Andrea Berenblum - Universidade Federal Fluminense (UFF)
Introdução
Ao longo dessas últimas décadas, a reflexão
acerca da linguagem no âmbito educacional tem avançado de
forma significativa, se enriquecendo com os resultados de debates teóricos
provindos de diversos campos disciplinares como a sociolingüística,
a psicolingüística, a semiologia, entre outros. Antigas categorias
e formas de conceber o sujeito, as práticas lingüísticas
e os modos como os eles se apropriam, criam e recriam a linguagem e adquirem
o domínio da leitura e da escrita, estão sendo revistos
dando lugar a novas abordagens teóricas e ao desenvolvimento de
novas linhas de pesquisa na área específica da linguagem
no contexto escolar.
No entanto, permanece ainda pouco explorada a reflexão sobre a
concepção de língua, geralmente não explícita,
que sustenta nossa própria prática educacional, ou seja,
a reflexão sobre os mecanismos que contribuem para tornar aparentemente
tão natural a língua que falamos e ensinamos cotidianamente
nas escolas e a partir da qual avaliamos a práticas lingüísticas
e a produção dos nossos alunos.
O presente trabalho parte de alguns resultados obtidos em duas pesquisas
que, se bem foram realizadas em momentos diferentes, se complementam na
abordagem de aspectos que se referem aos processos de produção,
legitimação e instalação da variedade oficial
da língua em contextos nacionais específicos como a Argentina
e o Brasil . Na primeira delas, realizamos uma aproximação
à gênese histórica da língua oficial na Argentina
e, através de uma série de entrevistas, indagamos a respeito
das concepções de professoras atuantes em escolas públicas
primárias da Cidade de Buenos Aires em relação à
língua que transmitem e ensinam cotidianamente na sala de aula.
A segunda pesquisa constituiu um estudo comparativo dos processos históricos
de estabelecimento da variedade oficial da língua nacional em ambos
os países e avança na compreensão da atual conjuntura,
analisando os textos curriculares implementados no contexto das reformas
educacionais dos anos 90. Particularmente, o estudo se centrou na reformulação
dos conteúdos específicos para a área de língua,
considerando as concepções implícitas em ambos os
textos acerca da variação e diversidade lingüísticas,
norma padrão, linguagem e língua nacional.
Este trabalho tem como objetivo principal caracterizar o discurso docente
em relação à problemática da variação
lingüística e as definições da língua
que se transmite e ensina na escola. Para tal, nos basearemos no material
das entrevistas realizadas, por ocasião da nossa pesquisa, a quinze
professoras em exercício de escolas de educação básica
da rede pública da Cidade de Buenos Aires. Destacamos, na primeira
parte do texto, a homogeneidade nas respostas obtidas nessas entrevistas,
apesar da diversidade de escolas e professoras que participaram na pesquisa
e consideramos que elas representam os grandes mitos socialmente construídos
acerca da língua. Nesse sentido, se bem as características
dos contextos nacionais e dos processos históricos de instauração
das línguas nacionais influem necessariamente nas representações
que construímos acerca das línguas que falamos, consideramos
que, com as variações relativas às diferentes culturas
nacionais, esses mitos são inerentes ao discurso acerca da nação
que se origina no século XVIII europeu e que paulatinamente foi
se estendendo a todo o mundo ocidental. Concebemos, assim, esses mitos
na sua relação com o processo de naturalização
da língua, a partir do qual os sujeitos têm a impressão
de que ela é a única língua possível de se
falar e se escrever. Essa naturalização é produto,
em parte, do “esquecimento” social das condições
históricas e políticas de imposição de uma
língua ou uma variedade de língua como língua oficial
(Bourdieu). As respostas das professoras que participaram na pesquisa,
suas idéias e representações acerca da língua
oficial e do contexto sociolingüístico da escola são
entendidas a partir desses pressupostos. Consideramos, ao mesmo tempo,
o papel fundamental que tem desempenhado historicamente o sistema educacional
na consolidação das línguas oficiais e da norma padrão
nos processos de imposição de uma língua sobre as
outras, de uma variedade lingüística sobre as demais e abordaremos
a origem da construção dos mitos acerca da “língua
correta” tão amplamente arraigados no âmbito educacional.
