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ESCAVAÇÕES NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EJA: SEGUINDO AS RAÍZES DO CAAPIÁ


Aline Dantas
Fátima Lobato Fernandes
Jane Paiva
Karyne Alves Baroldi
Sandra Regina Sales
Laboratório de Políticas Públicas/Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Fundação ABRINQ/Natura


Plantando as sementes: histórico


Desde 2002, o Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, vem desenvolvendo projetos de formação continuada de professores de educação de jovens e adultos, prioritariamente no estado do Rio de Janeiro, tanto em parceria com o governo do estado, quanto com prefeituras municipais, todas elas em cumprimento às propostas aprovadas e financiadas pelo FNDE/MEC. Em 2003, uma nova parceria se estabeleceu com o SESC Nacional, com vistas a consolidar o apoio ao Programa Brasil Alfabetizado, desenvolvido pelo governo do estado do Piauí, no tocante à formação dos alfabetizadores e da equipe de supervisão que acompanharia o Programa nas diferentes regiões do estado. Foram, desde então, experiências com 1500 professores de EJA da rede estadual, ao tempo da governadora Benedita da Silva; 34 professores de Cachoeiras de Macacu; 110 professores de Nilópolis; 75 professores de Japeri; 420 alfabetizadores das regiões de Uruçuí, Fronteiras, São João do Piauí e São Raimundo Nonato, envolvendo cerca de 45 municípios do estado do Piauí, além de uma equipe de supervisores e de representantes de ONGs parceiras, universidade e município da capital Teresina, com cerca de 60 profissionais. Todas as ações tiveram como horizonte a consolidação de um modo próprio de produzir a formação continuada de professores, com vistas a produzir, por meio desses espaços de formação, um locus de participação sistemática, no sentido de interferir/formular políticas públicas para a área de EJA.

Para a vivência dessas experiências formou-se um grupo de professores formadores, todos com histórias longas de trabalhos na educação de jovens e adultos, associados desde 1996 pela emergência do Fórum de EJA do estado do Rio de Janeiro, mas dispersos, em suas atividades cotidianas, em muitos espaços de fazer: universidades, ONGs e redes de ensino, que passaram a constituir uma equipe interinstitucional, cujos vínculos se estabeleceram a partir das concepções sobre a EJA e sobre os modos de pensar a formação continuada, em projetos construídos participativamente, experimentando um modo de operar coletivo, não-hierarquizado, partilhado e solidário.

A justificativa para a necessidade de trabalhos permanentes de formação continuada de professores de EJA no Rio de Janeiro está alicerçada no fato de que o contingente de pessoas sem escolarização, no nível de ensino fundamental — nível ao qual se preceituou, constitucionalmente, como o de direito de todos à educação — é ainda muito grande, exigindo dos sistemas públicos, além da formação, a intensificação de ações e a estruturação da oferta sistemática de atendimento em suas redes de ensino. Para se ter uma idéia da ordem de grandeza desse contingente, observa-se que o Rio de Janeiro tem, apesar de a região sudeste apresentar dados gerais de escolarização mais favoráveis em relação ao Brasil, 10.771.643 de pessoas com 15 anos e mais e conta, entre estes, com cerca de 2,6 milhões que são jovens de 15 a 24 anos, e com um percentual, no total dessa população, de 6,6% de analfabetos, dentre os quais se aponta um percentual de 4,9% de pessoas na faixa de 15 a 24 anos.

Esses dados ilustram a carência ainda fortemente encontrada no atendimento a jovens e adultos no estado, questão bastante preocupante, principalmente se estiver regida pelo princípio constitucional do direito de todos, e dever do Estado. Pode-se, no entanto, afirmar que tem sido a esfera municipal a maior constituidora da instância pública de cumprimento do dever do Estado com a educação para todos, independente da idade, embora a resposta dos 92 municípios fluminenses ao chamamento do MEC ao Programa Brasil Alfabetizado só tenha redundado em 18 municípios, em busca de recursos adicionais para a oferta de alfabetização, muitos ainda por falta de conhecimento, e até de desarticulação administrativa. Diante da política do governo federal que reorientou os recursos do Programa para as redes públicas, com vistas à continuidade de estudos após a etapa da alfabetização, percebe-se que todo o investimento a ser feito na formação de professores deve-se concentrar nessa mesma esfera de poder, fortalecendo as redes e seus profissionais, com vistas a conferir qualidade, compromisso e responsabilidade conjuntas, entre todos os parceiros que atuam em prol dessa área.

