Daniela Perri Bandeira - Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Minas Gerais -FaE/UFMG
A área das novas tecnologias tornou-se, em curto
espaço de tempo, fonte significativa e relevante de estudos. Há
muito que pesquisar sobre esse infindável “oceano de informações”
que é a Internet. Este texto trata de apresentar um pequeno recorte
da dissertação defendida em agosto de 2003 a respeito da
influência do uso sistemático da Internet no processo de
letramento de adolescentes da 7ª e da 8ª séries de um
colégio da rede particular de Belo Horizonte.
Selecionamos as duas últimas séries do ensino fundamental
pelo fato de serem constituídas por alunos que ainda podem ser
considerados como imersos na cultura impressa e que direcionam suas leituras
não apenas às exigências dos vestibulares. Decidimos
tratar desse leitor adolescente porque, normalmente, ele busca novidades,
tem papel ativo em relação às novas tecnologias e
está sempre ansioso e disposto a utilizá-las. Leitores-navegadores
ou jovens internautas que se apropriam do mundo escrito por meio de um
novo tipo de suporte.
Optamos, também, por compreender melhor o papel que as novas tecnologias
podem desempenhar no contexto educacional; compreender a tecnologia como
um recurso complementar à sala de aula, uma atualização
de conceitos e conhecimentos, um novo espaço de leitura, uma “outra
linguagem” que contribui para a formação de um “outro
tipo de leitor”. Pensamos que a investigação desses
aspectos – linguagem/leitor- soma subsídios ao campo de estudos
do letramento, por considerarmos o acesso à internet como um novo
suporte de informação e leitura e essas novas situações
discursivas, diferentes formas de ler, como dados relevantes e que merecem
atenção no que diz respeito ao fenômeno da linguagem
em discussão – o letramento.
A partir dos dois aspectos ressaltados – linguagem/leitor - torna-se
instigante observar se o contato com esses novos suportes de leitura provoca
um distanciamento do objeto-livro; se o desenvolvimento da escrita é
alterado pelo uso constante da linguagem coloquial em e-mails ou demais
escritos na Internet; se esse novo tipo de leitura virtual gera, a curto
prazo, possíveis conseqüências sociais, culturais e
lingüísticas e as implicações desse processo
de letramento mediado pela Internet na relação dos adolescentes
com a escola, entre outras questões.
O adolescente que tem acesso às novas técnicas tem em mãos
um certo "poder" de descobertas, alterações e
simulações de sua própria realidade; interage com
diferentes culturas, opiniões, textos e imagens de todos os tipos,
que circulam pelas suas mãos sem nem mesmo terem sido revisados
e “adequados a sua faixa de idade”. Todo esse aparato tecnológico
requer ou supõe um certo grau de letramento, pois esse adolescente
tem de responder às demandas tecnológicas: saber fazer uso
de seus diferentes tipos de linguagem, compreendê-las e interpretá-las.
Se o contato e o convívio com o "material impresso" levam
a tantas mudanças, “...levam o indivíduo a um outro
estado ou condição sob vários aspectos: social, cultural,
cognitivo, lingüístico, entre outros” (Soares, 2000,
p. 38), o contato e o convívio com o material proveniente das novas
tecnologias, provavelmente, alterará o potencial lingüístico,
cultural e educacional dos adolescentes participantes dessa nova sociedade
da informação, classificada por Lévy (1999) como
ciberespaço.
Soares (2002) destaca que o letramento digital constitui um letramento
entre muitos, “...diferentes letramentos ao longo do tempo, diferentes
letramentos no nosso tempo”.
Como nosso objetivo não é medir nem comparar letramentos,
e sim captar o estado ou condição que essas novas práticas
estão instituindo, afirmamos que tais práticas no novo suporte
são eventos de letramento, de um letramento digital, o letramento
na cibercultura , em que a interação do sujeito com o conhecimento
parte de suas próprias motivações, de seus desejos.
Soares nos alerta que:
“...a tela, como novo espaço de escrita,
traz significativas mudanças nas formas de interação
entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto
e até mesmo, mais amplamente, entre o ser humano e o conhecimento.
Embora os estudos e pesquisas sobre os processos cognitivos envolvidos
na escrita e na leitura de hipertextos sejam ainda poucos [...] a hipótese
é de que essas mudanças tenham conseqüências
sociais, cognitivas e discursivas, e estejam, assim, configurando um letramento
digital, isto é, um certo estado ou condição que
adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas
de leitura e escrita na tela, diferente do estado ou condição
– do letramento – dos que exercem práticas de leitura
e de escrita no papel. Para alguns autores, os processos cognitivos inerentes
a esse letramento digital reaproximam o ser humano de seus esquemas mentais”
(Soares, 2002, p. 151)
Para o adolescente internauta, todas as informações,
todas as suas buscas, se resumem num curto espaço de tempo e não
há mais distância que não possa ser superada por esse
novo meio de comunicação. Sua visão, audição,
sua leitura e escrita são capturadas por essas avançadas
técnicas que, além de facilitar a interdisciplinaridade,
atualizam a relação com o saber. Logo, todos os efeitos
da prática de leitura livre na Internet geram letramento.
