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A
LEITURA DE IMAGENS E INDÍCIOS E A PRODUÇÃO ORAL DE
TEXTOS POR PRÉ-ESCOLARES
Lígia Maria Sciarra Bissoli - Unesp- Rio
Claro
A comunicação por intermédio de imagens
faz parte da história da civilização desde os seus
primórdios. Registrando a realidade circundante, o homem começou
a retratar o seu dia-a-dia por meio de desenhos feitos nas paredes das
cavernas.
As formas mais primitivas de comunicação deram lugar às
tecnologias que permitem que as imagens ocupem um espaço considerável
no cotidiano do homem contemporâneo. Materializadas de modos diversos
(pintura, fotografia, filme, desenho), as imagens são veicu-ladas
por intermédio de diferentes fontes (televisão, Internet,
outdoors, livros, revistas).
Desde os primeiros anos de vida, as crianças se deparam com uma
diversificada vari-edade de imagens, empreendendo esforços para
entendê-las. Antes de ler e escrever conven-cionalmente, muitas
crianças já realizam diversas leituras. Com o olhar, elas
podem “ler” objetos e pessoas que passam diante dos seus olhos
a todo instante. Cores, expressões faciais, marcas gráficas
revelam-se importantes indícios a servir de apoio para construção,
por parte da criança, da sua visão das coisas, realizando
aquilo que, segundo Paulo Freire (1984, p.22) constitui a leitura de mundo.
Atualmente uma grande variedade de livros formados somente por gravuras
é encon-trada no mercado editorial, revelando uma certa tendência
em se valorizar esse peculiar gêne-ro de leitura, em que predominam
as mensagens transmitidas pelas imagens.
Definem-se como livros de imagens aqueles cuja história é
contada unicamente por ilustrações (CAMARGO, 1992, p.121).
Às vezes o autor pode inserir algumas palavras ou versos para fazer
uma abertura, ou concluir a história com uma frase, porém,
o enredo vai sendo construído a partir e exclusivamente das seqüências
de imagens.
Apesar de destinados aos leitores menores, os quais ainda não dominam
o código lin-güístico, esses livros instigam a curiosidade
também de crianças maiores, jovens e adultos, os quais,
ao manuseá-los, se sentem “maravilhados” diante da
possibilidade de construir a histó-ria a partir das imagens, reinventando-a
na medida das suas próprias fantasias. Outra particu-laridade atribuída
aos livros sem texto escrito consiste em reunir, em um objeto atraente
e acessível a todas as crianças no contexto escolar (o livro),
ilustrações que contam uma histó-ria e assim, introduzem
a criança no mundo da narrativa de ficção.
Nesses livros, os componentes da imagem são hierarquizados segundo
a intenção do ilustrador e o olho é guiado por essa
hierarquia. Sendo assim, a construção da história
em um livro de imagens requisita do ilustrador/autor clareza no encadeamento
das cenas, uma vez que as imagens, nesse livro, possuem papel fundamentalmente
narrativo (incluindo descrição e ação). Essa
tarefa exige, de acordo com Faria (2004, p.57-58), não somente
competência artística, mas também sensibilidade para
se fazer entender pelas crianças que lerão o livro.
O interesse que as crianças manifestam pelos livros de imagens
suscita indagações a respeito da interação
que elas estabelecem com esses textos, ou seja, sobre a leitura que elas
realizam: como as crianças realizam a leitura de imagens? Como
se dá essa interpretação? Existe uma evolução
nesse processo? Quais operações intelectuais são
colocadas em jogo durante o processo de leitura de imagens pelas crianças?
O estudo a seguir apresentado trata da leitura desse tipo de livro por
crianças de idade entre 5,5 e 6,0 anos, alunos de uma escola de
educação infantil.
Leitura e texto: algumas concepções
Pensar a imagem como objeto passível de estudo e leitura, envolve
redimensionar al-guns conceitos relativos à leitura e alfabetização.
O que significa ler, hoje em dia? Lê-se ape-nas textos escritos?
De acordo com Lajolo (1993,p.22), a noção de texto aplica-se
a “qualquer conjunto significativo passível de tradução
em palavras pelo leitor”, ou seja, a tudo aquilo que permite a leitura.
