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  MOBILIZAÇÃO ESCOLAR EM MEIOS POPULARES: ESTUDO DE UM CASO IMPROVÁVEL

Ana Cristina Gonçalves Carvalho (UFMG)
Antônio Augusto Gomes Batista (Ceale /UFMG)
Ana Maria Oliveira Galvão (UFMG)

1- Apresentação

A temática deste estudo se insere no campo das pesquisas sobre a relação entre família e escola. Através da análise sociológica, busquei entender a estreita conexão entre esses dois territórios: vida familiar e vida escolar, na tentativa de reunir elementos para contribuir para a compreensão dos meios e das condições para que uma mãe proveniente de uma família dos meios populares, apesar de um contexto desfavorável, pudesse desenvolver uma forte mobilização pela escolarização de seus filhos.

De acordo com Romanelli (2000), as duas instituições, família e escola, não podem ser consideradas de forma abstrata, de um modo dissociado de suas condições históricas e socioculturais. As famílias das camadas populares e das camadas médias adotam práticas distintas para favorecer a escolarização dos filhos. Ao explicitar essas variações torna-se necessário superar análises deterministas da relação entre as condições sociais e escolares dos meios populares, e pensar a articulação entre os processos, o contexto, as estruturas e a participação dos atores sociais.

2- A pesquisa: objeto e diretrizes metodológicas

O objetivo principal deste estudo é apreender os fatores e suas relações, bem como os processos que, ao longo da trajetória de uma mãe de meios populares, criaram condições para uma forte mobilização para o processo de escolarização de seus filhos.

De acordo com os estudos sobre as relações família e escola (LAHIRE, 1995; VIANA 1998; NOGUEIRA, 2000), essa forte mobilização é mais comum em famílias das classes médias, sendo, portanto pouco provável nas camadas populares. O surgimento do interesse pelo caso deve-se ao fato de o objeto de estudo ser um fenômeno estatisticamente improvável.

Além da relevância no campo acadêmico, vale ressaltar a importância social do estudo, uma vez que a falta de mobilização escolar das camadas populares é apontada como um dos grandes problemas da educação brasileira. Nesse sentido, entender um caso de sucesso permite compreender melhor o que a família tem feito para que os filhos sejam bem sucedidos na escola.

A pergunta, desse modo, que orienta essa pesquisa é: como e por que, apesar das condições socioeconômicas, culturais e escolares pouco favoráveis à atenção e investimento na escolarização dos filhos, essa mãe desenvolve um conjunto de estratégias para assegurar o sucesso escolar de seus filhos?

Nesse estudo, o termo mobilização é utilizado não para se referir apenas ao interesse dos pais pelo processo escolar de seus filhos, mas também para designar “o conjunto de práticas e atitudes voltadas intencionalmente para o rendimento escolar dos filhos” (VIANA, 1998, p.67). De acordo com Maria José Braga Viana (1998), as práticas sinalizadoras da mobilização podem ser entendidas como “investimento escolar familiar”:

“(...) o que está subjacente a uma tal conceitualização é o fato da escola se configurar como prioridade familiar no cotidiano. A idéia central é a da intervenção, da elaboração de projetos, de acompanhamento da escolaridade dos filhos.” (VIANA, 1998, p.67)

As estratégias de mobilização escolar se manifestam em algumas condutas, tais como: escolha dos estabelecimentos de ensino e das carreiras escolares; controle sistemático das atividades escolares; acompanhamento das atividades escolares; envolvimento com a escola; dispêndios financeiros para a aquisição de materiais escolares e extra-escolares; práticas como contar histórias, contratar professoras para realizar atividades de reforço e encaminhar a criança a especialistas como fonoaudiólogo e psicólogo.

Tracei o perfil dessa mãe para apreender os elementos que podem ter viabilizado sua mobilização, tais como as configurações familiares – de origem e atual – sua relação com o aprendizado, a relação com as professoras de seus filhos, o que pensa da escola, a função que atribui a ela, a representação de sucesso escolar que almeja para os filhos, dentre outros aspectos.

Acredito que a triangulação de dados (obtidos por meio da família, da escola e outros informantes), ancorada na noção de configuração familiar, permite atribuir uma maior inteligibilidade aos elementos que construíram tal mobilização. Pretendi, assim, apreender a tessitura das interdependências que permitiram reunir elementos para, em estudos posteriores, responder às seguintes perguntas: em que consiste e como se expressa a presença de uma determinada família de meios populares no percurso escolar dos filhos? em que essa mobilização se diferencia das características mais gerais das famílias de classes médias? quais os custos dessa mobilização? como essa mãe concebe e se posiciona em relação ao futuro dos filhos? Enfim, como se manifesta e o que pode explicar sociologicamente a forte mobilização de uma mãe das camadas populares pela escolarização dos filhos?
Para compreender a singularidade do caso, o conceito de configuração social – especialmente o de configuração familiar – será de grande importância. De acordo com Nogueira (2003), baseando-se nas reflexões de Lahire (1997, p.39-40), uma configuração social consiste no:

“Conjunto de elos que constituem uma ‘parte’ (mais ou menos grande) de realidade social concebida como uma rede de relações de interdependência humana.”(NOGUEIRA, 2003, p.105)

Além desse conceito, foram utilizados resultados de estudos que descrevem fatores em torno dos quais as famílias de meios populares se mobilizam para assegurar o sucesso escolar dos filhos. Analisando o sucesso e o fracasso escolar de crianças desses meios, Lahire (1997) evidencia cinco traços a serem considerados como pertinentes na leitura sociológica das relações de crianças e suas famílias com a escola. Esses traços são: as formas familiares da cultura escrita; as condições e disposições financeiras; a ordem moral doméstica; as formas de autoridade; as formas familiares de investimento pedagógico.