Essa nova dimensão do letramento sustentada pelos novos tipos de
texto, linguagens e suportes tecnológicos "gera ou ressuscita"
o leitor que busca novidades, que vê a leitura e a escrita também
como atividades extra-escolares. O leitor que, mesmo sem perceber, tem
feito quase diariamente uso social da leitura e da escrita por meio desses
novos suportes, atualizando sua relação com as habilidades
cognitivas que a cada clique instauram uma situação discursiva
diferente.
Ao mesmo tempo em que, para os adolescentes, o fluxo da leitura na Internet
parece ser mais agradável, mais fácil, mais descompromissado,
ele requer um maior grau de conhecimentos prévios e maior consciência
quanto ao buscado. Marcuschi chama essa sobrecarga exigida do leitor de
Stress cognitivo (Marcuschi, 1999, p.23).
Para muitos leitores, ler é sinônimo de atividade escolar
e as práticas de leitura mediadas pela Internet parecem romper
com esse estigma. O adolescente frente ao computador estabelece seu roteiro
de leitura sem que seja obrigado a seguir regras ou estudos dirigidos.
Mesmo que o adolescente esteja buscando informações para
uma atividade escolar, a prática mediada pela Internet assume um
ar de não-compromisso com a escola. Chartier (1996) ressalta que
a escola coloca o problema da aprendizagem da leitura somente dentro de
uma aprendizagem escolar. Além disso, o leitor-navegador adolescente
precisa integrar a interdisciplinaridade disposta nos hipertextos. Aparentemente,
a linguagem dos hipertextos é a mesma que habitualmente conhecemos,
mas o que a abundância e os movimentos de imagens fazem com a linguagem
que o texto não faz? Em que as múltiplas possibilidades
de leitura afetam sua experiência com a linguagem? Poderíamos
chamar esses adolescentes de experimentadores/leitores que navegam errantes
por horas a fio em suas curiosas buscas? Em tudo isso, seria necessária
a procura de uma linguagem específica e mais “pessoal”
para a nova mídia. uma linguagem específica que desconsidere
as peculiaridades da leitura e da escrita como habilidades cognitivas,
tomando-as como uma mesma e única habilidade, instaurando também
uma nova relação entre autor e leitor. É, portanto,
uma linguagem híbrida, sem limites entre as habilidades cognitivas,
sem regras ainda legitimadas.
A escola tem andado a passos curtos se compararmos sua influência
com a das novas tecnologias na vida do adolescente internauta. Tal realidade
nos faz pensar se haverá uma mudança no paradigma educacional
frente às novas tecnologias, visto que elas já começam
a fazer parte do processo de escolarização desses alunos.
Haverá redefinições curriculares, ordenação
do fragmentário, aproveitamento das particularidades dos alunos?
Há uma nova demanda em todos os setores da vida educacional e profissional
no que diz respeito à leitura e escrita no computador, mas o que
se percebe é que a escola encontra-se, por vezes, apoiada no texto
impresso e os seus alunos buscam mais conhecimento na “rede”
do que na própria instituição de ensino ou nos livros
da biblioteca escolar.
Para os jovens internautas é muito mais prazerosa a “autobusca”
sem dividir conteúdos, sem imposições do que deve
ser aprendido. O adolescente em seu descompromissado passeio pela “rede”
ultrapassa os conteúdos estabelecidos pela escola. A Internet é
um novo espaço de aprendizagem, é uma “outra linguagem”.
Porém, é bom destacar que um avanço tecnológico
não anula o anterior, ou seja, as novas tecnologias não
representam eliminações ou exclusões das formas anteriores
de aprendizagem.
O papel que a escola exerce em nossa sociedade como a principal responsável
pela função de ensinar, prover conhecimentos e valores é
considerado por Soares (2000) como produtor de um letramento reduzido
e distante das habilidades e práticas de letramento que realmente
ocorrem fora do contexto escolar. A pesquisadora cita um trecho de Cook-Gumperz
que traduz exatamente tal deficiência:
“A instituição escola redefiniu o
letramento, tornando-o o que agora se pode chamar de letramento escolar,
ou seja, um sistema de conhecimento descontextualizado, validado através
do desempenho em testes”. (Cook-Gumperz, citado por Soares, 2000,
p. 85)
O aparato cultural e tecnológico que assedia os jovens diariamente
tende a mudar o paradigma educacional vigente, caracterizado pelo letramento
escolar? Conceitos como novas tecnologias, comunicação virtual,
inteligência artificial e tantos outros recursos que um computador
pode nos oferecer estão presentes na realidade e nos sonhos dos
adolescentes. As possibilidades de mudança e de uso das novas técnicas
não só encantam como interferem no processo de aprendizagem.
Lévy (1999) nos remete às interferências que as novas
técnicas têm provocado, mostrando-nos que escrita, leitura,
visão, audição, criação, aprendizagem
são capturadas por uma informática cada vez mais avançada.