Dessa forma, torna-se possível incluir as imagens na categoria
de textos, uma vez que elas podem ser lidas e interpretadas. De igual
modo, Walty, Fonseca, Cury (2000, p.90) incluem na categoria de textos
o traçado de uma cidade, a moda, o corpo humano e a mímica,
entendendo ser, no mínimo ingênuo, colocar imagem e palavra
em campos opostos e exclu-dentes.
Buoro (2002, p.31), entende que o texto constitui-se num todo de sentido,
atribuindo-se à imagem, portanto, a qualidade de um texto visual,
o qual requer, dentre outras coisas, a sua “leitura”, entendida
como “a compreensão do texto visual mediante uma interação
signi-ficativa que ambos, leitor e texto, venham a estabelecer”.
De modo análogo, Bombini (2001) e Rossi (2003) afirmam que, apesar
do termo “tex-to” estar relacionado à escrita, não
se pode negar que ele exista também com relação a
ima-gens. Na medida em que se constitui também em “tecido
, tessitura pelo qual se escreve o mundo”, o texto visual requer
do leitor a descoberta dos fios que o compõem, ou seja, a leitu-ra,
a qual não se constitui em deciframento, mas atribuição
de significado, na medida em que o leitor relaciona o texto que lê
a outros textos significativos que conhece.
Essa concepção é compartilhada por Freire (1997,p.20),
quando este declara que a lei-tura constitui uma ação ativa
de caráter dinâmico, social e múltipla, tendo-se em
vista que ela busca decifrar e entender os sentidos dos códigos
lingüísticos verbais e não-verbais produzi-dos pelas
criaturas humanas, os quais refletem e ampliam a inteligência no
mundo. Dessa forma, o autor afirma que a leitura de mundo precede a leitura
da palavra. Ainda sobre esse assunto, Smith (1999, p.106-7) assinala que
os textos escritos representam apenas uma pe-quena parte de nossa leitura
diária, uma vez que nem tudo o que lemos provém do código
lingüístico. Dessa forma, o uso da palavra ler se estende
até o abstrato e metafórico , como “ler” textos
formados por elementos não verbais: folhas de chá e mãos,
rostos e imagens, o céu e o mar, o clima e as intenções;
mapas, relógios, bússolas, notas musicais e passos e dan-ça.
No caso específico da leitura de uma imagem, Bombini (2001, p.73)
declara que, os signos que compõem o texto verbal e o visual são
diferentes: enquanto o primeiro é composto pelos fonemas, vocábulos,
morfemas e palavras, o segundo é organizado por linhas, cores,
luz, espaço, perspectiva.
Rossi (2003, p. 40) destacando que a leitura de imagens é influenciada
pela experiên-cia de vida do leitor, observa que quando as crianças
pensam que estão apenas descrevendo o que está objetivamente
à sua frente, estão, na verdade, realizando interpretações
geradas nos contextos por elas vivenciados, pois nada pode ser interpretado
sem uma conexão com o mundo com o qual se vive. Dessa forma, uma
imagem pode ser lida e compreendida de várias maneiras, por uma
criança, um adulto, um estudioso de arte.
Em suma, percebe-se que a construção do sentido pelo leitor
é destacada por diferen-tes estudiosos, os quais não reduzem
o ato de ler apenas à decifração dos caracteres lingüísti-cos,
mas também pressupõe a compreensão de códigos
não-lingüísticos constantes noutros suportes e contextos
que não o texto impresso, mas muito presentes no ambiente em que
se vive: películas fotográficas, vinil, pedra, sinais e
gestos, etc.
Contribuições teóricas, como as mencionadas, reforçam
a idéia de que as imagens po-dem ser lidas e traduzidas em palavras,
mesmo pelas crianças que ainda não dominam o có-digo
escrito.