Na proposta do Caapiá, a oferta de formação de professores pautou-se exatamente por essas compreensões antes enunciadas. A formação proposta, além dessas compreensões, tem o centro sempre ocupado pelas práticas pedagógicas dos professores cursistas envolvidos, de suas concepções, e dos modos como entendem seu lugar social nas redes de ensino. Pretende-se, assim, permanentemente, trabalhar os sentidos atribuídos pelos professores à leitura desses fazeres para, dialogando com eles, e entre eles, aprofundar questões culturais, científicas, políticas e pedagógicas que emergem de suas práticas na EJA, e nem todas, leituras de fácil compreensão para os envolvidos, pela complexidade das tramas em que os professores estão enredados, nas redes de ensino e de conhecimento produzidos.

Mas ainda assim, e apesar dos acertos nessa busca por um processo singular de operar a formação continuada, muitas questões se colocaram para o coletivo interinstitucional formado, nem sempre escavadas na razão suficiente para as respostas demandadas. No entanto, essas questões jamais imobilizaram a equipe, pelo contrário, a cada projeto buscava-se alterar seus modos de interferir nas práticas pedagógicas, com os professores, reconstruindo e refazendo novos projetos.

A história do Caapiá começa quando, em 2004, a Fundação Abrinq/Natura Cosméticos lança, durante o VI Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos, realizado em Porto Alegre/RS, um concurso visando à seleção de projetos de formação continuada de professores de EJA, em todo o país, para ser desenvolvido, pela primeira vez, em 2005. Por meio do LPP formulou-se, então, o Projeto Caapiá-do-rio-de-janeiro, aprovado pela Fundação ABRINQ/Natura Cosméticos, tendo como objeto a formação continuada — com 80h presenciais e 40h não-presenciais — de 490 professores da modalidade de educação de jovens e adultos em nível de ensino fundamental, organizados em 14 turmas distribuídas em municípios selecionados, que desenvolviam EJA e tinham projetos integrantes do Programa Brasil Alfabetizado: Armação dos Búzios, São Pedro da Aldeia, Arraial do Cabo, na região dos Lagos; Itaperuna no norte fluminense; Belford Roxo, São Gonçalo, Nova Iguaçu, Queimados e Mesquita, na Baixada Fluminense. A opção pelas redes municipais se confirmava nessa escolha.

Os referidos municípios tornaram-se cúmplices e parceiros do projeto, saudando a possibilidade de, de imediato, oferecer aos professores um projeto de formação, cujo orçamento, previamente aceito, incluía uma contrapartida importante, mas viável, na realidade difícil de um início de mandato, por ter sido toda a negociação feita no mandato anterior. Deve-se destacar que esta etapa, apesar de previsível, demandou muita energia e habilidade, pois a prática e a cultura que sustentam a sociedade política mantêm idéias apequenadas, de descontinuidade, de aposta no fracasso, sem qualquer gesto de grandeza, como o de deixar, para um outro sucessor, um projeto que a gestão do momento não cumprirá. Muitos municípios, partindo dessa lógica, rejeitaram participar como parceiros do projeto — condição indispensável para a candidatura, no processo seletivo —, porque não tendo a certeza da vitória no pleito de outubro de 2004, se recusavam a favorecer o sucessor, precipuamente tomado como adversário, mesmo quando no interesse da população e para o bem do serviço público.

As secretarias de educação parceiras, em contrapartida, respondem pela alimentação dos professores, que varia em função dos horários organizados para os encontros e, com algumas exceções, esse item tem sido bem atendido pela maioria. Cópias, transporte, financiamento da programação cultural também correm por conta da prefeitura, estando os demais itens cobertos pela Fundação Abrinq/Natura Cosméticos.

