Cláudia Hernandez Barreiros
Jonê Carla Baião
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –
PUC-Rio
Relatamos aqui uma experiência de “ensino”
numa turma de 1ª série com fábulas de Esopo. O trabalho
desenvolveu-se durante o ano letivo de 2004, no Colégio de Aplicação
Fernando Rodrigues da Silveira- CAP/UERJ.
O interesse inicial pelo gênero fábula deveu-se à
sua riqueza para explorar questões formais importantes no processo
de consolidação da base alfabética: narrativas curtas,
ricas em sinais de pontuação e diálogos. Na confluência
com os estudos sobre a Grécia – 2004, ano de olimpíada
– estudamos a “vida” e a “obra” de Esopo.
Iniciamos o projeto com “Esopo e a língua” e concluímos
com “Uma fábula sobre a fábula”, ambas de autoria
desconhecida. Nessa comunicação, nos interessam algumas
reflexões sobre como esses textos repercutiram no trabalho com
as crianças e algumas das leituras que circularam nas discussões
da turma a partir desses e de outros textos.
“Alfabetizar letrando significa orientar a criança para que
aprenda a ler e a escrever levando-a a conviver com práticas reais
de leitura e de escrita: substituindo as tradicionais e artificiais cartilhas
por livros, por revistas, por jornais, enfim, pelo material de leitura
que circula na escola e na sociedade, e criando situações
que tornem necessárias e significativas práticas de produção
de textos.” (Soares, 2000)
Dando continuidade à orientação do
trabalho com a língua portuguesa iniciado na Classe de Alfabetização,
na primeira série, prosseguimos em nossa perspectiva de “alfabetizar
letrando”.
Desse modo, o tema “Grécia” chegou a nós por
algumas entradas. A realização da Olimpíada 2004
e sua conseqüente repercussão na mídia foi uma delas.
Outra foi descobrir que o local de nascimento da personalidade Esopo,
estudada por nós via fábulas, nasceu na Grécia Antiga
e se remete em suas narrativas a alguns personagens da Mitologia Grega.
Uma terceira entrada foi o interesse especial que alguns meninos da turma
já manifestavam previamente sobre o assunto mitologia.
Durante o primeiro bimestre, estivemos nos acercando do tema e reunindo
um pequeno acervo para pesquisas. A roda de leitura-notícias foi
um espaço privilegiado para o estudo do assunto Grécia;
passamos a tematizar também a leitura de jornal em torno dos Jogos
Olímpicos em sua fase preparatória.
Criar espaço em nossa prática pedagógica para a formação
de leitores é princípio norteador de nosso trabalho, porque
acreditamos que:
“O problema é que a escola só acredita e aceita ser
possível a ocupação desses lugares depois que a criança
já é (considerada) leitora e escritora. E o que é
ser “leitora e escritora” na escola? É decodificar
e codificar mensagens por escrito; é ler e escrever “com
sentido”. Mas ler com sentido é a última etapa que
a escola espera da criança no processo de alfabetização.
A escola não trabalha o ser, o constituir-se leitor e escritor.
Espera que as crianças se tornem leitoras e escritoras como resultado
do seu ensino. No entanto, a própria prática escolar é
a negação da leitura e da escritura como prática
dialógica, discursiva, significativa.” (Smolka, 1988: 93).
Assim, a prática da leitura/escrita como dialógica,
discursiva e significativa mostrou-se com o envolvimento das crianças
sobre o tema Grécia, que dialogava com a Olimpíada Mundial
e com a própria Olimpíada que o Colégio tradicionalmente
desenvolve ao fim do ano letivo (no ano de 2004 tivemos a XXXII Olimpíada
Cap/Uerj), bem como dialogava com o trabalho de leitura e desvelamento
da vida e obra de Esopo. Essa prática revela que:
“(este ponto de vista) inclui o aspecto fundamentalmente social
das funções, das condições e do funcionamento
da escrita (para que, para quem, onde, como, por quê). O que aparece
também como relevante(...) é a consideração
da atividade mental da criança no processo de alfabetização
não apenas como atividade cognitiva, no sentido de estruturação
piagetiana, mas como atividade discursiva, que implica a elaboração
conceitual pela palavra. Assim ganham força as funções
interativa, instauradora e constituidora do conhecimento na/pela escrita.”
(Smolka, 1989[1988]: 63)
Por que as Fábulas na primeira série do
ensino fundamental?
No final do ano letivo da classe de alfabetização,
encaminhamos às famílias a lista de materiais a serem utilizados
na primeira série, onde constava o livro “Fábulas
de Esopo” da Ediouro.
Desse modo, esperávamos que todas as crianças tivessem o
livro desde o primeiro dia de aula para que começássemos
uma exploração ordenada pelo gosto e desejo de cada um/a.