Objetivos da pesquisa
Considerando que não basta apenas ser afetado pela emissão
da imagem, pois com-preendê-la implica conhecer os elementos que
a compõem e o que representam convencio-nalmente para poder conferir-lhes
sentido e assim proceder a uma interpretação, torna-se importante
analisar como as crianças “tratam” as informações
contidas nas seqüências de desenhos que compõem um livro
de imagens. Dessa forma, o presente trabalho tem os se-guintes objetivos:
verificar como a criança realiza a leitura de livros cujos textos
são compos-tos somente por imagens, como interpretam os indícios
e em que consistem as operações intelectuais que as crianças
colocam em jogo nesse processo.
Metodologia
Participantes
Participaram desse trabalho 19 crianças entre 5,5 e 6 anos de idade
de uma classe de pré-escola (pré III) da rede Municipal
de Ensino de Rio Claro, sendo 10 crianças do sexo masculino e 9
crianças do sexo feminino. Dentre as crianças participantes,
14 já freqüenta-vam a pré-escola desde o pré
I (4 anos de idade), e 5 nunca freqüentaram a pré-escola em
nenhuma instituição.
Foram adotados como procedimentos metodológicos o registro e a
análise das leituras de dois livros de imagens, feitas individualmente
em uma sala livre de interrupções de even-tuais usuários
, as quais foram gravadas e posteriormente transcritas.
Procurou-se interferir o mínimo possível, sem, contudo,
excluir alguns questiona-mentos realizados por parte da pesquisadora com
o objetivo de auxiliar na leitura. Esse auxí-lio era realizado
quando solicitado pela criança, e consistia basicamente em perguntas
sobre o que viam, o que achavam que ia acontecer e em que consistiam as
figuras. As sessões foram divididas em dois momentos distintos:
leitura silenciosa e leitura oral.
Outro procedimento utilizado consistiu em conversa informal com a docente
e consul-ta às fichas dos alunos, a fim de verificar o número
de crianças já freqüentavam a pré-escola, e
quais ingressaram no presente ano, bem como conhecer os hábitos
de leitura e acesso aos bens culturais pelas famílias.
O material utilizado consistiu em 2 livros de imagens: Filó e Marieta,
de Eva Furnari, e Ida e volta, de Juarez Machado. Utilizou-se também
o gravador e um diário de campo onde foram registrados alguns aspectos
do comportamento e das falas das crianças ocorridos du-rante a
sessão de leitura.
Apresentação dos resultados
1- As narrativas
A análise das produções orais das crianças
permitiu verificar a ocorrência de três ní-veis de
narrativas na leitura dos dois livros. Categorizamos de nível A,
as produções orais cujos elementos foram ordenados coerentemente
sob a forma de uma narrativa coerente, com começo, meio e fim.
O segundo nível, nível B, consistiu na verbalização,
por parte da criança, das cenas que compõem a obra sob a
forma de descrição, sem a preocupação de construir
com elas uma história, nem dota-la de sentido levando em consideração
um ouvinte.
A última, nível C, caracterizou-se pela intervenção
do adulto na construção da histó-ria, na maioria
dos casos a pedido da criança. Nesse nível, foi a interação
com o outro/adulto que serviu de suporte na construção da
narração.
O quadro 1 ilustra os níveis de leitura encontrados nos dois livros.
Quadro 1- Níveis encontrados nas narrativas das crianças
Nome do livro |
Nível A |
Nível B |
Nível C |
Total de leitores |
Filó e Marieta |
05 |
03 |
02 |
10 |
Ida e Volta |
04 |
03 |
02 |
09 |
Como exemplo
de narrativa do nível A, temos a leitura do livro Filó e
Marieta reali-zada por (B.):
“(...) Era uma vez um domingo, duas amigas que eram bruxinhas e
se encontra-ram na rua. Filó deu um presente para a Marieta, e
era uma linda varinha mágica. Marieta então resolveu fazer
uma mágica e apontou a varinha no chão. Daí apare-ceu
um lindo ratinho. Depois, ela fez outro bicho aparecer: um cachorro orelhu-do.
