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ENTRE
IMAGENS E PALAVRAS: A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA INFANTIL
E DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PARA A EDUCAÇÃO DO
LEITOR
Marly
Amarilha – Educação - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte - UFRN
O território
da formação do leitor tem sido o eixo investigativo maior
do nosso grupo de pesquisa “Ensino de leitura e literatura”
(UFRN). Neste estudo, tomamos como referência as Histórias
em Quadrinhos (HQ) como material bibliográfico significativo da
cultura contemporânea ao qual crianças e jovens têm
acesso de maneira informal.A reflexão que desenvolvo tem a intenção
de demonstrar as potencialidades cognitivas e educativas da HQ na formação
do leitor. É fato que, alguns estudos já têm assinalado
a relevância das HQ como material didático, entretanto, nesta
abordagem privilegiamos a relação entre o desenvolvimento
cognitivo das múltiplas inteligências à educação
do leitor, área ainda pouco explorada nessa linha de investigação.
Esta reflexão se baseia em pesquisa realizada com 350 alunos da
1a a 5a série do ensino fundamental da rede pública do Rio
Grande do Norte sobre a relação que os aprendizes estabeleciam
com a literatura e seus personagens. O instrumento utilizado foi um questionário.
Constatou-se que 60% dos aprendizes conhecem os personagens literários
clássicos através das Histórias em quadrinhos (HQ),
em que a Turma da Mônica é a principal referência (Amarilha,
2000). Ocorre que, uma das estratégias freqüentes na composição
das histórias dessa série é a apropriação
dos enredos e dos personagens dos contos de fadas, ou seja, a HQ garante
parte da sua audiência desfrutando do prestígio e da cidadania
dos personagens literários tradicionais. A partir desse dado, propôs-se
o projeto, em andamento, O ensino de leitura: a contribuição
das Histórias em Quadrinhos e da Literatura Infantil na formação
do leitor (CNPq/UFRN; 2003-). Este breve estudo, apresenta alguns resultados
das primeiras reflexões em torno das possibilidades cognitivas
e lingüísticas no desenvolvimento de diferentes inteligências
(Gardner; 1996) considerando-se a natureza intersemiótica e intertextual
das histórias (Barthes,1995;Eco,1994;Calvino,1990;Kristeva,1974)
que repercutem na educação leitora. Nesse processo de leitura
das HQ que é lingüístico, cultural e cognitivo, potencializam-se
no leitor habilidades destacadas pela teoria das múltiplicas inteligências
de Gardner. É como se a cada forma de expressão, decorressem
estruturas de inteligência que se mobilizam tanto para a expressão
quanto a comunicação e compreensão do texto elaborado.
Por outro lado, a remissão ao texto original do conto de fadas
conduz o leitor à outra modalidade de linguagem que estimula a
inteligência lingüística.
Para Howard Gardner (1985), existem sete diferentes tipos de inteligências:
lingüística; lógico-matemática; espacial, corporal-cinestésica;
interpessoal e intrapessoal. E cada indivíduo traz, potencialmente,
todas as possibilidades de inteligências, sendo algumas mais desenvolvidas
do que as outras.
Para fins deste trabalho, destaco apenas algumas.
Inteligência lingüística: Compreende a capacidade para
processar o significado das palavras, sua sonoridade e ritmo bem como
entender seus usos e funções sociais como expressão,
comunicação e organização do pensamento verbal
e lógico-analítico. A capacidade de expressão em
linguagem verbal é considerada universal pelo psicólogo.
Inteligência lógico-matemática: capacidade para processar
e perceber padrões, ordem e sistematização. Ter habilidade
para lidar com problemas e resolvê-los antes de articular a solução.
Capacidade para explorar relações, raciocínios e
símbolos. Destaca-se como um tipo de inteligência não-verbal.
Apresenta-se em matemáticos e cientistas de forma mais evidente.