Na época atual, as novas tecnologias são uma das dimensões
fundamentais em que está em jogo a transformação
do mundo pelo homem. Aprendizagens personalizadas por meio de navegação
virtual, orientação dos estudantes em um espaço do
saber flutuante e destotalizado, aprendizagens cooperativas, inteligência
coletiva no centro de comunidades virtuais, desregulamentação
parcial dos modos de reconhecimento dos saberes, gerenciamento dinâmico
das competências em tempo real; esses processos sociais atualizam
a nova relação com o saber.
A escola sempre foi a instituição à qual a sociedade
delegou a função de ensinar, prover conhecimentos e valores.
Entretanto, a escola seleciona e divide em partes o que ela acha que deve
ser aprendido pelo aluno. De acordo com Silva (1999), o currículo
existente é linear, seqüencial, estático, disciplinar
e segmentado. Nele, prevalece a separação rígida
entre “alta cultura” e “baixa cultura”, entre
conhecimento científico e conhecimento cotidiano. O currículo
segue fielmente o script das grandes narrativas da ciência e do
trabalho capitalista. Em seu centro está o sujeito racional, centrado
e autônomo da modernidade. Para o mesmo autor, o currículo
deveria ser considerado como lugar de conhecimento e poder, refletindo
e questionando as formas culturais, um currículo multicultural.
“O que caracteriza a cena social e cultural contemporânea
é precisamente o apagamento das fronteiras entre instituições
e esferas anteriormente consideradas como distintas e separadas. Revoluções
nos sistemas de informação e comunicação,
como a Internet, por exemplo, tornam cada vez mais problemáticas
as separações e distinções entre o conhecimento
cotidiano, o conhecimento da cultura de massa e o conhecimento escolar.
É essa permeabilidade que é enfatizada pela perspectiva
dos Estudos Culturais. A teoria curricular crítica vê tanto
a indústria cultural quanto o currículo propriamente escolar
como artefatos culturais – sistemas de significação
implicados na produção de identidades e subjetividades,
no contexto de relações de poder. A crítica curricular
torna-se, assim, legitimamente, também crítica cultural.”
(Silva, 1999, p. 141-142) (grifo nosso)
Mudar o currículo escolar oficial é tarefa
complexa, porque toda sua estrutura está ancorada num contexto
histórico que envolve sociedade, política, economia, cultura
etc. Não temos a pretensão de fazer uma proposta como essa,
mas que solução a escola oferecerá para assimilar
a interferência que a Internet provoca no processo de letramento
do adolescente? O ensino que a escola tem proporcionado parece estar em
conflito com o letramento digital.
São veiculados na Internet, em diferentes sites, temas que, aos
poucos, se inserem no dia-a-dia escolar e pessoal dos adolescentes: multiculturalismo,
etnocentrismo, racismo, preconceitos os mais diversos, sugerindo, assim,
uma “identidade” para esse navegador. Green e Bigun perguntam-se
sobre um novo tipo de subjetividade:
“Estão as escolas lidando com estudantes
que são fundamentalmente diferentes dos/as de épocas anteriores?
Uma questão subordinada é: têm as escolas e as autoridades
educacionais desenvolvido currículos baseados em pressupostos essencialmente
inadequados e mesmo obsoletos sobre a natureza dos/as estudantes?”.
(Green e Bigun, 1995, p.209)
Parece haver um desencontro entre o que os estudantes
adolescentes buscam e o que o currículo escolar oferece. Isto,
porque o sistema escolar é tomado como a principal via de acesso
à leitura classificada como legítima. Sendo assim, esquece-se
que é “como atividade que o currículo deve ser compreendido
– uma atividade que não se limita à nossa vida escolar,
educacional, mas à nossa vida inteira” (Silva, 1999 p.43).
Considerar esse problema e suas conseqüências para o adolescente
leitor torna-se imprescindível na tarefa de relacionar a atual
prática da leitura livre na Internet e o letramento.
Silva (1999) defende que o mundo – objeto a ser conhecido –
não é simplesmente “comunicado”; o ato pedagógico
não consiste em simplesmente “comunicar o mundo”. Em
vez disso, educadores e educandos criam, dialogicamente, um conhecimento
do mundo. Assim como a educação, outras instâncias
culturais (exibições em museus, filmes, livros de ficção,
turismo, ciência, televisão, publicidade, medicina, artes
visuais, música, etc) são pedagógicas, têm
uma “pedagogia”, ensinam alguma coisa. Tanto a educação
quanto a cultura em geral estão envolvidas em processos de transformação
da identidade e da subjetividade. Estamos enfrentando uma fase de mudanças
visíveis com relação às novas tecnologias,
são reais o letramento digital e as conseqüências dele,
toda a influência na questão da leitura e escrita e na construção
de identidades. Administrar isso é muito complicado para o sistema
escolar vigente, admitir é mais difícil ainda.
BIBLIOGRAFIA
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