A organização dos calendários, a escolha de horários e de periodicidade dos encontros foram realizadas pelas secretarias de educação, tendo em vista os cronogramas de atividades da rede nos períodos letivos, podendo incluir o dia de sábado para a formação, segundo a conveniência dos participantes. Desse modo, cada município tem seu próprio calendário, ajustando-se os formadores às datas e aos horários definidos pelos parceiros.

Uma observação relevante, ainda, focaliza a escolha do caapiá como erva-título do projeto. Simbolizando, metaforicamente, um pouco das questões teóricas que o fundamentam, cuja discussão será estabelecida nesse texto, subsidia-se, por elas, a compreensão da narrativa do trabalho que vem sendo realizado, assim como se problematizam essas mesmas questões, possibilitando o diálogo com novos interlocutores.

Caapiá (Dorstenia turneraefolia) design. Comum às ervas que ocorrem no Brasil do gen. Dorstenia, da fam. das moráceas, com raízes tuberosas e caules curtos ou com rizomas ger. cilíndricos, folhas com longos pecíolos e flores em receptáculos: contra-erva, figueira terrestre. Caapiá-do-rio-de-janeiro (Dorstenia turneraefolia) nativo do Brasil (RJ), de raiz fibrosa, lenhosa até a base do caule, casca cinzenta, escura, folhas lanceoladas, membranosas, e inflorescência solitária. Raiz e/ou rizoma dessas ervas a que são atribuídas propriedades medicinais.

 

Escavações na formação de professores de EJA: seguindo as raízes do Caapiá

A imagem do caapiá-do-rio-de-janeiro evocou em nós, por suas raízes rizomáticas, a idéia tão cara a Guattari e Deleuze (1976) — do rizoma —, simbolizando, pela disposição como se enlaça, entrelaça e expande-se, em redes complexas (ALVES, 2002), os processos de produção de conhecimento.

Nas formações de professores realizadas, tem sido possível verificar como essas redes — ou rizomas —, atravessam as fronteiras dos níveis de formação/titularidades; os tempos de magistério; a experiência anterior com a EJA; as práticas pedagógicas, para se fazerem novas e complexas formas de compreender e apreender da realidade da educação de jovens e adultos, em trançados desiguais, diferenciados, heterogêneos, mas ricos da diversidade dos saberes, produzindo mosaicos que se conectam, unem-se, dão-se nós, transpõem fios e se enredam em uma trama sempre renovável. Pela formação de professores, então, o projeto se propõe a revirar/pesquisar/esgarçar as práticas desenvolvidas; escavar em torno de conceitos estabelecidos, revolvendo os solos em que se esparramam os trançados rizomáticos dos saberes, como o caapiá, que se expande pelo solo do estado. Como ele, professores de EJA, em redes, desde a área litorânea até o norte do estado, esparramando-se pela Baixada Fluminense, lançam raízes e fecundam o solo da educação de jovens e adultos com seus saberes, suas práticas, suas (re)descobertas.

A formação é organizada em encontros pedagógicos em que o saber da prática é valorizado, tecendo redes de conhecimentos que ampliam e norteiam as práticas cotidianas, tal como afirma Oliveira (2001), em que a idéia de tessitura de conhecimento em rede busca superar não só o paradigma da árvore do conhecimento, como também a própria forma como são entendidos os processos individuais e coletivos de aprendizagem — cumulativos e adquiridos — segundo o paradigma dominante. A idéia de tessitura de conhecimento em rede pressupõe que as informações às quais são submetidos os sujeitos sociais se constituem no momento em que se enredam a outros “fios” já presentes, ganhando um sentido próprio, não sendo necessariamente aquele que o transmissor se propõe. Desta forma, a troca de informações/experiências/saberes produz aprendizagem no momento em que se articula com os interesses, crenças, valores e saberes dos sujeitos envolvidos pela situação de conhecimento proposta.