Inteligência espacial: capacidade para perceber padrões espaciais
e a relação das formas no mundo. Capacidade de abstração
e manipulação de linhas e de formas percebendo suas relações
de proporção, equilíbrio visual e espacial. Está
presente em artistas plásticos, arquitetos e engenheiros.
Entretanto, essas inteligências, assinala Gardner, destacam-se e
podem ser mais desenvolvidas dependendo do ambiente cultural que as estimula
e valoriza. Na compreensão que, a sociedade brasileira procura
desenvolver e valorizar a leitura, entendemos que o contato de crianças
escolares, mediadas por professores, poderá potencializar a bagagem
leitora que as crianças já trazem e, simultaneamente, propiciar
o desenvolvimento de habilidades cognitivas e educativas que são
estimuladas pelas HQ.No sentido de clarificar esse potencial das HQ desenvolvemos
as análises que seguem.
Estabelecendo-se relação entre a teoria das múltiplas
inteligências e as diferentes referências para as quais apelam
uma breve história em quadrinhos, pode-se afirmar que as HQ permitem
a exploração e o desenvolvimento das inteligências
lingüística, lógico-matemática e espacial sem
perder de vista que fazem parte do ambiente cultural das crianças
de hoje e portanto, repercutem de maneira mais ampla em sua visão
de mundo e em suas relações sociais.
Para demonstrar a proposta do trabalho, proponho a leitura da seguinte
história imagética da Magali:
Na leitura
da história, o leitor é solicitado a utilizar-se de competência
intersemiótica (Kristeva) para realizar o processo de compreensão
da breve narrativa. A provocação é feita pela própria
natureza do texto da HQ que se serve da linguagem verbal e imagética
em sua composição. Acrescenta-se a essa relação
intersemiótica, o vínculo que o enredo estabelece com a
tradição literária dos contos de fadas. Do ponto
de vista da educação para a leitura, deve-se destacar que
a síntese do texto estabelece, por analogia, igual brevidade na
leitura cronológica, entretanto, essa singularidade não
corresponde, necessariamente, à complexidade do processo de significação.
Este processo percorre caminhos não lineares que diferem daqueles
feitos na primeira leitura.
Entendemos que nessa primeira leitura, o leitor segue o fio da narrativa
para chegar à significação através da leitura
imagética. Entretanto, a linearidade da história solicita
que o leitor acione repertório de conhecimentos e imagens para
que a significação ganhe maior consistência. Em conseqüência
desse processamento, o leitor apreende o sentido do texto estabelecendo
imediata relação com informações prévias,
socialmente compartilhadas, sobre “sapo enfeitiçado”;
“beijo” e o desfecho decorrente, construindo assim uma teia
de relações que subsidiam a estrutura profunda da significação
desse texto. O estímulo intelectual decorrente do ícone
sapo aciona na memória do leitor o reconhecimento do gênero
literário conto de fadas, por conseguinte, o leitor passa a antecipar
a seqüência da história com a agilidade necessária
à narrativa imagética, preenchendo as lacunas seqüenciais
e semânticas, ao mesmo tempo, em que aguarda por um final desconhecido.
Ao fazer o deslocamento do enredo tradicional para o texto dos quadrinhos,
a narrativa literária empresta a estrutura conhecida ao novo gênero
e prepara o leitor para um novo final também. Nesse entrecruzar,
de gêneros, enredos e personagens, o leitor ultrapassa, necessariamente,
a leitura referencial e linear. Para que a leitura ganhe densidade semântica
e riqueza de detalhes, o leitor percorre caminhos intertextuais, intersemióticos.
Esses caminhos obedecem à lógica da associação
paradigmática em que se misturam informações conceituais
advindas do signo lingüístico e do signo imagético.
Essa história da Magali, por ser totalmente imagética, em
que sequer há título, evidencia de forma mais contundente
o trabalho cognitivo realizado pelas inteligências espacial e lógico-matemática.