Utilizo a expressão meios populares pelo fato da família pesquisada pertencer a segunda mais baixa classificação das ocupações proposta por Pastore e Silva (2000) para caracterizar a situação econômica alcançada pelos indivíduos que ocupam as diferentes posições da divisão técnica do trabalho. Os autores classificam como “grupo baixo superior” os trabalhadores urbanos não qualificados como comerciantes por conta própria, serventes, trabalhadores braçais sem especificação, vendedores ambulantes e empregadas domésticas. A mãe da família pesquisada encontra-se nesse grupo de trabalhadores sem especificação, é empregada doméstica.

A questão central deste estudo é: quais os meios e as condições que possibilitaram a essa mãe de meios populares mobilizar-se fortemente – apesar do contexto desfavorável – pela escolarização de seus filhos? Esse questionamento se desdobra em outros: como se expressam as manifestações de mobilização dessa mãe? quais os fatores da sua trajetória social e escolar que podem explicar essa mobilização?

3- Metodologia

A pesquisa constituiu um estudo de caso. Para a obtenção dos dados utilizei duas estratégias: a entrevista e a observação ‘in locu’. As entrevistas foram realizadas a partir de um protocolo com os tópicos a serem abordados. Gravei as entrevistas para que nenhum dado se perdesse e, em seguida, fiz sua transcrição. Convém dizer que os entrevistados foram, para possibilitar a triangulação dos dados, membros da família (mãe e filhos), bem como as irmãs de Nina que participam da vida cotidiana da família, seu atual e antigo empregador.

Para a elaboração da pesquisa, foi realizada uma entrevista piloto com a mãe, na qual pude perceber a singularidade do caso, o que despertou em mim grande interesse pela pesquisa. Pude observar como ela se diferencia por possuir comportamentos que vão além dos esperados e tradicionalmente vinculados às camadas populares.

Neste caso o fenômeno da forte mobilização se confunde com o contexto familiar. A escolha do caso pesquisado pode ser justificada por duas razões: em primeiro lugar, por serem, os estudos nesse campo, ainda incipientes, sobretudo no Brasil. Em segundo lugar, utilizando as palavras de Yin (2001), pela necessidade de “compreender fenômenos sociais complexos”, o que permite uma “investigação para se preservar as características holísticas e significantes da vida real”. (YIN, 2001, p.21).

Convém ressaltar que esse estudo é uma oportunidade de salientar o efeito da escala de observação sobre a ênfase dada à pluralidade interna própria a cada indivíduo e à variação intra-individual dos comportamentos. Lahire (2004) incita que o próprio ato de comparar é uma maneira de tornar homogêneos aqueles que pertencem ao mesmo grupo. Por outro lado, as análises das frações de classes ou das categorias diferentes dentro de um mesmo grupo (conforme o sexo, a idade, a escolarização, as configurações familiares) quebram a homogeneidade desses grupos.

4- Procedimentos de análise

Os procedimentos de análise foram determinados na medida em que os dados foram sendo coletados e organizados de maneira a possibilitar a construção de um perfil sociológico. De acordo com a pesquisa de Lahire (1997), no trabalho de construção de um perfil:

“esforçamo-nos [...] para organizar sociologicamente, a partir de uma construção particular do objeto, o material oriundo da observação de realidades sociais relativamente singulares.” (LAHIRE, 1997, p.71)

O comportamento dos diferentes membros da família não pode ser analisado de forma descontextualizada, daí a necessidade da reconstituição da tessitura das interdependências. Na tentativa de trabalhar cada traço separadamente, acabaríamos perdendo de vista os “entrelaçamentos concretos”. (LAHIRE, 1997, p.73) Portanto, ao descrever e analisar o conjunto de fatores que possibilitaram à mãe uma forte mobilização pela escolarização dos filhos, busquei levar em conta as relações de interdependências entre esses fatores.

5- Os sujeitos da pesquisa

O caso pesquisado é o de Nina , uma mãe negra, solteira de meios populares. Ela tem 35 anos e trabalha como empregada doméstica para uma família das classes médias intelectualizadas.
Estudou até a 7ª série e tinha, no início da pesquisa, planos de voltar a estudar em uma escola, próxima de sua casa, que oferece Educação de Jovens e Adultos no turno da noite. Nina nasceu em Belo Horizonte, cidade onde mora com seus três filhos. Ela os cria praticamente sem a presença do pai, que ajuda financeiramente de modo esporádico. Seus filhos são: Peter (8), Rafael (6) e Larissa (4).

A escolha desta família se justifica por tratar de uma mãe que tem uma forte mobilização pela escolarização dos filhos, traduzida numa escolha ponderada do estabelecimento de ensino, na busca de informações sobre as redes e escolas públicas, na busca de acumulação de livros infantis e mobiliário para o estudo (estantes, escrivaninha), no trabalho voluntário em creche, num contato freqüente (e muitas vezes difícil) com os professores do primeiro filho, no encaminhamento do segundo filho a fonoaudiólogo (em função de problemas na fala, Nina decidiu corrigi-los para assegurar uma alfabetização bem sucedida).

Além disso, o filho mais velho apresenta considerável gosto pelas práticas escolares. Isso o destaca dos demais alunos e o faz ser considerado, pela mãe e pela professora, como um caso de sucesso escolar. O menino foi alfabetizado antes de entrar para a escola, tem desenvoltura nas práticas de leitura e pretende se tornar escritor.