A metodologia de trabalho, então, parte do pressuposto de que os professores têm formado, em rede, ou como rizomas, nas práticas cotidianas, conhecimentos sobre os modos de aprender de seus alunos que compõem o saber docente quanto ao que é ensinar e aprender. Essas concepções orientam as práticas pedagógicas e as “artes de fazer” (CERTEAU, 1994) o currículo. A EJA tem, como princípio, o entendimento de que os saberes, produzidos ao longo da vida pelos sujeitos praticantes, são a base sobre a qual assentam seu estar no mundo, sua compreensão e as explicações sobre ele. Também professores, no processo de metacognição sobre o aprender de seus alunos, produzem conhecimentos, nem sempre suficientes para possibilitar a continuidade dos processos de aprendizagem, quanto adequados para criar ambientes satisfatórios ao aprendizado do que deve compor o currículo na educação de jovens e adultos.

Alterar os modos de fazer a formação, junto a professores que já vivenciaram, em outros projetos, também outras concepções; valorizar as ações e fazer emergir suas práticas cotidianas de sala de aula e confrontá-las; assim como confrontar as concepções docentes, constituem fundamentos da metodologia de trabalho em rede, que tem no princípio de “aprender por toda a vida” o entendimento de que professores são também jovens e adultos formando-se e constituindo-se como pessoas e profissionais nesses processos de interação e diálogo estabelecidos com seus pares, mediados pelos formadores em relação aos conhecimentos. São, estes, fundamentos de qualquer escavador, na arqueologia de formar professores, escarafunchando seus saberes. Na dinâmica da língua portuguesa, escavar significa 1. abrir cova. 2. cavar em redor. 3. tirar terra de. 4. tornar oco, côncavo. 5. pesquisar; investigar, escarafunchar. Este é um precioso verbete para sintetizar a ação central da formação que o projeto se dispôs a realizar.

A intervenção pedagógica adequada a tais profissionais é por nós denominada de formação continuada. Essa expressão traz em seu interior uma postura crítica a termos como: treinamento, capacitação, reciclagem, todos assentados em paradigmas de que o conhecimento se produz de fora para dentro, por transmissão, controlada, dosada e selecionada por aqueles que supostamente conhecem as necessidades dos formandos. Freqüentemente, por isso, baseiam-se em propostas previamente elaboradas, apresentadas aos professores para que as “implementem” em suas salas de aula, realizando “novas” práticas pedagógicas. Diferentemente dessas concepções, a formação continuada que construímos por meio desses percursos, visa a possibilitar aos sujeitos professores de EJA, integrantes das redes municipais, a tematização e a problematização das práticas nesta modalidade de ensino, alterando e reformulando as próprias práticas.

Em seminários de abertura iniciais se apresentou o projeto, assinalando o campo da EJA e a responsabilidade profissional e política dos professores; o sentido da formação continuada; negociando-se a estrutura e o funcionamento dos cursos, previamente definidos na formulação do projeto para o concurso. Sob o tema Educação de jovens e adultos: compromisso ético para consolidar o direito para todos os brasileiros, um texto foi produzido em subsídio ao momento, passando a constituir uma fonte a mais de leitura e pesquisa dos professores.

Como fundamento primeiro da formação, identificam-se os saberes dos sujeitos professores, à medida que se estabelece o conhecimento sobre eles próprios, na rede de relações e de perfis pessoais e profissionais. Biografias pessoais são fortes elementos identificadores que fornecem ricas pistas e muitos indícios que favorecem o processo de formação continuada. Em seguida, como um segundo elemento dessa produção de laços, entende-se que os professores devem ser guias e autores dos próprios processos de formação, mediados pelos formadores, que oferecem condições para que os processos de autoria se dêem. Opta-se, então, pela produção dos diários de formação, formas de registro que deverão ser, a cada encontro, realizadas por duplas de professores, e sobre os quais — os diários —, dever-se-á trabalhar coletivamente, não apenas para refletir sobre as discussões anteriormente travadas, mas para exercitar os processos de autoria e os modos de dizer que revelem os autores desses textos, com suas experiências, sentidos, pensamentos, para além do estritamente vivido pelo grupo. A escrita possibilita um afastamento da experiência, para permitir a reflexão mais aprofundada, o que implica revisitar outras experiências, assim como outros autores, textos, idéias, pensamentos e, com isso, enriquecer os momentos de experiência, compreendendo-os, então, como nova teoria sobre a prática pedagógica. O conjunto dos textos produzidos, trabalhados coletivamente em cada turma, em mediação com o formador, comporá um material substantivo, depois organizado com o concurso da coordenação pedagógica do projeto, para então, ser publicado, contribuindo como acervo e referência para os profissionais envolvidos, assim como para outros professores, em novos processos formativos.