O último bicho foi um gato, e aí começou a confusão,
o gato correu do ca-chorro, o rato correu do gato e as duas no meio, caíram
no chão! Depois a Filó pegou a varinha e muito rápido
tirou a mágica e dissolveu os bichos um por um. Eles sumiram e
elas acharam muita graça porque estavam todas as duas desen-gonçadas
no chão. Aí a Filó lembrou do aniversário
da Marieta e fez o bolo com a varinha para ela. Elas cantaram e viveram
muito felizes” (B, 6 anos).
Nesta narrativa percebe-se que já existe a preocupação
em estruturar uma história on-de existe a situação
inicial, depois a entrada de um elemento que vai criar um conflito (os
animais aparecendo), e a volta ao ritmo inicial da história, com
a resolução do conflito (os animais sumindo) e, finalmente,
o final (feliz, nesse caso). As personagens são situadas no tempo
(domingo) e no espaço (na rua) e são utilizados, embora
ainda timidamente, adjetivos (linda varinha, cachorro orelhudo). Observa-se
ainda a tendência para utilizar-se do mesmo tempo verbal.
O tipo de narrativa do livro Ida e Volta exigiu das crianças maior
atenção na atribui-ção do sentido. As variações
encontradas entre as descrições das ações
realizadas pelo perso-nagem indicam diferenças quanto ao nível
de elaboração.
“(...) Era uma vez um menino que gostava de tomar banho e ficar
perfumado pa-ra sair. Ele saiu do banheiro e colocou um bermudão
e um par de sapatos para tomar café porque ele adorava café
com leite e pão . Depois ele colocou um disco e dançou um
pouco, e daí ele se cansou e foi pegar seu chapéu para sair.
A casa dele era bonita e na frente tinha um pé de maçã,
e ele pegou uma , comeu e jogou a casca no lixo. Daí ele viu um
lindo cachorrinho que passa...passou e fez xixi no poste. Ele foi para
sua casinha e o menino andou, comprou um vaso e dá...é...deu
para uma velhinha na rua. Aí então, de uma porta saiu um
homem do circo que andava numa perna de pau e seguiu ele também.
Ele andou mais ainda, viu uma bola no chão e pensou em jogar um
pouco de futebol, mas se deu mal , quebrou a janela da vizinha que não
gostava de criança brincando perto da casa dela e re-solveu fugir.
Resolveu comprar uma bicicleta para fugir mais rápido mas não
sa-bia andar, daí ele caiu e se” arrebentou no muro”.
Fim da história: teve que tomar banho de novo!Acabou. (Ga, 5a ,6m)”
A produção oral acima, apresenta-se de modo dinâmico,
estruturado e coerente. GA misturou na narrativa aspectos de seu cotidiano:
o bermudão, o gostar de leite e pão, (embora no livro não
se especifique qual o conteúdo do bule), a vizinha que não
gosta de criança jo-gando bola perto da sua janela, o fato de se
perfumar para sair, procurou descrever a casa (bonita, com um pe de maçã
na frente), utilizou-se de conectivos para encadear as cenas e teve muito
cuidado na utilização dos verbos, voltando algumas vezes
atrás para corrigir a conjugação.
As crianças, cujas narrativas foram categorizadas de nível
B, apesar de terem elabora-do uma história com início, meio,
fim, não se preocuparam em fazer com que o ouvinte en-tendesse
melhor o que se passava na história. Outras ainda, enumeravam as
cenas uma a uma sem se importar com a ouvinte, não fazendo uso
de conectivos para encadear as cenas, ditas em um única frase.
Abaixo, exemplos da leitura de cada livro:
“(...) a velhinha encontrou a outra, beijou ela, deu uma caixa,
era uma varinha mágica, ela fez um rato, um cachorro, um gato,
eles correu tudo, ela fez tudo su-mir, depois ela fez um bolo, fim”
(K. Filó e Marieta)
“(...) o menino saiu do banho, colocou roupa, tomou café,
dançou, saiu, deu o va-so, viu um cachorro,o cachorro fez xixi
no poste, o homem do circo passou, jogou bola, quebrou a janela, pegou
a bicicleta, caiu, foi tomar banho de novo. Fim” (Ke. – Ida
e Volta)
Comparando-se as leituras do nível A e B nota-se nos dois livros
diferenças significa-tivas com relação à compreensão
do código visual, indicando que as crianças do nível
B não conseguiram estabelecer relações entre os significantes
contidos nas imagens para formar com eles uma mensagem: isso explica a
leitura de uma página por vez, elemento por elemen-to, cena a cena.