6- A CONSTRUÇÃO DO PERFIL: a família de origem

6.1- Construindo as origens

O pai de Nina tem 72 anos, é o caçula de uma fratria composta de duas filhas e dois filhos. Ele nasceu em Almenara e foi para Belo Horizonte, pela primeira vez, aos 15 anos, retornando mais tarde. Trabalha como pedreiro, é separado e reside no mesmo bairro que sua filha (o bairro São Bernardo). Estudou até a 1? série. Voltou a estudar em uma turma de educação de jovens e adultos no início de 2004, na qual concluiu a 3? série, parando de estudar no ano seguinte.

“retornar a escola pode dar apenas prosseguimento a uma escolaridade acidentada, conforme se pode verificar por meio de vários exemplos nos quais essas tentativas foram também acompanhadas por meio de novas interrupções.” (ZAGO, 2000. p. 27)

A mãe de Nina nasceu em Pedra Azul, sendo a filha mais velha entre três filhos. Veio para Belo Horizonte aos 20 anos, sozinha, para trabalhar como empregada doméstica. Apesar de ter estudado apenas até a 3 série, sempre incentivou, de acordo com Nina, a inserção dos filhos na cultura escrita. Foi em Belo Horizonte que os pais de Nina se uniram, sendo que sua mãe já tinha a primeira filha de outro relacionamento. Também em Belo Horizonte, os pais, se tornaram, de acordo com Nina, “crentes”, freqüentando a Igreja do Povo de Deus. A mãe faleceu aos 52 anos.

De acordo com Nina, seu pai não se interessava muito pela escolarização dos filhos, mas também não era sempre que podia ajudar comprando algum material, pois ele “desempregava” rápido. Isso ficava por conta da mãe. “Essa sim era muito atarefada, trabalhava o dobro”, e às vezes precisava vender alguma coisa da casa para conseguir pagar a passagem dos filhos até a escola, pois não havia escola perto de casa como atualmente. Enquanto sua mãe cozinhava, queria saber o que os filhos tinham aprendido na escola e sempre acompanhava a tarefa de casa.

Nina é um dos 12 filhos do casal. Nina pertence à primeira geração da família nascida em Belo Horizonte, após a migração de seus pais, originários de regiões muito pobres de Minas Gerais. Viveu toda a sua infância e adolescência no bairro São Bernardo, pertencente à Regional Venda Nova, da cidade de Belo Horizonte. Ela tem maior convivência com as irmãs, por isso não pude obter dados mais aprofundados referentes à mobilização escolar dos irmãos, com os quais, segundo ela, tem pouco contato.

6.2- A escolarização de Nina

A escolarização de Nina é um dos elementos que podem contribuir para entender a forte mobilização dessa mãe em relação à escolarização dos filhos. Nina compreende a importância do papel da sua mãe no seu processo escolar e faz o possível para garantir esse investimento para os filhos.

Era muito difícil para a mãe de Nina conseguir comprar material escolar para os onze filhos, sendo preciso que uma irmã estudasse de manhã e Nina à tarde. Assim, ela esperava sua irmã chegar da aula para utilizar a pasta, o caderno, o uniforme e os sapatos, mesmo tendo “diferença de gordura”, segundo ela. Apesar das dificuldades, dois dos seus três irmãos do sexo masculino conseguiram concluir o ensino médio.

Nina lembrou-se com alegria de quando foi alfabetizada. O sucesso na sua alfabetização resultou em um grande prêmio: o uniforme, para não precisar usar o da irmã. Nas palavras de Nina, “como eu aprendi a ler rápido, a escola me deu o uniforme. Como foi bom!”. Nina lembra-se de que, ao aprender a ler, praticava em casa através da leitura da Bíblia, pois segundo ela, não possuía outro material de leitura. Sua mãe pedia para ela ler um salmo e depois escrever sobre o que havia lido. Quando estivesse errado ou com letra feia, tinha que apagar e fazer tudo novamente. Nessa atitude pode-se perceber o valor que a família atribuía ao texto religioso. Para um produto cultural ser consumido, é preciso que este tenha adquirido um valor, ou que tenha sido desenvolvida uma “crença no valor do produto”, nos termos de Bourdieu (1996. p.239-240). Assim, em sua socialização primária, Nina pôde encontrar um ambiente favorável à escolarização e à leitura.

Lembra-se de que, como sua mãe não tinha muito tempo, era a irmã mais velha que tinha o hábito de inventar histórias para os irmãos, à noite, antes de dormir. Contava os contos de fada que havia ouvido na escola. “Lá em casa era assim, um filho cuidava do outro quando minha mãe não estava em casa.”

Nina diz que “desanimou da escola” porque tinha muita dificuldade de fazer prova. Estudava, ficava nervosa, não conseguia passar para o papel aquilo que ela sabia, tirava nota baixa, “tomava bomba“ e chorava muito. Então começou a ficar triste ao ver a irmã seguir para a série seguinte e ela ficando para trás.

Nina tem duas irmãs que voltaram a estudar, bem como o pai e, pelo menos, um de seus irmãos também voltaram para a sala de aula. Essa retomada de estudos em sua família parece ser um dos fatores que desencadearam sua vontade de fazer o mesmo, engendrando nela a impressão de uma carência ligada a uma trajetória escolar difícil.