Assim, os professores cursistas, organizados em coletivos, consolidados em encontros sistemáticos formais e não-formais, técnico-pedagógicos e culturais, participam e interagem em situações em que podem confrontar práticas e concepções, produzindo e elaborando, oralmente e por escrito, os diários de formação como registro das reflexões e de seus fundamentos, assumindo também, nesse percurso, o compromisso de rever ou elaborar o projeto pedagógico da EJA no município.

Os encontros consideram, além das demais redes de saberes de que os sujeitos participam, a vivência cultural, em diálogo permanente com as práticas pedagógicas. Sujeitos professores e sujeitos formadores durante os encontros interagem e se constituem como autores autônomos de suas atuações profissionais, ampliando o conceito de EJA para o mundo atual, discutindo e (re)formulando propostas pedagógicas que consolidam as políticas públicas de garantia, para todos, do direito constitucional à educação.

Como a formação de professores, por nós praticada, não se restringe aos momentos técnicos, nem aos saberes pedagógicos, inclui-se, por isso, no processo, uma agenda cultural que propicia, para além dos encontros técnicos, momentos culturais por meio de visitas acompanhadas, nas cidades onde vivem os professores — a agenda cultural local — e na capital do estado, cumprindo um percurso histórico-cultural que retrata a ocupação urbana e a vida na capital. Ambas as agendas, organizadas pelos coletivos, resgatam os patrimônios que integram a história, a memória, a cultura das pessoas ali viventes, oferecendo a possibilidade de provocar outros olhares sobre o mundo, sobre a própria cidade, o espaço, o tempo. Além disso, inclui-se a participação dos professores em situações de exibição e de audiência a filmes e vídeos; o uso de bibliotecas públicas; a participação em exposições, teatro e, por fim, a leitura de obras recomendadas, cultivando a literatura, a arte, a estética, como fundamentos e recursos formativos durante o curso.

A leitura de obras literárias parte das escolhas preferenciais dos professores, trazidas para os encontros, e entre eles trocadas, estimulando-se/sugerindo-se outras leituras, por meio de depoimentos dos que, sendo leitores de outras obras, participam dessa rede guiando as leituras, cujas práticas se renovam entre os professores. A saudável atividade de folhear os livros, ler os sumários, as contracapas, as orelhas, ouvir comentários de colegas, disponibilizar os livros e até de trazer novas aquisições não apenas revelam o movimento de fixação da prática da leitura entre o grupo, mas a instauração de novas práticas. Entre elas, a de introduzir o livro, como bem e objeto cultural, no rol das necessidades cotidianas, não mais se orientando, apenas, pelo discurso de “caro e quase inacessível”, para tomar o lugar de outros bens até então priorizados.

Toda a estrutura da proposta, para ser exeqüível, foi apresentada e negociada com os professores inscritos, após divulgação do curso nos municípios, estabelecendo-se o compromisso de assumir reciprocamente o acordo de trabalho fixado, com freqüência e carga horária; de acolher datas e cronograma de trabalho; de ter disponibilidade para atividades não-presenciais e para atividades culturais.

Um dos aspectos mais relevantes da metodologia, no entanto, não está, propriamente, na estrutura, nem nas atividades propostas, tampouco no fato de os professores cursistas receberem um kit contendo livros pertinentes à área.