Espacial pelo ajuste do desenho que se transfigura em personagens do mundo
ficcional que, anteriormente, já haviam se transfigurado do mundo
factual para o literário. O sapo é a figura de um príncipe
que tem identidade humana. Na HQ, esse personagem ficcional se transfere
para a abstração do traço que lembra aquela imagem
do príncipe dos contos de fada, mas são de fato, personagem
e desenho, uma outra realidade. Na leitura desta HQ evidencia-se o uso
da visão e das representações mentais e conceituais
daí decorrentes. Na esfera do pensamento não verbal desencadeado
pela história ocorre a comparação associativa que
se baseia em experiências sensoriais, no caso em pauta, é
a partir da experiência visual do sapo que a significação
da história se desenvolve.
Outra inteligência que é acionada no processo de significação
dessa HQ é a inteligência lógico-matemática.
A primeira solicitação do processo lógico-matemático
é feita pelo cabeçalho da história. Isto é,
com a síntese conceitual que se reduz apenas ao nome Magali, o
narrador provoca no leitor a associação imediata com a identidade
da personagem. Ao ver o sapo, na primeira cena, o leitor não somente
vê o desenho do animal sapo, mas também aciona os significados
que já aprendeu, socialmente, ou, literariamente, sobre esse personagem,
portanto, o leitor vê um ícone. No ícone, estão
sintetizadas a imagem e as representações mentais e conceituais
a ela relacionadas. Em decorrência, espera-se que o leitor reconheça
a cidadania literária desse personagem, de que é, na verdade,
um príncipe encantado. Ao recuperar essa informação,
o leitor ajusta sua expectativa sobre o desdobramento da história.
Além disso, o leitor, já estabelecera, anteriormente, um
outro contrato, de que está lendo uma HQ da Turma da Mônica
em que a personagem central é Magali, anunciada no início
da história. A partir desses referentes, o leitor agrega à
sua leitura as informações sobre o perfil da personagem
de ser uma menina gulosa. Apoiado nesses padrões icônicos:
príncipe encantado e menina gulosa e somando-se esses campos de
conhecimento advindos da cultura literária e da HQ, o leitor se
encontra em condições de dar significação
à história. Assim, espera que algo divertido, bem humorado
ocorra na narrativa, que a história tenha leveza, visto que esse
encontro se dá na HQ da Turma da Mônica, gênero textual
que apresenta como padrão o humor. Portanto, na primeira leitura,
fundamentada nas imagens, antes que qualquer explicação
ocorra, o leitor aciona sua inteligência lógico-matemática
com a qual a história é rapidamente compreendida.Essa brevidade
é necessária para que o impacto do humor ocorra. Segundo
Gardner, a anedota [...] salienta a natureza não-verbal da inteligência
(1995; p.25).
Nessa história, a presença da inteligência lingüística
está condensada no nome da tira Magali e no enredo literário,
pois o sentido original da narrativa está ancorado na tradição
dos contos de fadas.Entretanto, observa-se que a cultura já transformou
essa narrativa verbal em um ícone daí que, é possível
chegar à significação da história apenas pelas
associações imagéticas. Ao tentar desvelar os meandros
da história e expressá-los em linguagem verbal é
que o trabalho da inteligência lingüística poderá
se apresentar.
Vejamos a próxima história em que entra em cena, de forma
explícita, a inteligência lingüística.
Como na história
da Magali, esta narrativa também não tem título,
acompanhando o padrão adotado para histórias com poucos
quadros, chamadas também de tiras. A história tradicional
retomada, nesse caso, é de Branca de Neve onde aparece o espelho
mágico. A avaliação da imagem que esse espelho reflete
vaticina sobre a beleza. O empréstimo feito pela HQ do conto de
fada, não é mais de um personagem, mas de um objeto. Na
apresentação da história, dois ícones se encontram:
a personagem contemporânea Mônica, de quem se conhece a auto-suficiência
e o objeto mágico – o espelho inteligente e falante. A articulação
lingüística nesta narrativa é imprescindível
para que o leitor entenda a origem e a natureza do espelho. Da história
tradicional, o narrador seleciona, reescreve e redesenha a cena do diálogo
da madrasta de Branca de Neve com o espelho. A pergunta formulada pela
personagem aciona o conhecimento verbal e a operação cognitiva
relativa à inteligência lingüística em que é
preciso articular o enunciado para que se entenda o contexto da cena.