A narrativa nível C é aquela cuja construção
envolveu o auxílio de outra pessoa, no caso o adulto pesquisador.
Algumas crianças necessitaram e solicitaram ajuda; isso ocorrendo
na leitura dos dois livros. Nos exemplos abaixo, os longos períodos
de silêncio e as solicita-ções de ajuda fizeram com
que a pesquisadora (P) auxiliasse com perguntas e estímulo, na
construção das narrativas dos dois livros:
“(...) G: Aí ela fez um rato.
(pausa)
P: Como?
G: Com um...uma...
P: Com uma varinha?
G: É, com uma varinha, ela fez o rato o gato e o cachorro.
P: E daí?
G: não sei falar o que eu tô vendo, ajuda.
P: Claro que sabe, é só olhar as figuras, com calma...o
que aconteceu depois que a Marieta “fez” os animais?
G: Teve uma...eles... Me ajuda, vai!
P: Eles brigaram?
G: Isso... teve e briga deles... e depois... me ajude.
P: Estou ajudando, mas quero que você me diga... eles quem?
G: Os bichos.
P: E aí?
G: Aí... sumiu o primeiro.
P: Quem?
G: Este aqui (mostra a figura)
P: O rato?
G: É, o rato, e depois tudo. ” (G, 6 anos – Filó
e Marieta)
“(...)
e aí o homem jogou bola. Não sei mais. Você ajuda?
P: Você quer que eu ajude?
J: ... quero...ele jogou a bola... depois...
P: O que aconteceu depois depois que ele jogou a bola?
J: Acho que ele correu...foi...fugiu.
P: E por que será que ele fugiu?
J: Ele...ele...bagunçou...quebrou o vidro da janela.
P: E depois, o que ele fez?
J: Ele foi...entrou, é... entrou num lugar que conserta bicicleta...(...)”.
2- Recursos
mobilizados pelas crianças
Foram denominados recursos todos os conhecimentos colocados em jogo no
processo de atribuição de sentido ao texto e na construção
das narrativas. Os principais recursos mobi-lizados pelas crianças
foram:
- Apoio na experiência anterior: situações vividas
pela criança colocadas na história para justificar atitudes
de personagens, presença de objetos na história, etc. Nessas
leituras, as personagens de Filó e Marieta marcaram encontro no
Shopping da cidade e compraram pre-sentes em lojas conhecidas das crianças,
e o personagem de Ida e Volta ganhou uma bicicle-ta de natal, dançou
com a sua mãe, estava saindo para comprar comida ou para passear
com um amiguinho da escolinha onde estuda, etc.
- Recursos lingüísticos: utilização de expressões
introdutórias próprias dos contos de fadas para iniciar
ou finalizar a história (no caso dos dois livros, “era uma
vez” e “viveram felizes para sempre” foram as expressões
utilizadas), uso de expressões de linguagem (“não
se bicam”, “com muito custo”, “dar sossego”
e“sujou!”, em Filó e Marieta; e “arrebentar-se
no muro” e ficar “vermelha de vergonha” em Ida e Volta.
Além disso atentou-se para o uso de conectivos para encadear as
sentenças. (“daí”, “então”
e “aí”, predominantes nas narrati-vas de nível
B) e quanto ao de tempos verbais (predominância do pretérito
perfeito do indica-tivo) e substitutivos utilizados para se referir aos
sujeitos (ela, ele, aquele, aquela).
3- Apoio
nos indícios visuais convencionais
O apoio nas convenções ocorreu em duas situações:
na identificação dos personagens e nas cenas que denotavam
movimento e ação. O quadro 2 mostra quais foram os indícios
em que as crianças se fundamentaram para construir a identidade
dos personagens da história.