No início de 2005, Nina, de acordo com o desejo que já expressara nos momentos iniciais da pesquisa, voltou a freqüentar a escola no período da noite, mas, segundo ela, não tinha tempo de acompanhar as atividades escolares dos filhos e resolveu deixar a escola. Uma de suas irmãs, continua estimulando para que ela volte a estudar. Esse é o plano de Nina para o próximo ano, pois ela sente muita falta da escola, até mesmo para conversar com as pessoas. Apesar de Nina se mostrar sempre muito articulada e atenta a sua fala, diz que tem um “português muito pobre” e precisa aperfeiçoá-lo. Talvez essa diferença entre sua linguagem e aquela esperada pela escola tenha contribuído para o seu fracasso:

“O fracasso ou o sucesso escolares podem ser apreendidos como resultado de uma maior ou menor contradição, do grau mais ou menos elevado de dissonância ou de consonância das formas de relações sociais de uma rede de interdependência a outra” (Lahire, 1997. p.19)

A irmã de Nina apresentou uma justificativa semelhante à dela por ter voltado a estudar. Segundo essa irmã, sentiu a necessidade de voltar a estudar porque, como havia ficado muito tempo fora da sala de aula, tinha esquecido muita coisa, o que comprometia a ajuda que poderia dar no “para casa” das filhas. Essa volta aos estudos parece estar muito além do seu desejo pessoal, constituindo, antes, uma estratégia para continuar supervisionando e acompanhando as tarefas escolares dos filhos.

6.3- Trabalho

O trabalho de Nina é um meio pelo qual ela tenta aproximar-se da cultura escrita. O fato de ela trabalhar para uma família intelectualizada, pode ser um dos elementos que viabilizam a forte mobilização dessa mãe. A tentativa de aproximar os seus filhos do universo da cultura escrita, assim como na casa onde trabalha, pode ser uma das estratégias da qual Nina lança mão.

Nina começou a trabalhar com nove anos de idade. Ela ajudava as vizinhas nas tarefas de casa, ganhando algum trocado que entregava à mãe para ajudá-la nas despesas da casa. Seu envolvimento cada vez maior com o trabalho, além das dificuldades apresentadas anteriormente, a fez desanimar de estudar. Afinal, pensava: ”se estudar é pra gente ter um serviço, eu já tenho o meu, então vou estudar pra quê?”.

Nina, em seus três últimos empregos, trabalhou para famílias de professores universitários da Faculdade de Educação da UFMG como empregada doméstica. Atualmente trabalha para um professor residente no Bairro Castelo, na região da Pampulha. Nina tem uma relativa autonomia para fazer seus horários de trabalho, mas, em geral, trabalha de segunda a sexta-feira, de 10 às 16 horas. Além das tarefas de lavar, passar, cozinhar, arrumar a casa, lavar as louças, Nina controla a dispensa, atende ao telefone, faz todas as compras e, o que não é muito comum, se encarrega de contactar e contratar serviços, como os de conserto de aparelhos, roupas e equipamentos. Em seu trabalho Nina utiliza a escrita para fazer lista de compras e anotar recados para o professor, recebidos por telefone.

Acredito que Nina utiliza o trabalho como uma estratégia para aproximar da leitura e da escrita e obter informações que constituam recursos para a escolarização dos filhos. Ela procura, com bastante freqüência, se inteirar de discussões na área da educação, através do professor para quem trabalha, perguntando, pedindo informações, livros e publicações. Ela possui, por exemplo, o jornal para alfabetizadores “Letra A” (pedindo, inclusive, a seu empregador, um exemplar para levar para as professoras dos filhos) e me indicou, para leitura um livro que estava lendo, que havia tomado emprestado de seu patrão.

Nina teve seu primeiro filho nos Estados Unidos. Tinha ido trabalhar no país para uma professora universitária que estava fazendo o doutorado e a levou para cuidar dos filhos. Nina disse que não sabia que estava grávida quando deixou o Brasil. De acordo com sua versão, quando descobriu a gravidez, quis voltar, mas já estava com sete meses e a professora teria sugerido que ela tivesse o filho nos Estados Unidos, para não precisar voltar sozinha, uma vez que estaria tendo muito enjôo e problemas de saúde por causa da gravidez.

Nina voltou para o Brasil quando o filho estava com seis meses de idade. Foi, de acordo com ela, o tempo necessário para organizar os papéis de registro do filho no país. Esse fato justificaria o nome do filho ser Peter. Segundo a mãe, queria um “nome forte”, pensando então em Pedro. Mas sua patroa teria sugerido que o registrasse como Peter. A mãe critica os brasileiros que têm o nome estrangeiro. E por esse motivo não colocou nome estrangeiro nos irmãos de Peter: Rafael e Larissa.

Ainda no que se refere à nacionalidade estrangeira do filho mais velho, Nina disse que isso seria motivo de tristeza para ela, porque teria medo de ele querer ir morar em seu país de origem e deixar a família. Por outro lado, vê um ponto positivo, ele poderia entrar no país quando quisesse. De acordo com Nina esse é um dos planos de Peter: ir para os Estados Unidos trabalhar, construir uma casa e levar cada um de sua família – mãe, irmãos e avô materno.

São esses planos, bem como informações obtidas pela triangulação de dados, que me fizeram enfatizar como “versão” a narrativa de Nina a respeito do nascimento de Peter. O parto nos EUA, a escolha do nome e o registro parecem constituir uma estratégia, denegada e conflituosa, de obtenção de recursos simbólicos e legais que pudessem ampliar, por meio do filho, suas possibilidades de “escolha”. Nina fica preocupada porque o filho “sempre ouve as pessoas me dizendo que sou boba de não ir para lá ganhar dinheiro, então ele pensa que viver lá seria mais fácil do que no Brasil.”

