havia um espaço de piadas no jornal em que o normalista foi figura assídua durante certo período. Cito alguns exemplos, extraídos da seção denominada “Repiques” :

Porque será que Mestre Kuhlmann escreve agora tão bonito com a orthographia dernier cri ?
_ É para, debaixo da mascara da forma esconder a boçalidade do fundo.
_ Então...sempre palhaço?...
_ Sim, senhor. (A Cruz, 1912, n. 106, p.3)

Eu Kuhlmann fundei...Leowigildo também fundou...
Zé Povo _ fundaram o que?
Afinal de contas fui eu que fundei pelo meu eleito, então Presidente do Estado. Vocês são apenas paus mandados...tudo o mais é blague e bluff.
(A CRUZ, 1913, n.º 116, p. 3)

No grupo do 2. Districto:
O Director – Quem descobriu Matto Grosso?
Alumnos – Os paulistas.
Director – Podem citar alguns nomes?
Alumnos – Kuhlmann, Leo...
Director – Basta, basta...Muito bem!...
(A CRUZ, 1913, n.º 119, p. 3)

“Rrrrepublicano?”
_ Então você está pensando que G. Kuhlmann será tão republicano e tão patriota como elle diz em suas soporiferas conferencias?
_ Duvidas?
_ Duvido, sim, visto o pouco caso com que elle manda hastear a bandeira do seu grupo escolar...sempre virada de cima para baixo; isso, sim que é desordem e regresso em acto permanente.
_ Na verdade, esse Kuhlmann é mesmo um homem ...às avessas!
(A CRUZ,1913, n.º 124, p. 2)

Em algumas ocasiões, fica ainda mais evidente a agressividade das provocações, como no trecho citado a seguir:

A BILIS DE GUSTAVO
Gustavo diz: ‘Estupendolescamente iluminado pela luz apagada de meia duzia de clichés JÁ PUBLICADOS EM TODOS OS JORNAES E EM TODAS AS REVISTAS que cheiram mal a cêra de sacristia, surgiu ...o cascudo orgão do morro mal despachado.’
Desafiamos Gustavo Kuhlmann, o conhecido beocio Kuhlmann, autor da phrase estupendolescamente idiota acima referida, a citar um único jornal em toda a extensão do Brazil que tenha jamais publicado os tres grandes clichés estampados no numero d’ “A Cruz” de 15 de Maio p. findo. Desafiamos outrossim esse pedante primario, a indicar em toda a Europa, dois jornaes que tenham publicado esses mesmos clichés.
E se não o fizer ficará provado que seu artigo “pescando”, o cascudo mestre-escola primario, está arrotando a mentira, o despeito e o pedantismo sem erudição, attingindo o maior grau de bobagem a que pode chegar um TOLO na extensão mais lata da palavra.
Os paes de familia é que devem estar satisfeitos com educador dessa laia.
ZAZ-TRAZ. (A CRUZ, 1913, n. 128, p. 3)

Como se pode notar pela citação de “ZAZ-TRAZ”, em aspas, no início do artigo, Kuhlmann respondia à altura às provocações de seus adversários.
A leitura dos raros exemplares preservados do jornal A Reacção, também de Cuiabá, permite compreender a dimensão das polêmicas alimentadas pelos dois adversários. Da primeira à última página o jornal citado defende os princípios republicanos e ataca a ação da Igreja Católica. O n.º 44 de A Reacção, de 18 de outubro de 1914, traz um artigo de Kuhlmann que evidencia a natureza das discussões e a ousadia do normalista nos seus posicionamentos. A longa citação a seguir é bastante ilustrativa da situação:

ATÉ QUANDO?
Não suponham os amáveis leitores que eu vá perguntar até quando a rabujenta e desnorteada “A Cruz” pretende abusar de nossa paciência, atirando-nos provocações no terreno politico, sem querer entender que a sua atitude parcialissima e apaixonada vai ferir, não aos livre pensadores que, nesta qualidade, nada têm que ver com áquelles que são os responsaveis pelos atos que a megera censura, com a pose de mentor remendado. Não! Deixemos que os jornais políticos respondam aos artigos do jornal miscelanea. Isso não é comigo nem com a “A Reacção”...
Aquela pergunta que deixei na epigrafe deste artigo me foi sugerida pela noticia de que o Brazil, para fazer economia, ia suprimir algumas legações na Europa.
Até aí estou de acordo...
Por mim pouco se me dava que todas as legações e mais algumas fossem suprimidas para o paiz fazer economias.
E que economias! Talvez as maiores que se poderiam fazer...Mas o que não entra nesta cabeça dura de republicano teimoso é o fato de se começar a suprimir legações de junto de Estados importantes esquecendo a celeberrima e paradoxal legação republicana junto à Santa Sé, estando a igreja separada do Estado...
Não me deixo convencer, nem a pau desde que fiz sobre o assunto o seguinte raciocinio:
A igreja não é um estado. Ezistem muitas outras relijiões. A Republica não pode fazer seleções de seitas e está separada de quaisquer delas.
Os representantes da igreja têm desrespeitado a Bandeira brazileira. O Vaticano não tem movimento comercial sinão de arrecadação dos seus negocios.
O Brazil não tem interesses na praça do Vaticano.
Para que, ao menos na aparencia a tal legação no Vaticano?
Isto com certeza não agradará aos obscurantistas e difusorios clericais que não gostam desta linguagem.
Mas tenham paciência. Eu tambem não gosto de igrejices e nem por isso me desespero com republicanismo...clerical!
Apenas me atrevo humildemente...a perguntar até quando o Brazil fará a despeza inutil de manter uma legação junto ao Vaticano? Até quando? ( A REACÇÃO, 1914, n.º 44, p.2)

Nesse mesmo dia e jornal, um outro artigo de primeira página traz um apelo aos pais, ao mesmo tempo em que propaga, de certa forma, o ensino ministrado nos grupos escolares:

O Clero
O clero é totalmente jesuita. O padre é o inimigo da sociedade, o perturbador da familia, o corruptor da mocidade, a serpente fascinadora como bem o disse o illustre Michet...
É preciso que as mães de familia evitem o quanto possivel o contato dos seus filhos com o clero que a tudo corrompe e destroe.
Sim, óh mães! Educai os vossos filhos, verdadeiras esperanças da patria, a sociedade nova de amanhã, na escola leiga, o padrão por onde se afere a rapida educação de um povo. Alcopa ( A REACÇÃO, 1914, n.44, p. 1)

A antipatia com relação a Kuhlmann, principalmente, chega a levar seus adversários a ameaçá-lo fisicamente, como se pode perceber no discurso inflamado (dia 8 de junho de 1913) de Feliciano Galdino, um dos articulistas do A Cruz:

Esse fanatico rasga-batina que para aqui veio maltrapilho (pois, para aparecer em publico teve que se munir de roupas, em casa do Sr. M. V. no 2. Districto, o posso provar) com toda sua boçalidade e pedantismo, grita no sujo pasquim dos beberrões de Cuyaba – achincalhando o povo vergado sob o peso dos impostos – de que elle recebe uma parcella, mensalmente! Mas, isso é, certamente porque ainda não sentiu o peso de um bastão no lombo. E é um garôto deste que pretende analysar os artigos do orgão catholico!
Feliciano Galdino. (A CRUZ, 1913, n.º 129, p.2)

A indignação de Galdino se materializa na conclusão do artigo. Era inadmissível para o jornal católico ter um jovem professor de outro estado, posicionando-se abertamente contra a Igreja, questionando seus princípios e hegemonia e tendo, além do mais, seu sustento garantido no serviço público estadual.
Como se vê, a troca de provocações era bastante comum, servindo para acirrar o debate entre os religiosos e a escola republicana. Certamente, os ganhos eram dos mato-grossenses que, além de ter nos jornais locais a possibilidade de entretenimento e lazer, tinham informações temperadas com a paixão do debate alimentado pelos normalistas paulistas.
Analisando comparativamente os artigos dos normalistas paulistas e seus companheiros (os livre-pensadores) e os do grupo da Igreja Católica, percebe-se que tanto de um lado quanto de outro predominam os mesmos sentimentos: imensa paixão na defesa de seus princípios; uma certa agressividade, às vezes um tom de bom humor, muita ironia e sarcasmo. Essas parecem ser as maiores características das matérias jornalísticas colocadas à disposição pela imprensa escrita da época que acompanhava e registrava a polêmica desencadeada pela presença dos reformadores paulistas em Mato Grosso.
Apesar das polêmicas e da tentativa de desmoralização dos professores paulistas pelos seus adversários político-religiosos mato-grossenses, a presença desses profissionais constituiu-se num marco importante especialmente para a história da educação no Mato Grosso e na vida sócio-político-cultural de Cuiabá.