Pretendemos, com este trabalho, contribuir para a reflexão sobre
a desnaturalização da existência de uma única
variedade de língua como “língua correta”, questionando
sua exclusiva legitimidade ao mesmo tempo em que visamos rever criticamente
determinadas certezas social e historicamente construídas em relação
a ela que, acreditamos, favorecem a manutenção de práticas
educacionais discriminatórias. Nesse sentido, o presente trabalho
aborda a problemática da língua como uma questão
central nos processos de construção da cidadania, acreditando
na relevância de implementar no âmbito educacional espaços
de debate e discussão sobre problemática estudada.
Cinco certezas acerca da língua falada na Argentina
Como mencionamos nas linhas anteriores, realizamos uma pesquisa cujo eixo
central consistiu na indagação acerca das idéias
e representações das professoras em exercício em
relação à língua falada na Argentina e, particularmente,
as formas como elas definem a língua que transmitem e ensinam em
sala de aula. Apesar da variedade e heterogeneidade de escolas públicas
escolhidas para nossa pesquisa, em relação à origem
sócio-econômica de seus alunos e professores, surpreendeu-nos
a homogeneidade das respostas obtidas. Em linhas gerais, as professoras
afirmaram que:
- Na Argentina existe unidade lingüística.
A língua que se fala no país é o castelhano herdado
da Espanha, “deformado” através do tempo e do uso “impróprio”
feito pelos argentinos.
- Em contraposição a essa afirmação, consideravam
que, se falada e escrita corretamente, essa língua é rica
e complexa.
- As pessoas sem instrução formal falam errado.
- Fala bem quem escreve bem. Esse adjetivo refere-se à escrita
considerada correta, cujas normas estão contidas nas gramáticas
formais.
- A língua é primordialmente um instrumento de comunicação
e um símbolo de identidade nacional.
As concepções das professoras acerca da
língua que se fala na Argentina fazem parte de um conjunto de considerações
sobre ela que constituem os grandes mitos socialmente construídos
. Esses mitos se constroem ao longo da história das nações
e se relacionam com o processo de naturalização da língua
que cria as condições para gerar uma espécie de “esquecimento
social” dos processos históricos que fizeram possível
a imposição de uma determinada língua sobre outras
e a generalização de uma variedade lingüística
sobre as demais. Essa amnésia de gênese contribui para que
acreditemos na idéia de que graças a processos de “seleção
natural” se generalizou o uso de determinadas línguas e variedades
lingüísticas que sobreviveram a outras pela sua complexidade
e superioridade estruturais e sua riqueza de vocabulário, entre
outras propriedades e características positivas. Assim, essa idéia
inquestionável de “língua superior”, única
língua correta e possível de ser falada (e escrita) em nosso
entorno nacional, se instala como certeza e será a partir desse
modelo de língua que se avaliarão todas as práticas
e produções lingüísticas. Na escola, assim como
na sociedade, docentes e alunos partilham as mesmas idéias acerca
da língua correta, o que garante a permanência de práticas
educacionais –e lingüísticas- altamente discriminatórias.
Assim, todas as manifestações lingüísticas que
diferem do modelo de correção idiomática são
consideradas desvios da norma, ou seja, determinados padrões lingüísticos
e culturais são concebidos como o modelo de língua e de
cultura a serem seguidos, o que implica que se julguem como “erradas”,
“incorretas” ou “deficientes” todas as manifestações
que deles se afastam.
Uma aproximação ao conceito de língua
oficial
Uma breve referência aos processos de produção
das línguas oficiais nos permitirá analisar as respostas
das professoras entrevistadas em nossa pesquisa como afirmações
que integram um determinado discurso (dominante) acerca da língua,
que tem sua origem em intrincados processos históricos. A língua
oficial que nada mais é que uma variedade lingüística
da língua nacional adotada por uma nação, consolida-se
como resultado de uma série de processos complexos de unificação
política que se desenvolvem ao longo da constituição
dos modernos Estados Nacionais. A língua oficial é, por
tanto, uma variedade parcial que funciona como norma de correção
a partir da qual se avaliam todas as práticas lingüísticas.
O aceso a essa norma é distribuído desigualmente no espaço
social, dependendo do lugar ocupado pelo falante na hierarquia social.
Assim, segundo Bourdieu, falar de língua (no singular) equivale
a aceitar a definição dominante de língua oficial
de uma determinada unidade política nacional, quer dizer, a língua
imposta como legítima.