Todas essas informações permitem perceber que através de seu trabalho Nina tenta aproximar-se da cultura escrita. Nina vai além da leitura e da escrita necessárias ao desempenho da sua profissão: lê livros e jornais que tem acesso no trabalho. Sobre essas leituras, seu maior objetivo é que possam contribuir no seu acompanhamento das tarefas escolares dos filhos. A leitura representa para ela a possibilidade de busca de novas estratégias para garantir o sucesso escolar dos filhos. Como aponta Oliveira e Vóvio (2003):

“Porém, saber a quantidade e os tipos de materiais impressos dos quais dispõem em seus lares ou em seus locais de trabalho não revela o modo como esses sujeitos se apropriam e se relacionam com eles, tampouco expõe os valores e representações associados a eles.” (OLIVEIRA e VÓVIO. 2003. p.167)

6.4- Outros espaços de socialização

Nina é evangélica e vai ao culto na Igreja Batista da Lagoinha. A escolha da religião parece ter uma iterferência da irmã. Isso pode ser observado nas suas palavras “vou na Igreja para fazer companhia para minha irmã. Ela fica insistindo para não ter que ir sozinha.” Nina manifesta, nas entrevistas, que freqüenta também o Centro Cultural que existe próximo à sua casa e no qual os filhos participam de um trabalho com brincadeiras infantis, assistem televisão, dentre outras atividades prazerosas.

De acordo com Lahire (2004), cada indivíduo é o “depositário” de disposições de pensamento, sentimento e ação, que são produtos de suas experiências socializadoras múltiplas, que podem ser mais ou menos duradouras ou intensas, em diversos grupos em diferentes formas de relações sociais.

7- CONSTRUÇÃO DO PERFIL: a família atual

No que se refere à família atual de Nina, que é constituída por ela e pelos filhos, destacarei os seguintes aspectos no que tange à mobilização escolar: o posicionamento da mãe; a escolha dos estabelecimentos de ensino; o acompanhamento e controle sistemático das atividades escolares; o envolvimento com a escola; os dispêndios financeiros para a aquisição de materiais escolares e extra-escolares e outras práticas diferenciadas das mães de meios populares.

7.1- Posicionamento da mãe

A mobilização escolar da mãe pode ser melhor entendida ao pensar questões como: o que a escola significa para a família?; o que a mãe espera para o futuro dos filhos?; o que a família entende como sucesso escolar?; como a mãe posiciona-se para garantir esse sucesso?.

Nina justificou o seu envolvimento com o estabelecimento de estudo dos filhos pelo desejo de que eles não passem pelas dificuldades enfrentadas por ela. A falta de materiais escolares, a necessidade de parar de estudar para trabalhar e a dificuldade de conseguir um emprego fizeram parte da sua trajetória de vida. Para ela, através dos estudos os filhos poderão ter uma boa opção de trabalho no futuro.

Nas palavras de Nina, “herdei essa garra da minha mãe”, que sempre fez o possível para que todos os filhos pudessem estudar. Ela trabalhava a semana inteira como diarista, atuando como lavadeira, passadeira e arrumadeira, e aos finais de semana trabalhava em um clube com serviços gerais.

7.2- Escolha dos estabelecimentos de ensino

Segundo ela, seu primogênito, Peter, entrou para a escola alfabetizado por ela mesma, devido a sua preocupação com a Escola Plural, uma vez que, de acordo com Nina, a rede municipal não conseguiria alfabetizá-lo:

“eu tenho um trauma de ver crianças paradas, sem saber ler e escrever... então... tem um caso na minha família que eu acho muito triste, o da minha sobrinha... tenho uma sobrinha que já está há seis anos na Escola Plural e não é alfabetizada ainda.... eu não queria isso para o Peter... então, para ele não entrar cru para a escola, eu mesma ensinei ele ler e escrever” (Caderno de campo, 10/05/04).

De acordo com a SME, na Escola Plural, o eixo de organização da escola deixa de ser o saber escolar e passa a ter o sujeito da aprendizagem como o centro do processo educativo. Essa mudança significaria pensar:

"(...) numa organização do trabalho escolar pautada na descoberta de quem são os sujeitos da aprendizagem – tanto do ponto de vista das fases do desenvolvimento humano em que se encontra, quanto no que se refere às suas características individuais – no que os sujeitos sabem sobre o objeto de conhecimento e como interagem com eles." (SME, 1999)

Nina investe grande parte do seu tempo para refletir sobre o estabelecimento em que os filhos vão estudar. A creche na qual os filhos freqüentaram e a filha freqüenta atualmente foi premiada como uma das melhores da região, de acordo com suas informações. A escolha da primeira escola dos filhos foi feita em função da proximidade com sua casa, e levando-se em consideração o que ela já sabia sobre o conteúdo da escola.

Os filhos passaram um ano nesse estabelecimento de ensino, mas Nina queria uma escola que tivesse um ensino melhor e que fosse mais segura do que a atual. Houve uma vez que aconteceu troca de tiros próxima à escola. A violência estava atrapalhando as aulas. “Tinha um problema", não poderia deixar os filhos estudando em uma “escola fraca”, estava muito preocupada com o conteúdo.