Quadro 2-
Identificação e caracterização dos personagens
a partir de indícios
Livro |
Nome |
Caráter |
Idade |
Filó e Marieta |
Cor da roupa
Leitura da introdução do livro
|
Expressões faciais e corporais |
Traços fisionômicos
Roupa |
Ida e Volta |
O nome do personagem não aparece; cada criança inventou
um nome
|
Ações praticadas no decorrer das cenas |
Vestimentas no guarda roupa
Objetos presentes nas cenas
|
Os nomes
das personagens Filó e Marieta foram identificados por intermédio
da lei-tura da primeira folha do livro, realizada pela criança
ou pela pesquisadora (quando a criança não conseguia ler,
e pedia) : Marieta estava só, sem saber o que fazer. vem Filó
com um pre-sente... ih, meu deus...o que vai acontecer?
Mediante essa leitura, algumas crianças deduziram quem era a Filó
(a que estava com o presente) e quem era a Marieta (a que estava só).
Além disso, apoiaram-se na cor dos ves-tidos e do cabelo para se
referir aos personagens, dizendo que “ a de cabelo vermelho é
a Ma-rieta” ou “a de lilás, que é a Filó,
falou...”
Quanto ao caráter e a idade, as crianças basearam-se na
expressões faciais das perso-nagens, as quais incitaram os leitores
a interpretar o caráter e as atitudes das personagens como de duas
pessoas boas, amigas, bem humoradas. Para a conjecturar sobre a idade
das bruxas as crianças levaram em conta os indícios visuais
convencionais, os quais caracterizam uma pessoa de “mais idade”:
vestimentas, no mínimo excêntricas (roupa, chapéu),
traços fisionômicos (formato do rosto, tamanho do nariz,
cabelos, postura, peso, altura), os quais não condizem com o padrão
de beleza dito convencional, tampouco com juventude.
Diferentemente do livro anterior, cujas características dos personagens
são represen-tadas nos desenhos, no livro Ida e Volta isso não
acontece: o que se vê dos personagens são apenas as pegadas,
cabendo ao leitor caracteriza-los mediante a leitura de outros elementos
presentes nas cenas.
Das 9 crianças que realizaram a leitura de Ida e Volta, 4 acharam
que se tratava de um personagem adulto (no caso, um homem), 4 inferiram
tratar-se de um menino e uma criança se referiu ao personagem como
sendo uma menina, baseando-se na cor da bicicleta, que apa-rece somente
na última página do livro (cor de rosa). Para tanto, apoiaram-se
nos indícios visuais e nas marcas que indicavam convenções
para justificar suas afirmações: fantasias, utensílios
e brinquedos “de menino” no guarda-roupa, o formato dos pés
(menos delicados para uma mulher), a cor das pegadas (a pegada escura
, indicando um “sapato de homem”) a ação de
brincar com a bola de futebol e até a bicicleta, citada por uma
criança como “brin-quedo que os meninos mais pedem no natal”.
Quanto às marcas gráficas que denotavam movimento e ação,
os traços foram inter-pretados pelas crianças de várias
maneiras. Os pontos ao redor da estrela situada na ponta da varinha como
“brilho” em Filó e Marieta, e os traços pontilhados
e circulares dispostos no chão como volteios de dança, em
Ida e Volta::
“(...) aí apareceu uma varinha brilhando, brilhando...olha
(aponta a varinha para a pesquisadora).
P: por que você acha que ela está sempre brilhando?
V: Olha os “pontinhos” aqui, de brilho... Se ele “sair”
em outra folha,
é porque ela não brilha mais, parou de brilhar (V, 5 a;
9 m.)” .
Na cena de Ida e Volta, além da disposição dos pés
e das marcas, a presença do gra-mofone constituiu-se num indício
de que o personagem dançava ao som de uma música. Os traços
pontilhados e circulares foram interpretados como volteios dados pelo
personagem, o que levou uma criança a conjecturar que ele tivesse
“ficado zonzo de tanto girar” (M. 6 a.)
  
4- Operações
mentais
Algumas das manifestações de operações mentais
observadas na leitura das imagens dos dois livros foram: estabelecimento
de relações causais, a apresentação de inferências,
justificativas, antecipações.