A língua legítima é uma língua
semi-artificial, que deve ser apoiada por um trabalho permanente de correção
que compete, ao mesmo tempo, a instituições especialmente
preparadas para tal fim e aos locutores singulares. Através de
seus gramáticos que fixam e codificam seu uso legítimo e
de seus professores que a impõem e inculcam. (Bourdieu, 1985: 35).
Em toda nação uma única variedade
de língua se impõe como língua legítima e,
é interessante ressaltar, essa variedade está associada
a determinados setores (dominantes) que conseguiram se impor e que geralmente
representam as camadas médias e urbanas. Assim, a variedade parcial
que constitui a chamada língua oficial é produto de decisões
políticas num momento histórico específico da historia
de cada nação. Uma determinada variedade adquire o reconhecimento
de língua oficial e se impõe como legítima através
de processos políticos de unificação que se desenvolvem
no transcurso da constituição dos Estados nacionais.
No entanto, sabemos, principalmente a partir de contribuições
teóricas as da sociolingüística, que toda língua
é heterogênea e varia em função do contexto
no qual ela é utilizada e das características dos falantes.
A variação é, então, inerente à própria
definição de língua, acontecendo tanto entre os membros
de uma determinada comunidade lingüística -de acordo com o
grupo social ao qual eles pertencem- quanto em cada um deles -segundo
a modalidade formal ou coloquial de fala, de acordo com o contexto-. Os
dois tipos de variação vinculam-se mutuamente, sendo que
as variedades geográficas dão lugar às linguagens
urbanas e rurais e as variedades sociais podem ser influenciadas por fatores
como idade, gênero, profissão, nível de escolaridade,
classe social. Também podem variar em função da situação,
do tema ou em relação ao grau de intimidade entre os falantes
e dão lugar aos registros coloquial ou formal.
Vários autores analisam o momento histórico de instauração
dos Estados nacionais, tanto em seu movimento inaugural na Europa Ocidental
do século XVIII quanto na América Latina de fins de século
XIX. É interessante ressaltar que todas essas produções
destacam o papel central da língua na própria definição
das nações e sua função fundamental na construção
do sentimento de nacionalidade com elas associado. Para que uma determinada
variedade de língua funcione efetivamente como língua oficial
de um Estado-nação qualquer deve ser estabilizada por uma
codificação apropriada. Nesse sentido, se constitui uma
norma codificada elaborada pelas Agências Codificadoras, integradas
por gramáticos, que é incluída em gramáticas
formais (normativas) e dicionários. A norma padrão representa
determinados usos da língua considerados os “bons usos”.
O reforço da norma, referido ao controle sobre a fala e a escrita,
que visa impedir o afastamento da norma codificada é realizado,
principalmente, pelos sistemas educacionais nacionais e por meio de agentes
como a mídia, instituições religiosas e o sistema
cultural (Fischman, 1988). Esse processo, denominado por alguns autores
como gramatização das línguas é, como afirma
Orlandi (1997), peça fundamental na consolidação
da unidade lingüística associada à constituição
dos Estados Nacionais. Eles necessitam da unificação tanto
política quanto lingüística e cultural e nesse processo
as línguas oficiais têm uma função primordial
junto com os sistemas educacionais, que se nacionalizam com a construção
dos Estados. A escola será a encarregada de transmitir, inculcar
e reforçar a variedade oficial da língua, ao mesmo tempo
em que contribui para a criação, valorização
e consolidação de uma cultura nacional, integrada por mitos
de origem, símbolos e representações acerca das próprias
histórias das nações e da essência do ser nacional.
Essa variedade de língua que se institui como língua oficial
cumpre tanto funções simbólicas – representa
sentimentos de pertencimento, fraternidade, unidade - quanto funções
objetivas como a de servir de modelo de correção a partir
do qual se avaliam todas as manifestações lingüísticas.
Afirmamos até aqui que a língua oficial possui uma gênese
histórica e que sua generalização é uma conseqüência
de complexos processos políticos associados à construção
dos Estados modernos, ao mesmo tempo em que destacamos a desigualdade
de possibilidades de acesso a essa língua padrão e as suas
normas. A seguir, nos referiremos às origens dos mitos construídos
acerca da língua oficial, a fim de compreender as idéias
das professoras que participaram da nossa pesquisa, à luz dos referidos
conceitos e processos.