Começou a tentar vaga para os filhos em outras escolas públicas de maior prestígio da região. Depois foi tentar no colégio Dom Orione, mas foi encaminhada até a sua regional, pois aquela escola atendia apenas os moradores da Pampulha. Ela voltou à regional do colégio pretendido e, mais uma vez, não obteve sucesso. Teve vontade de desistir, mas pensou que não podia abrir mão de seus planos tão facilmente. Então, após conversar com o professor para o qual trabalha, ele sugeriu que dissesse que residia em sua casa oferecendo-lhe um comprovante de endereço.

Nina foi entrevistada pela secretária da escola e confirmou o falso endereço. Sendo assim, conseguiu a vaga para os filhos, mas ainda não era suficiente. Pretendia conseguir uma vaga no Lar Dom Orione, onde as crianças que estudam de manhã ficam durante a tarde, realizando atividades recreativas como aula de natação, informática, futebol, bem como o acompanhamento do “para casa”.

A escolha dessa escola, segundo a mãe, se justifica pelo fato de ela conhecer o trabalho da escola através de uma vizinha. Ela olhava os cadernos da vizinha e percebia que era uma escola de qualidade. A mãe compara o conteúdo da escola atual e anterior dos filhos e afirma que se o filho estivesse no antigo colégio, não estaria estudando este ou aquele conteúdo.

Nina conta que, no início da mudança dos filhos, eles tiveram uma resistência ao novo colégio. Peter, principalmente, reclamava por não conhecer os colegas, chorava para não ter que ir e pedia à mãe para voltar para a escola onde estudava anteriormente. A mãe, “com o coração apertado”, havia tomado a decisão de deixá-los no novo colégio. Rafael, entretanto, não teve a mesma dificuldade de adaptação do irmão.

A mãe, então, foi ao Conselho do Lar Dom Orione, utilizou a mesma carta de seu empregador que atestava sua residência e conseguiu a vaga para os filhos. Assim eles começaram a gostar mais do colégio, pois passavam mais tempo com os amigos, além de terem começado a ir de “especial”. Atualmente os filhos gostam muito da escola e não têm vontade de faltar às aulas.

7.3- Acompanhamento e controle sistemático das atividades escolares

A mãe acompanha as atividades dos filhos diariamente. Todos os dias quando todos estão em casa Nina se reúne com os filhos para ver cada um dos cadernos utilizados na escola e fazer o “para casa”. Ao ver que seu filho mais velho não consegue acompanhar a cópia do quadro, ou está com alguma dúvida na matéria, conversa com ele e manifesta sua preocupação procurando a professora, seu empregador e pedindo sugestões de como fazê-lo avançar.

Afirma que a professora do filho mais velho é muito boa, pois não adere a nenhuma paralisação, não atrasando o conteúdo e ainda, pelo fato de enviar grande quantidade de para casa. Além disso, Nina compara os cadernos dos filhos com os dos sobrinhos que moram próximos e estudam em outras escolas municipais. Nina fica feliz com a escolha da escola ao perceber que os filhos já estão no final do caderno e que sua sobrinha, da mesma série, ainda nem chegou na metade das páginas. Então, ela conclui que a escola dos filhos é mais “puxada” e que vale a pena o esforço de pagar o transporte para os filhos.

No “para casa” de Peter, quando tem que avaliar a leitura do menino, Nina é exigente: “eu nunca consigo dar dez, porque um dia eu vou dar dez. Se eu der dez agora ele vai achar que tá bom e pode relaxar.”

“Alguns pais podem fazer da escolaridade a finalidade essencial, e até exclusiva, da vida dos filhos, ou mesmo de sua própria: pais que aceitam viver no desconforto para permitir que os filhos tenham tudo o que necessitam para “trabalharem” bem na escola, pais que sacrificam o tempo livre para ajudar os filhos nas tarefas escolares, tomando as lições, lendo os mesmos livros que os filhos para poder discutir com eles e verificar se compreenderam bem, pais que aumentam o número de exercício da lição de casa ou que pedem aos filhos para lhe escreverem algumas historietas, ou ler-lhes trechos de livros...” (LAHIRE, 1997. p. 28-29)

7.4- Envolvimento com a escola

Com a mudança de escola, a nova professora do filho mais velho começou a chamá-lo de Peter, tal como se escreve em português, e não “Piter” como a mãe e os irmãos. Ela o explicou que o seu nome pronunciado em português fala-se “Peter”. A mãe explicou ao menino que, apesar de se escrever “Peter”, ele poderia ser chamado de “Peter” ou “Piter” (que é a pronúncia americana). Diante disso o menino fez um combinado com seus irmãos: na escola, deveriam chamá-lo de “Peter” e apenas em casa poderiam se referir a ele como “Piter”. Essa mudança acaba confundindo a mãe que, ao conversar com a professora, diz “Piter” e é corrigida pelo filho. Nesse fato pode-se perceber como a família atribui grande legitimidade ao discurso da professora. Peter e sua mãe permitiram a mudança da pronúncia do seu nome devido a um questionamento da professora.

Com o forte envolvimento da mãe com a escola dos filhos, ela sabe como é a disposição da sala, a carteira que o filho ocupa, questiona a falta de meninas na sala deles, dizendo que são apenas 3 meninas em comparação com 23 meninos.

Nina realizou trabalho voluntário na creche na qual os filhos mais velhos estudaram e em que Larissa estuda atualmente. Através do trabalho voluntário Nina aproxima-se do universo escolar, isto é, compreende melhor as relações entre a professora e os alunos e as atividades propostas para as crianças. Ela é capaz de explicar as unidades trabalhadas pela professora de Larissa, bem como alguns procedimentos do trabalho interno em sala de aula, como por exemplo, o que ela faz para realizar a escolha do ajudante do dia. Tem contato semanal com a professora da filha, o que permite saber dos trabalhos que são desenvolvidos na sala de aula, bem como o comportamento da filha.