A aposta do projeto centrou-se no modo como cada turma de professores de EJA deveria negociar seu processo de formação continuada, único para cada turma, segundo seus questionamentos, expectativas, interesses, conhecimentos, necessidades. Como foi feito esse trabalho, no dizer deste item, “seguindo as raízes do caapiá”?
Conteúdos de formação, de maneira geral, são dispostos e selecionados pelos proponentes dos cursos. Essas opções contrariam, na formação continuada, as indicações que se fazem a professores, e/ou a alunos de pedagogia e de licenciaturas, de que devem, interagindo com seus próprios alunos e saberes, mediar a organização dos conteúdos que, juntamente a tantos outros elementos, constituem o currículo dos cursos. No caso do Caapiá, este foi um rico momento de trabalho, assim desenvolvido: professores preencheram, quando convidados a participar do curso, uma ficha de inscrição que, além de dirigir a eles uma saudação como novo cursista, solicitava alguns dados e fazia perguntas relacionadas à sua formação, atuação no magistério, na EJA, suas escolhas pela modalidade, seus gostos de leitura, de lazer, locais culturais freqüentados, sugestões para melhorar a educação de jovens e adultos no município, basicamente. De posse dessas informações, mapearam-se as respostas item a item, compondo, para nós, um primeiro perfil dos sujeitos professores. Especificamente, em seguida, em novo encontro, destacaram-se as respostas sobre as sugestões para a EJA e, com elas, em diálogo com os grandes temas que o projeto original previa, propôs-se que os cursistas, em grupos, organizassem os conteúdos que comporiam a proposta curricular do curso.

Esse material, turma a turma, foi, então, trabalhado pela equipe de coordenação, formalizando a proposta curricular de cada turma, seus acordos, datas, agendas culturais, em coerência com o calendário formatado pela Secretaria de Educação. Depois, a proposta foi levada à turma, para que os professores verificassem a sistematização de seus temas e questões, e a resposta que a proposta curricular formulada dava a eles. Assim, o percurso formativo de cada turma é único, singular, apoiado, mesmo quando coincidente com o de outras turmas, pelas questões dos grupos propositores, segundo suas lógicas e formas de pensar e conceber a EJA, suas práticas, dificuldades. Todas, no entanto, têm um ponto rigorosamente em comum: o objetivo-fim do curso de, ao longo do processo de formação, e partindo da reflexão sobre as concepções e princípios da EJA dos professores, desenvolvê-los no sentido de rever/ampliar cada compreensão/aspecto da prática pedagógica; a compreensão sobre os sujeitos alunos e sujeitos professores; o sentido do currículo na modalidade educativa em questão etc., chegando-se a, dessa forma, rediscutir o projeto pedagógico da rede e, criticamente, avaliá-lo e até mesmo alterá-lo, se os julgamentos sobre ele assim indicarem. Ou seja, a finalidade última do curso é possibilitar, ao longo do processo de formação continuada, a intervenção reflexiva e pedagógica dos professores nos modos como as políticas vêm formulando a oferta de EJA e os projetos de atendimento, avalizando-os, ou transformando-os.

Algumas estratégias são valorizadas para a apropriação ampla, pelos professores, dos elementos conceituais que produzem/sustentam um projeto pedagógico. Por exemplo, a condição/realidade de seus profissionais. Voltando-se ao primeiro trabalho de sistematização do perfil dos professores, propôs-se a eles, em um dos encontros pedagógicos, por meio de diversas metodologias de trabalho, pensadas diferenciadamente por cada formador, constituir o conhecimento do grupo sobre seus pares, sobre suas escolhas pessoais e profissionais, sobre suas expectativas no curso, a partir dos dados oferecidos pela ficha, trabalhando-os sem identificação pessoal. Esse trabalho, de escavação dos sujeitos, quase sempre “abre a cova” que permite “escarafunchar” pessoas, para além dos profissionais tão-somente. A integração advinda desse momento não apenas realiza a aproximação entre os sujeitos de uma mesma escola, mas constrói identidades coletivas na rede, que passa, a partir de então, a se reconhecer como tal.