As origens dos mitos sobre a língua correta
Como mencionamos, para as professoras entrevistadas a língua que
se fala na Argentina é a que a nação herdou da Espanha
a partir dos processos de Conquista e Colonização. Essa
língua é para elas o modelo de correção idiomática
que, sendo originariamente uma língua pura, sofreu processos de
“deformação” relativos ao mau uso que dela fizeram
os argentinos. As modificações da língua originária,
avaliadas pelas professoras de forma negativa, são, segundo elas,
produto da “despreocupação” e da “falta
de cuidado” do argentino para preserva-la. Se bem não pretendemos
realizar aqui uma análise histórica do período de
constituição do Estado nacional argentino, interessa-nos
mostrar que as concepções das professoras se relacionam,
também, com esse processo, a partir do qual as discussões
sobre a língua nacional adquiriram uma enorme importância
política. Cabe destacar que, consultadas sobre esses processos,
as professoras afirmaram desconhece-los.
O recurso à língua oficial como símbolo de identidade
nacional reitera-se ao longo da história argentina e integra, de
forma direta ou indireta, os discursos de políticos, educadores
e lingüistas. Em nossa pesquisa nos baseamos num levantamento de
documentos históricos correspondentes ao período 1840-1930
que nos permitiu afirmar que a defesa da língua nacional como elemento
de identidade tem servido a diversos interesses nas diferentes épocas
da história do país. Essa defesa expressou, por um lado,
a necessidade de estabelecer mecanismos de diferenciação
cultural e política em relação a Espanha, buscando
assim construir uma identidade própria e, por outro, a cristalização
de um discurso nacional face o avanço explosivo da imigração
para 1880. Ao mesmo tempo, a defesa da língua nacional tem se tornado
um elemento constitutivo dos novos discursos nacionalistas que levantaram,
e ainda levantam, os setores mais retrógrados da sociedade argentina.
A norma padrão daquele país, ou seja, a norma lingüística
de prestígio foi, num primeiro momento, o espanhol escrito na Espanha,
que distinguia criollos de nativos e, posteriormente, “a boa pronúncia”
dos setores urbanos, o que permitia diferenciar bárbaros de civilizados.
Finalmente, essa norma se estabelece como língua nacional e seu
domínio distingue, de maneira geral, argentinos de estrangeiros.
Essa língua, que a escola devia ensinar e universalizar, tornou-se
língua oficial a partir de uma relação conflitante
com Espanha, vários são os momentos em que se faz necessário
retirar dela os elementos que a tornavam um símbolo de dependência
do colonizador. No período posterior à terceira década
do século XIX, os debates em torno da língua se centram,
principalmente, na reforma ortográfica americana , reforma esta
que permitiria a construção de normas baseadas no princípio
da racionalidade, cujo modelo era encontrado na língua francesa.
Esses debates aconteceram paralelamente em diferentes regiões hispano-americanas
. No entanto, as relações dos nascentes Estados hispano-americanos
com a Metrópole têm sido complexas e complicadas e a necessidade
de conseguir a Independência através da língua termina
com a implantação das Academias de Língua em todos
os Estados hispano-americanos que, sob as normas ditadas na Espanha, regem
o funcionamento da língua nas Américas. Assim, nos anos
de 1880 efetiva-se o projeto migratório e se atribui à língua
nacional e à educação um papel fundamental para nacionalizar
os filhos de estrangeiros estabelecidos no país. As reformas ortográficas
fracassam e como símbolo desse fracasso criaram-se em territórios
americanos, desde 1870, as Academias de Língua, correspondentes
da Real Academia Espanhola que, até os dias de hoje, regulam a
língua espanhola em todo o mundo, com o intuito de manter a tão
almejada “unidade lingüística”.
As concepções das professoras entrevistadas refletem, em
grande medida, essa relação contraditória entre a
“língua argentina” e a “língua espanhola”.