Sem a pergunta de Mônica, a cena diante do espelho poderia ter inúmeros
encaminhamentos. Uma vez estabelecida a relação intertextual
e intersemiótica entre personagem, espelho e enredo, o segundo
quadro é facilmente legível: Mônica ansiosa e desconfiada
aguarda o veredicto do espelho que não se manifesta.Na ausência
da fala do espelho, a personagem retoma sua identidade e dá o desfecho
à narrativa “quem cala, consente!”. Novamente, entra
em cena a linguagem verbal, que não somente conclui a narrativa
como aciona o repertório da cultura popular que estabelece nova
relação intertextual, nesse caso com o advérbio.
É preciso assinalar que mesmo quando a inteligência lingüística
é acionada processos cognitivos referentes à inteligência
lógico-matemática são também desencadeados.
A brevidade da narrativa só realiza sua inteligibilidade porque,
simultaneamente, uma rede de conexões culturais, não verbais
é acionada. O contraste entre o desfecho do enredo tradicional
e o contemporâneo, em seqüência tão rápida,
desencadeia o humor. Ou seja, antes que o leitor explique como compreendeu
a história o impacto de seu sentido já o atingiu e, provavelmente,
o riso seja a maior evidência de que a interação significativa
aconteceu.
Este estudo demonstra que o exercício de leitura das histórias
em quadrinhos, mesmo naquelas em que predominam a linguagem imagética,
a conexão visual constrói um texto significativo que possibilita
plena interatividade do leitor para realizar a significação.
As habilidades que esse exercício de leitura desencadeiam pede
a solicitação do leitor para que a história se realize.
Dessa forma, pode-se dizer que as HQ apresentam alto grau de hospitalidade
para algumas modalidades de inteligências como a espacial, a não
verbal e a lingüística, visto que, a depender da bagagem que
o leitor traz para a leitura, ele tem amplas possibilidades de interação.
A co-participação do leitor na busca da significação
textual da HQ é fator de desenvolvimento de habilidades de interatividade
exigidas pelas novas mídias, bem como favorecem ao desenvolvimento
do senso crítico sobre o passado e o presente.
Visto que as HQ são textos paródicos, o leitor deverá
se exercitar na busca das fontes originais que motivaram o texto contemporâneo,
levando-o a desenvolver as inteligências lingüística
e espacial tanto do ponto de vista semântico com do ponto de vista
imagético. Pois a partir da palavra, encontrada na narrativa literária
tradicional, o leitor criou imagens no passado, e agora no presente, impactado
pela imagem do desenho atualiza e reconstrói novas imagens e conceitos.
Assim, do intertexto a HQ favorece a passagem para o hipertexto (Lajolo,
1998; p.71) e deste para a interação crítica com
qualquer tipo de texto.
Os comportamentos estereotipados de Magali como de Mônica provocam
o riso e levam a pensar sobre as razões que nivelam as personagens
a um interesse prioritário. Em Magali, a gula e em Mônica
o autoritarismo.Ao reduzirem suas visões de mundo a uma única
perspectiva as personagens e os enredos que vivem provocam o raciocínio
filosófico: Como alguém pode pensar permanentemente em uma
única coisa? É possível sustentar uma vida e um destino
com uma única meta? A experiência dessa leitura, mediada
por professores atentos, deverá propiciar o desenvolvimento de
diferentes modalidades de inteligência, conforme demonstrado, e
a educação de leitores mais hábeis nas linguagens
contemporâneas e mais críticos sobre o mundo que se lhes
oferecem.
E essa é uma perspectiva promissora.
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