Uma outra estratégia vem sendo utilizada com relativo sucesso: uma pesquisa exploratória, proposta para que os professores (re)conheçam seus alunos, para além do que dizem conhecer. De início, levantam-se as concepções dos professores sobre os alunos, com variadas metodologias de abordagem e, quase sempre, tudo que “sabem” sobre eles, limita-se a estereótipos, ou concepções que só reforçam os estigmas que os sujeitos alunos já carregam. A partir dessas concepções, parte-se para pensar/organizar a pesquisa, escolhendo metodologias, técnicas de abordagem, etapas de trabalho etc., por unidade escolar, em pequenos grupos e, conseqüentemente, valorizando-se as propostas de atividades pedagógicas que possam, ao serem desenvolvidas, revelar os sujeitos alunos que, tomando da palavra, produzem textos com as suas histórias; se autobiografam etc. Um segundo encontro sobre o mesmo tema, depois de cerca de dois meses de intervalo, sistematiza os materiais coletados e faz a leitura compreensiva dos dados, desmitificando, na maior parte das vezes, as idéias preconcebidas que os professores tinham sobre os sujeitos alunos.

Muitas outras estratégias didáticas podem ser narradas e compartilhadas, mas para isso, será preciso avançar no tempo, para que a experiência se faça e a narrativa ganhe maior sentido.

Por último, cabe destacar que os encontros pedagógicos, componentes do processo de formação nas 14 turmas nos municípios selecionados, vêm sendo concomitantes, sob a coordenação de professores formadores, com titularidade e larga experiência, cuja participação, em cada encontro presencial, se faz pelo auto-reconhecimento de seu perfil, mais ou menos aproximado das temáticas abordadas, tanto pela vivência de experiências anteriores, quanto de pesquisas desenvolvidas no campo.

Assim sendo, cada turma vivencia a experiência de formação com muitos profissionais, e não apenas um, o que possibilita experimentar metodologias, didáticas, relações sociais, pessoais, de conhecimento diversificadas, compondo um vasto mosaico de subjetividades e possibilitando o exercício sistemático de estabelecer novos acordos, compreender propostas de trabalho segundo lógicas diversas, respeitar posições e concepções divergentes, enfim, vivenciar experiências, sendo por elas tocado, e por elas também vivenciar a prática da democracia em processos de formação e de produção de conhecimentos.

O projeto está, no momento atual, em meio do tempo reservado de dez meses para seu acontecimento integral. Nós continuaremos seguindo suas raízes, esparramadas, agora com maior profundidade, em uma rede muito mais ampla e consolidada. A escavação, portanto, deve aumentar, trazendo cada vez mais revelações, ansiedades, expectativas... e muita esperança. Mas não traz, pelo menos por hora, conclusões, acabamentos, apenas inacabamentos. Está sendo, como diria Paulo Freire. As interações entre formadores e professores são, no entanto, responsáveis por reforçar essa aposta no poder de transformar a realidade da educação de jovens e adultos, quando se produzem, em conjunto, ricas produções e situações de mútuo aprendizado, em que relações democráticas são cultivadas e onde o poder circula, sem o risco de se sentir ameaçado, porque se subverte, como fundamento da igualdade, a hierarquia de saberes, de lugares, de institucionalidades postas.

O desafio de construir processos de formação continuada para professores tem significado a possibilidade de concretizar idéias forjadas durante anos de trajetória na EJA e de estimular a luta por espaços legais, institucionais, em que os projetos políticos de atendimento pela escola e da EJA se façam como direito, fortalecendo os professores para intervir na realidade social, educacional e pedagógica, de forma qualificada, consciente e significativa.


Referências bibliográficas

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Traduzido por Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Rhizome. Paris: Editions Minuit, 1976.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação. n. 19. Rio de Janeiro: ANPEd, jan./fev./mar./abr. 2002. p. 20-28.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. O currículo e as propostas curriculares para a EJA. Texto produzido para o I Seminário com professores de EJA da rede pública estadual da Bahia, em processo de reformulação curricular, em maio de 2001.
PAIVA, Jane. Educação de jovens e adultos: compromisso ético para consolidar o direito para todos os brasileiros. Seminários de abertura do Projeto Caapiá-do-rio-de-janeiro. Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas/UERJ: Fundação Abrinq/Natura Cosméticos. fev. 2005. 5p.
PROJETO CAAPIÁ-DO-RIO-DE-JANEIRO. Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas/UERJ: Fundação Abrinq/Natura Cosméticos. out. 2004.

 
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