Por um lado, esta última, foi – e continua a ser –
um modelo de correção idiomática deformado, na concepção
delas, pelo uso indisciplinado dos argentinos e por outro “a nossa
língua”, se falada e escrita corretamente, é a mais
completa e complexa, ou seja, o melhor símbolo da construída
identidade nacional argentina. O projeto liberal de constituição
das nações visava à consolidação e
oficialização de padrões culturais nacionais o que
conduziria à formação de uma identidade nacional
que criaria laços de solidariedade nacionais. Nesse processo, instituições
como a imprensa e, especialmente, o sistema educacional, através
da escola básica, tiveram um papel fundamental. Ela tinha a responsabilidade
de espalhar as letras a uma quantidade cada vez maior de cidadãos,
nacionalizando ao mesmo tempo, aos filhos de estrangeiros assentados no
país. A língua nacional era uma peça fundamental
para os fins da integração nacional. Esse projeto de homogeneização
de padrões culturais e lingüísticos, em nome daqueles
considerados superiores e verdadeiramente nacionais cria uma certa ilusão
de homogeneização cultural que aprofunda os processos de
segmentação e exclusão, já que o acesso a
esses padrões e valores da considerada “alta cultura nacional”
é distribuída de forma desigual no espaço social.
Nesse sentido, o mito da homogeneidade lingüística está
intimamente relacionado com os processos de unificação política
que atravessaram todas as nações ao se associar a Estados
particulares. A escola teve historicamente a função de nacionalizar
ás crianças e o fez, principalmente, através da generalização
da língua oficial. O sistema nacional de educação,
com padrões de alfabetização universais e baseado
numa única língua comum, contribuiu para a afirmação
da identidade nacional. (Hall, 1997)
Como vimos anteriormente, toda língua oficial deve ser codificada
para funcionar efetivamente como norma a partir da qual se avaliem as
práticas lingüísticas. Com a finalidade de expandir
o bom uso da língua, surgem as gramáticas e dicionários
escolares, baseados na língua escrita, modelo de correção
lingüística e referência para os usos orais.
Desde a época da Conquista e Colonização começa
na Europa Ocidental o interesse pelo estudo de línguas e se elaboram
os primeiros dicionários que recopilam palavras de origem indígena
a partir dos escritos dos viajantes. A primeira gramática, escrita
pelo espanhol Elio Antonio de Nebrija, é publicada, casualmente,
em 1492, ano do “Descobrimento” da América. Os gramáticos
serão os detentores de um saber legítimo sobre a língua
unificada de Estado e terão a autoridade de dizer como é
essa língua e de que forma deve ser utilizada e suas gramáticas
simbolizam a unidade lingüística e a identidade nacional que
se expressa através dela.
Como vimos, segundo a concepção das professoras entrevistadas
em nossa pesquisa, os alunos que “falam corretamente” são
aqueles que utilizam a variedade oficial da língua nacional. Geralmente
referem-se a alunos de classe média e nascidos nas grandes capitais,
principalmente no Estado de Buenos Aires. Essas professoras, ao referir-se
à “fala correta” de seus alunos a identificam com a
“escrita correta”, associada com a norma padrão. Esta
ênfase na tradição gramatical e a identificação
da língua escrita com a língua falada, como se ambas implicassem
um mesmo processo e requeressem dos sujeitos idênticas competências,
também têm uma gênese histórica relativa ao
processo em que as diferentes línguas se constituíram como
línguas oficiais e uma variedade, geralmente baseada na norma escrita
utilizada pelos setores urbanos, considerados cultos na época,
adquiriu a hierarquia de língua oficial e relegou às outras
variedades à categoria de dialetos.
Assim, a escola está organizada segundo o pressuposto de que todas
as crianças possuem um capital cultural semelhante que lhes permite
incorporar da mesma forma os valores e conteúdos que ela pretende
transmitir. Sem dúvida, esses conteúdos não são
neutros, mas parcelas do que é considerado “conhecimento
legítimo”. Uma instituição como a escola, que
desde suas origens, desempenha uma importante função no
reforço do processo de imposição dos usos oficiais
da língua oficial, contribuiu para consagrar o uso dominante como
único legítimo. A homogeneização no uso da
linguagem na escola, que supõe que se considere o padrão
lingüístico dos setores médios urbanos como a única
língua e a única cultura implica que sejam julgadas como
“errados”, “incorretos” e ainda “deficientes”
os usos da língua dos setores populares.
Ilari e Possenti (1994) consideram que a concepção de gramática
presente na escola leva a conceber os diversos usos populares da língua
como “vícios de linguagem”. Assim, afirmam que a gramática
adotada nos livros didáticos como conteúdos a serem aprendidos
visa a que os indivíduos dominem a língua “corretamente”
e supõe um conjunto de regras a serem seguidas, as regras da gramática
normativa, a definição de língua correspondente à
norma padrão. Os “erros” serão, então,
as expressões que se afastam dessa norma, considerada o exemplo
da boa linguagem.