7.5- Dispêndios financeiros para a aquisição de materiais escolares e extra-escolares

Nina tem um forte investimento para garantir que os filhos tenham todos os materiais escolares tais como caderno, lápis, dicionário, cola, tesoura, lápis de cor, dentre outros. Ela compra esses materiais, deixa claro para os filhos a dificuldade em adquiri-los e cobra que eles tenham uma conduta adequada para preservá-los. O uniforme do novo colégio dos filhos foi uma aquisição feita com sacrifício. Nina disse que seu empregador ofereceu ajuda para comprar uma blusa para cada filho e ela comprou a segunda.

Nina enfeita a capa de caderno dos filhos de maneira criativa: recorta de revistas ilustrações de acordo com cada conteúdo, cola na capa do caderno e plastifica com papel contact, em seguida. Nina acredita que isso estimula os filhos a estudar e manter o seu caderno organizado e caprichado.

De acordo com Nina, há um tempo uma menina pediu para Peter dá o seu caderno para ela, porque o achou muito lindo. O menino não o fez, e segundo a mãe ela pegou o seu caderno. Ele o procurou durante vários dias, mas não obteve sucesso. Depois de algum tempo, quando a professora foi dar visto nos cadernos, ela percebeu que o caderno de Peter estava com a colega.

Os filhos costumam ser presenteados em seus aniversários e outras datas comemorativas, com livros e demais materiais escolares. Esses materiais ficam dispostos em uma estante (ela conseguiu a estante com seu empregador) no quarto dos meninos para que possam utilizar sempre que surgir interesse.

O transporte escolar também é um investimento que a mãe faz, com dificuldade, para garantir que os filhos voltem da escola com segurança. Tendo em vista que não tem disponibilidade de tempo para buscá-los no colégio, decidiu por investir na segurança para o deslocamento dos filhos. Além da segurança, acredito que é uma forma que ela tem de controlar o tempo dos filhos. Diz que não é fácil manter os filhos estudando longe de casa, pois gasta muito com o “especial”, Em sua afirmativa podemos observar suas expectativas para o futuro dos filhos:

“Não é fácil, porque dá R$180,00 de especial todo mês, pra eles. Não é nem por luxo, não. É por necessidade. Tirar uma criança daqui e levar pra longe, é uma coisa melhor que eu to procurando pra eles. E aqui não oferece, por mais que a professora do Peter se esforçasse, não conseguia.” (Caderno de campo, 27/05/2005)

De acordo com Lahire (1997) uma situação econômica pode resultar em diferentes práticas:

“O mesmo capital, a mesma situação econômica podem ser tratados, gerados de diferentes maneiras, e essas maneiras são tanto o produto da socialização familiar de origem e de trajetórias escolares e profissionais, quanto da situação econômica presente.” (LAHIRE, 1997. p.24-25)

7.6- Outras práticas diferenciadas das mães de meios populares

Rafael, o filho mais novo, começou a apresentar problemas na fala, então, Nina o encaminhou para o posto de saúde, para que pudesse fazer acompanhamento com o fonoaudiólogo. Nina acredita que a dificuldade na fala poderia atrapalhar no seu processo de alfabetização.

Nina, quando sai para trabalhar, deixa tarefas escolares para os filhos que chegam antes dela em casa. Sua mobilização escolar também se dirige à escolarização dos sobrinhos: quando as escolas em que estudam estão em greve, segundo Nina, também deixa livros reservados para eles e atividades para que possam fazer durante a tarde.

Quando uma de suas irmãs não pode comparecer à reunião de pais dos filhos, Nina se dispõe a ir, por acreditar que isso estimula o aluno com relação aos estudos. Nina recebe as recomendações, críticas e elogios da professora e passa para a mãe dos meninos.

Em uma das entrevistas pude perceber que o comportamento das irmãs que moram juntas – na mesma casa de Nina ou no mesmo lote – também é caracterizado pela forte mobilização pela escolarização dos filhos. O mesmo não acontece com uma das irmãs – a mais nova – que possui uma filha na 4 série que ainda não sabe ler. As tias dessa menina, em especial Nina, e as irmãs que residem com ela, tentam suprir a falta de investimento e acompanhamento da irmã com relação à escola da sobrinha. Quando algum sobrinho não recebe notas boas na escola, há uma tia, solteira que não tem filhos que coloca apelido nos sobrinhos. Houve uma vez que uma das sobrinhas recebeu o apelido de “regular”, pois havia tirado nota ruim em uma prova. A menina ficou com o apelido até obter uma nota boa em atividade avaliativa da mesma disciplina.

7.7- A mãe leitora

A necessidade de se escrever e de se ler na família pesquisada é explícita nas relações familiares. Nina demonstra uma necessidade de incentivar os filhos para que eles não desanimem de estudar, para que a "escola não fique uma coisa cansativa", e ainda para que não percam tempo com uma determinada habilidade, isto é, para que o aprendizado da leitura e da escrita aconteça de forma positiva.

Embora os estudos mostrem que pais das camadas populares abstêm-se de produzir uma racionalidade clara e tornar esta prática uma conduta explícita, Nina contesta tal atitude. A leitura e a escrita constituem um aprendizado de um saber prático necessário à sobrevivência como membro na instituição familiar. Enfatizo tal atitude no sentido de propor para que pais das camadas populares passem a produzir mais enunciados que explicitem a mobilização pela escolarização dos filhos.