Em ano de Olimpíada e, principalmente, sediada na Grécia,
Esopo torna-se um personagem a pesquisar. Quando ele viveu? Em que acreditava?
Como era sua vida? Como ele era? Por que as fábulas?
Estudamos a biografia de Esopo. Buscamos fotos de Esopo. Recriamos seus
traços.
O trabalho foi flagrado com a leitura do texto “Esopo e a língua”.
O debate acerca da temática desse texto remeteu às relações
em sala de aula, de como as crianças se relacionavam com as coisas
que diziam umas das/às outras. Esse debate permitiu uma reflexão
das relações, atitudes, posições das crianças
com o espaço escolar.
A riqueza da leitura das fábulas especialmente se deu por ser um
tipo de texto que se mostra rico para explorar algumas questões
formais importantes no momento em que se dá a consolidação
da conquista da base alfabética: é uma narrativa curta,
rica em sinais de pontuação, com presença de diálogos
e, portanto, marcação de turnos.
É um texto de estrutura narrativa e que apresenta forte teor argumentativo;
que trabalha com perspectivas dos diferentes lugares de quem fala; de
que lugar se fala e por que e como se fala. Comentar, argumentar, recriar,
ressituar os personagens e fatos das fábulas permite um jogo que
mistura ficção e realidade. A ficção das fábulas
nos permite uma imediata reflexão que nos reportam para as realidades
das atitudes humanas. Os personagens e as ações nas fábulas
permitem diferentes diálogos com as situações cotidianas
vividas pelas crianças. Também vamos percebendo como essas
narrativas se relacionam com o nosso cotidiano, mesmo tendo sido escritas
há tantos anos antes de Cristo.
Observamos em seu texto econômico a presença obrigatória
da moral. A moral das fábulas mostra-se como um recurso à
parte para a interpretação dos textos lidos: um texto dentro
de outro texto.
O interesse das crianças por estas narrativas tem sido imediato.
A vontade de ler um texto atrás do outro encanta as crianças
num jogo de disputa: “quem ler mais”.
Fomos lendo algumas fábulas e estudando seu “modo de dizer”,
ou sua estrutura. Aprender a identificar parágrafos; discursos
diretos e indiretos (nas falas dos personagens e narrador) tornou-se um
desafio a mais.
O processo de escolha das nossas fábulas preferidas foi outro momento
de partilhamento entre as crianças. Em grupo debatiam quais e por
que fábulas tinham selecionado para montar o livro intitulado “minhas
fábulas preferidas”. Produziram um livrinho com especial
atenção para a linguagem não-verbal; o desenho das
fábulas e o cuidado com a apresentação gráfica;
o cuidado com o desenho da letra cursiva, recente desafio para os alunos
de primeira série que estavam acostumados mais com a letra em caixa
alta. O resultado desse trabalho foi um pequeno livrinho só delas,
preparado para presentear alguém querido/a.
Em nosso trabalho de consolidação da alfabetização
entendemos que a Leitura e Escrita na escola não podem ser sem
sentido ou função para as crianças, porque:
“Não se trata, então, apenas de “ensinar”
(no sentido de transmitir) a escrita, mas de usar, fazer funcionar a escrita
como interação e interlocução na sala de aula,
experienciando a linguagem nas suas várias possibilidades. No movimento
das interações sociais e nos momentos das interlocuções,
a linguagem se cria, se transforma, se constrói, como conhecimento
humano”. (Smolka, 1989: 45 - grifos nossos)
Percebemos como as crianças, ao longo dos terceiros e quarto bimestres,
já demonstravam um vasto repertório das fábulas de
Esopo e de algumas diferentes versões para muitas delas. O confronto
das diferentes versões, das diferentes opiniões de cada
criança acerca de qual fábula gostou mais ou não
e por que, motivava na sala de aula um espaço de maior argumentatividade
entre as crianças. Convencer o colega a ler tal versão ou
tal fábula era mais do que dizer “leia porque gostei”
.
Nesse processo vimos que no jogo das relações sociais o
homem age sobre o mundo e as pessoas com um determinado ponto de vista,
há sempre um fim a ser atingido, escolhemos determinadas maneiras
para atingirmos esta finalidade, ou seja, escolhemos o modo de produção
do discurso que ditará a intenção do sujeito no momento
de sua enunciação:
“A interação social por intermédio da língua
caracteriza-se fundamentalmente, pela argumentavidade. Como ser dotado
de razão e vontade, o homem constantemente, avalia, julga, critica,
isto é, forma juízos de valor. Por outro lado, por meio
do discurso ? ação verbal dotada de intencionalidade ? tenta
influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe determinadas
opiniões”. (Koch, 1987;19)
Quando a autora fala em argumento, fala na intenção de conduzir
o interlocutor a uma determinada conclusão, ponto de vista. “As
relações discursivas, são pois, aquelas de caráter
eminentemente subjetivo, já que dependem das intenções
do falante, dos efeitos a que este visa ao produzir o seu discurso”
(Koch, 1987: 33). E o modo é marcado por traços lingüísticos
que anunciam esta intenção do locutor.