Por último, é interessante mencionar que as idéias
das professoras acerca da língua correta que vimos destacando ao
longo do presente texto se apóiam numa determinada concepção
de linguagem. Nesse sentido, a totalidade de professoras entrevistadas
afirma que a função da linguagem é a de servir aos
fins da comunicação humana. Assim, ela é um meio,
uma ferramenta para alcançar determinados objetivos como comunicar,
organizar e expressar idéias e sentimentos e o sujeito é
sempre um ente passivo e exterior que se apropria de uma linguagem dada
e perfeita. Nesse sentido, as línguas são sistemas complexos
que se mantêm estáveis ao longo do tempo e apesar do uso
social que delas se faz. Como vimos, se bem nossas professoras reconhecem
que determinadas línguas chamadas oficiais têm sofrido modificações
ao longo da história nacional, essas mudanças, concebidas
sempre como negativas, corromperam e deformaram sua essência pura
e originária.
Considerações finais
Embora o presente trabalho centrou sua análise
nas representações de um grupo particular de professoras
de escola fundamental de uma sociedade também particular, acreditamos,
como mencionamos anteriormente, que, para além das suas especificidades,
as idéias acerca da “língua correta” aqui referidas
fazem parte do imaginário social que tem sua origem nos processos
de construção e consolidação das nações
ocidentais modernas. Na América Latina, esses processos adquiriram
características diversas em relação às particularidades
nacionais, porém se destacam alguns traços bastante similares
no decorrer da história de suas nações. Em momentos
de sua criação e instauração, as línguas
foram elementos fundamentais de diferenciação e ruptura
com o conquistador ou, paradoxalmente, de continuidade cultural com as
Metrópoles. Nosso nascimento como nações independentes
está marcado por uma tensão constante entre essa necessidade
de distanciamento com os padrões culturais da Europa e a sua admiração
e exaltação. Nesse sentido, parece-nos que essas características
que foram adquirindo os processos de construção das línguas
nacionais na América Latina – e de suas identidades nacionais
– podem explicar, de certa forma, a existência e perpetuação
dos mitos acerca da “língua correta” amplamente difundidos
nas nossas sociedades. Consideramos que a variedade padrão da língua
adotada por uma nação como língua oficial possui
uma gênese histórica e que a mesma se constitui como norma
de correção a partir da qual se avaliam todas as produções
lingüísticas. Essa norma foi geralmente associada à
escrita e a determinados setores de poder e, através dos mecanismos
que conduziram à sua consagração, as demais variedades
lingüísticas iam se desprestigiando, tornando-se dialetos.
Buscamos, com este trabalho, enfatizar a importância de refletir
a respeito das condições de produção e generalização
da variedade oficial de uma determinada língua em contextos específicos.
Acreditamos que o desconhecimento, a falta de memória sobre elas
contribui para a instauração de certos mitos acerca da “língua
correta” que, ao institucionalizar-se permitem que a concebamos
como a única língua naturalmente legítima. Abordar
a variação lingüística como um fenômeno
social constituído historicamente e atravessado por relações
de poder, no interior do qual se produzem variedades lingüísticas
complexas e heterogêneas pode contribuir para questionar a naturalidade
com que concebemos a exclusiva legitimidade de uma única variedade
de língua e para tornar a nossa prática educacional mais
crítica e democrática.
Referências bibliográficas
BERENBLUM, A. Linguagem e escola: para uma desnaturalização
da língua oficial. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1996.
----------------------- A invenção da palavra oficial. Identidade,
língua nacional e escola em tempos de globalização.
Belo Horizonte, Autêntica, 2003.
BOURDIEU, P. ¿Qué significa hablar? Madri: Akal Universitaria,
1985.
FISHMAN, J. Sociología del lenguaje. Madri: Cátedra, 1988.
HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 1997.
ILARI, R. e POSSENTI, S. “Português e ensino de gramática”.
In: Revista Contexto & Educação N° 35, jul./set.
1994.
LABOV, W. Modelos sociolingüísticos. Madri: Cátedra,
1983.
ORLANDI, E. “O Estado, a gramática, a autoria”. In:
Relatos N° 4. Campinas: Unicamp, jun. 1997.