A questão do prazer é um aspecto recorrente nos mais variados discursos sobre a leitura. Nina está atenta aos escritos que encontra na casa do professor na qual trabalha. Ela lê livros, que pega emprestado na biblioteca da casa do professor. Nina leu o livro "Uma professora fora de série" devido seu interesse pelo título. É um diário do primeiro ano de regência de uma professora que conta seu desafio de lecionar para 31 crianças de 4a série, negras e pobres, numa escola pública em Chicago.

Segundo Bourdieu e Chartier (1996), a leitura é um consumo cultural entre tantos outros, e como tal, é historicamente variável e produto das condições nas quais nos constituímos como leitores. Sendo assim, não se dá por si mesmo, existe uma necessidade de leitura, “e devemos colocar a questão das condições nas quais se produz essa necessidade”. De acordo com Bourdieu (1996, p.238), “só é possível ler quando existe um mercado no qual possam ser colocados os discursos concernentes às leituras”. No quadro desse pensamento, Bourdieu entende a necessidade da leitura como relação material, concreta, entre o leitor e seu objeto de leitura, construída através do valor social que este objeto adquire em um determinado meio social.

Nina lê materiais como jornais, livros, dentre outros materiais escritos que encontra na casa na qual trabalha. Ela conhece autores conceituados em educação e se interessa por suas pesquisas. Ela sabe como capitalizar os recursos que acumula. É o que se pode observar em sua fala.

“Eu vi esse jornal lá e percebi que tinha uma entrevista da Magda Soares. Então eu pedi um jornal desse para mim e outro para eu levar para as professoras dos meninos.” (Caderno de campo 20/maio/2004)

8- Considerações Finais

A pesquisa proposta pretendeu compreender os meios e as condições que possibilitaram a uma mãe de meios populares mobilizar-se fortemente – apesar do contexto desfavorável – pela escolarização de seus filhos. Para compreender o caso busquei apreender nas observações e entrevistas os traços da mobilização escolar e os elementos que possibilitaram esse investimento – nas famílias de origem e atual da mãe.

Ao fazer um estudo de caso percebo a complexidade dessa metodologia, uma vez que os sujeitos estudados tendem a não explicitar suas contradições, querendo sempre demonstrar atitudes coerentes e que comprovem o objeto de análise, neste caso, a mobilização escolar da mãe.

A mobilização pôde ser percebida em situações como a escolha dos estabelecimentos de ensino, o controle sistemático das atividades escolares, o acompanhamento das atividades escolares, o envolvimento com a escola; dispêndios financeiros para a aquisição de materiais escolares e transporte escolar, as práticas como contar histórias, contratar professoras para realizar atividades de reforço e encaminhar a criança a especialistas como fonoaudiólogo e psicólogo.

Alguns fatores que a viabilizaram a mobilização estão relacionados a sua família de origem, e outros se relacionam com o seu momento de vida presente. O primeiro deles consiste na aproximação das práticas realizadas por sua mãe, já que ela também era uma mobilizadora na escolarização dos filhos. Além disso, sua mãe proporcionava, com as práticas de leitura e escrita por meio da Bíblia, um ambiente favorável ao aprendizado dessas práticas, apesar do baixo capital econômico e cultural.

O segundo trata-se do processo de escolarização de Nina. Embora não tenha conseguido concluir o ensino médio, ela valoriza a escola e atribui a ela um importante papel para ascensão social. Sua vivência escolar propiciou, ainda, o conhecimento de normas e condutas escolares importante para uma escolarização bem sucedida para os filhos.

O terceiro fator diz respeito ao seu trabalho. Embora trabalhe como empregada doméstica, profissão que, a princípio não exigiria ou propiciaria grande interação com a cultura escrita, o tipo de família para a qual trabalha (classes médias intelectualizadas), possibilita uma aproximação com a leitura e a escrita. Essa aproximação acontece tanto pela exigência que lhe é feita de anotar recados e lista de compras quanto pelo acesso a materiais escritos sobre educação.

O último fator que explica a forte mobilização de Nina é sua crença na escolarização dos filhos como possibilidade de ascensão social. A atuação como voluntária na creche da filha mais nova permite uma aproximação com o universo escolar. Tal aproximação parece ser uma necessidade da mãe para garantir o sucesso escolar dos filhos. Em vários relatos Nina fala de seu desejo de que os filhos não passem pelos problemas enfrentados por ela e que tenham oportunidades de trabalho diferentes das que ela teve. É importante destacar que os pais, ao exprimir seus desejos quanto ao futuro profissional dos filhos, tendem, a almejar para sua progênie um trabalho menos cansativo, menos mal remunerado, mais valorizado do que o deles.

Enfim, o caso estudado é um exemplo de que a generalização da omissão parental nas classes populares, no que tange à escolarização dos filhos, é um mito. Esse mito, muitas vezes, é produzido pelos professores que ignoram as lógicas das configurações familiares, deduzem, a partir dos comportamentos e dos desempenhos escolares dos alunos, que os pais não se incomodam com os filhos, deixando-os fazer as coisas sem intervir.

Depois de concluída a primeira etapa dessa pesquisa, pretendo, em estudos posteriores explorar outros dados. O primeiro deles seria abordar dados que dizem respeito à escolarização dos negros no Brasil. O segundo seria compreender melhor a relação entre escolarização e religião. E o terceiro, seria analisar as possibilidades de viver em outro país, uma vez que o filho possui dupla nacionalidade.

9- Referências

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