Muitas vezes o argumento em defesa de uma fábula deu-se através
de resenhas escritas que fizeram parte do caderno de roda literária
das crianças. Exploramos as diversas estruturas textuais: fizemos
estórias em quadrinhos, dramatizamos os textos originais, resenhamos
os textos, fizemos outras versões, fizemos reescritas dos originais.
Assim, a culminância do trabalho com a entrega dos livros que reuniam
as fábulas selecionadas por cada criança mostrou-se um espaço
rico de diálogo com a apresentação às famílias
dos argumentos/diálogos construídos por aquela turma especialmente
ao longo daquele ano letivo. Os livros foram resultados dos confrontos,
disputas, prazeres que a leitura de cada fábula teve na constituição
daquele grupo em particular.
Esse trabalho nos permitiu pôr em prática o espaço
da linguagem como espaço de argumentatividade e não só
de criatividade, no sentido que a escola tradicionalmente atribuiu à
linguagem nas séries iniciais, em textos inventivos de narrativas
..fantasias... todos ao modelo do “era uma vez” e “foram
felizes para sempre...”. A diversidade textual tem de estar na escola
de fato, as estratégias textuais de que lança mão
falante/ouvinte também precisam ser valorizadas nas tarefas escolares,
pois a criança mostra que sabe muito mais do que a escola pensa
que pode ensiná-la....sobre o uso da língua.
Áreas de conhecimento e conteúdos
Filosofia: ética
História: Grécia Antiga, Esopo como personagem histórico,
apropriações de fábulas no Brasil, relação
com os provérbios e ditos populares.
Língua Portuguesa: pontuação, estrutura narrativa,
metáforas, diálogos; síntese, tema central.
Matemática: paginação, ordenação, contagem
de datas, contagem de fábulas já lidas e ainda por ler.
Habilidade: emprego de letra cursiva.
Atividades previstas
? Exploração do sumário do livro e da paginação.
? Decorar e “recitar” fábulas aos/às colegas.
? Ler em coral.
? Discutir as morais das histórias, relacionando-as com situações
de nosso cotidiano.
? Ilustrar as fábulas.
? Decorar e reescrever fábulas.
? Fazer diferentes versões das fábulas.
? Ler fábulas marcando os sinais de pontuação para
usar na reescrita.
? Pesquisar sobre a vida de Esopo.
? Relacionar a vida de Esopo e o conteúdo de muitas fábulas
ao período da Grécia Antiga.
? Relacionar algumas fábulas com o estudo da mitologia grega e
seus deuses.
? Contar as fábulas já lidas e as que ainda faltam ler.
? Agrupar as fábulas por temáticas, por gosto, ou por outros
critérios.
? Ler fábulas à sua escolha.
? Reescrita e versões de fábulas com uso do recurso do computador.
? Preencher tabela de modo a marcar a data em que foi lida a fábula,
qual o seu tema ou assunto central e uma rápida apreciação
crítica sobre cada uma do tipo gostei, não gostei, tédio,
amei, etc.
? Comparar as diferentes versões de uma mesma fábula, inclusive
versões musicadas.
Referências bibliográficas:
DEPARTAMENTO DE ENSINO FUNDAMENTAL. Concepções
de Ensino Aprendizagem do Departamento de Ensino Fundamental. Rio de Janeiro:
Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, 2000.
(mimeo)
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez,1994.
KOCH, Ingedore. A Interação pela linguagem. São Paulo:
Contexto, 1997
KRAMER, Sonia. Por entre as pedras – arma e sonho na escola. São
Paulo: Ática,1993.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
SOARES,Magda. Letramento: um tem em três gêneros.Belo Horizonte:
Autêntica, 1998.
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A Criança na Fase inicial da Escrita.
Unicamp: Cortez, 1989.
http://www.metaforas.com.br/
http://www.rainhadapaz.g12.br/projetos/portugues/generos_textuais/fabulas/home.htm
http://www.radames.manosso.nom.br/retorica/fabula.htm
http://quimica.fe.usp.br/telescola/professores/zelinda-luciana/versoesdeumafab.htm
http://warj.med.br/lit/lit09a.asp
http://warj.med.br/re/1/n2-art07.asp?rev=1
SALEM, Nazira. História da literatura infantil. São Paulo:
Mestre Jou; 1970.