Á guisa de conclusão

Compreender o conflito estabelecido entre os jovens professores paulistas, então representantes da escola mato-grossense recém-reformada, com base no ensino leigo, e os articulistas do jornal A Cruz, representantes da Igreja Católica local, não é difícil; afinal os normalistas não só traziam à tona discussões delicadas (embora comuns, muito antes da proclamação da República) em torno do ensino democrático, público e leigo, como aplicavam esses princípios nas escolas sob sua direção, além de disputarem o espaço destinado à imprensa escrita tendo livre acesso aos jornais de oposição e resistência à Igreja e gozarem de apoio político das autoridades mato-grossenses.
Além do mais, vale lembrar que os normalistas eram bastante jovens – ambos nascidos na última década do século XIX, contando então, com pouco mais de vinte anos de idade – eram recém-formados numa Escola Normal que lhes conferia um prestígio reconhecido pelas autoridades administrativas de Mato Grosso (e de outros estados) e ocuparam cargos públicos de importância na época – diretores de grupos escolares – , casaram-se logo, um em 1911 e outro em 1912, com moças cuiabanas, legitimando assim, de certa forma, sua conquista do espaço social na medida em que fincavam raízes no solo mato-grossense. Ora, a presença desses “intrusos” acabou consistindo-se numa ameaça àqueles que se consideravam os únicos vigilantes da moral e dos bons costumes mediante a defesa de uma escola religiosa no Mato Grosso.
Nos jornais de Cuiabá, percebem-se resquícios desses conflitos até pelo menos 1914. Depois disso parece que se estabeleceu uma certa tranqüilidade no relacionamento dos normalistas com os setores da Igreja Católica. Em 1918, Leowigildo Martins de Mello que deixara a direção da Escola Normal do estado de Mato Grosso em 1916 e passara, desde então, a atuar como advogado provisionado, começa, inclusive, a escrever no jornal A Cruz (!), tendo uma seção permanente assinada com o pseudônimo L.Veiga. Cooptação/conversão? Quanto a Kuhlmann, seu nome desaparece dos jornais e de outras fontes documentais a partir de 1916.
A pequena reflexão que decidi apresentar neste congresso, com a finalidade de socializar alguns aspectos resgatados e considerados emblemáticos da reforma da instrução pública em Mato Grosso, em 1910, tem também um objetivo que é apontar que, no nível da reforma educacional daquele período, aparentemente tranqüila e sem maiores envolvimentos da sociedade mato-grossense, houve um movimento de resistência à reforma e seus ideais que talvez mereça maiores aprofundamentos. Torna-se relevante também indicar a importância da fonte analisada tendo em vista que, em alguns temas, apenas a preservação de jornais da época é que têm permitido conhecer certos aspectos da história da educação mato-grossense não registrados em outras fontes.
A polêmica estabelecida e aqui abordada, longe de possibilitar uma análise conclusiva, na verdade deixa muitos questionamentos. Até que ponto, esse movimento de resistência, de caráter explicitamente religioso, na medida que era encampado por defensores da Igreja Católica, tinha a adesão e/ou apoio da comunidade cuiabana? Os argumentos e os ataques de ambos os lados – dos professores paulistas republicanos e dos redatores do A Cruz – eram representativos do pensamento de que parcelas da população? Teria a polêmica interferido de algum modo na reforma do ensino, na constituição/expansão dos grupos escolares que não chegaram a prosperar, tendo o governo do estado construído apenas uns poucos edifícios, sem a pompa e a grandeza de seu modelo – a escola paulista ? Que papel exatamente (ou provavelmente?) teve a revista A Nova Época de vida tão efêmera? Apenas a de desencadear uma polêmica sobre os princípios da escola republicana e seus fundamentos? Teve a revista a infelicidade de criar uma situação que teria resultado na sua própria extinção, na medida em que não se tem notícias desse pretenso periódico, a não ser de suas três edições mencionadas pelos jornais da época? E as conferências, como teriam sido interpretadas pelos sujeitos interessados? Qual a sua validade e contribuição para a formação dos professores mato-grossenses? Teriam os professores, de modo geral, acesso à revista? Como teriam se apropriado das conferências? E sobre as discussões/polêmicas, o que diriam delas? Será que as brigas entre os dois lados contribuíram para a compreensão dos professores? De que lado ficaram? De um ou de outro, ou teriam eles ficado entre A Cruz, da Igreja e a espada dos republicanos?
Como fonte desaparecida, teria essa revista cumprido seu papel ao permitir que sua efêmera e emblemática existência fosse registrada no importante jornal A Cruz , do qual se preservou a maioria dos exemplares publicados por mais de 40 anos, e nos fragmentos dos jornais de oposição à Igreja? É possível!

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