Dos 10 leitores mirins, 6 conseguiram associar o presente dado por Filó
no início do livro com o bolo que aparece no final como sendo do
aniversário da Marieta.

Perguntada
porque achava que era o aniversário da Marieta, B. responde: “porque
ela ganhou o presente no começo do livro e o bolo no fim, “com
velinha e tudo”.
Em Ida e Volta, o estabelecimento de correspondência entre acontecimentos
também ocorreu entre as ações de entrar no banho
(início do livro) e sair do banho (final do livro). Das 9 leitoras
, 4 destacaram na leitura o fato da história começar com
o personagem reali-zando a mesma ação no início e
no final da história, como foi o caso de uma criança que
per-guntou: “o livro começa na capa”?

Resultados
e Discussão
Remontando ao primeiro objetivo desse trabalho, que foi averiguar o grau
de intera-ção entre crianças pré-escolares
e os indícios presentes nos livros de imagens, os dados obti-dos
mostram a complexidade dessa interação, e a ocorrência
de diferentes níveis de desen-volvimento da leitura de imagens.
Revelam também o papel que as experiências vivenciadas pelas
crianças (não somente com esse tipo de texto, mas também
aquelas que têm lugar em sua vivência cotidiana) desempenham
nesse processo.
Ao observarem as imagens, elas refletiram sobre elas e utilizaram seus
conhecimentos anteriores para poder entendê-la, realizando, assim,
a leitura preconizada por Buoro (2002, p.31), a qual consiste na compreensão
do texto visual mediante uma interação significativa estabelecida
entre o leitor e o texto.
De igual modo, a utilização da leitura de mundo para dar
sentido ao texto visual, con-firma a afirmação de Paulo
Freire (1984, p.22), no sentido de que a leitura de mundo sempre precede
a leitura da palavra e, por assim dizer, também da imagem, pois
a compreensão dada pela criança ao mundo observado e vivido
(interpretação de expressões, convenções
conheci-das), auxiliou-a na atribuição de sentido e na construção
da história do livro. Dessa forma, cada criança narrou a
história do seu jeito, utilizando-se da sua vivência, o que
confirma as afirmações de Rossi (2003, p. 40) de que não
há leitura de imagens que não seja influenciada pela experiência
de vida do leitor, e que as interpretações dadas pelas crianças
são geradas nos contextos por eles vivenciados.
Outro objetivo desse estudo foi verificar em quais indícios do
livro as crianças se a-poiariam para a estruturar uma história
levando em conta a interpretação do texto não verbal.
Dentre os indícios utilizados pelas crianças para interpretar
as imagens, destacam-se as for-mas baseadas em convenções
gráficas, as quais permitiram que elas realizassem inferências
e comparações, exercitando seu pensamento.
Os dados também revelaram a ocorrência de diferenças
entre as crianças no tocante à leitura dos indícios
e construção das narrativas. Independente do nível
socioeconômico, as crianças que possuíam mais familiaridade
com arte no contexto extra-escolar tiveram melhor desempenho que as outras
na leitura, ou seja, interpretaram com mais segurança os indícios
extraídos do texto visual, associando marcas e sinais a determinadas
situações e textos já co-nhecidos, formulando hipóteses
e assim “destacando e aproximando os significantes essenci-ais contidos
no documento visual, combinando e transformando as informações,
como diz Not (1993,p.43). Além disso, pode-se relacionar as diferenças
ao vocabulário pouco amplia-do e à dificuldade de expressão
oral de algumas crianças. Isso explica o caso de crianças
que ao “ler” as marcas indicativas nas cenas, não conseguiram
expressar verbalmente seu pensa-mento, “achar a palavra certa”
para denominar objetos, por exemplo.
Nas leituras realizadas, percebeu-se a predominância de uma narrativa
nível A. Ape-sar de ainda se encontrarem presas a um egocentrismo
característico dessa fase de desenvol-vimento (etapa pré-operatória),
9 das 19 crianças (5 em Filó e Marieta e 4 em Ida e Volta)
conseguiram interpretar todas as imagens, entendendo-as como componentes
de um mesmo enredo, de uma mesma seqüência espaço-temporal,
já levando em conta o ouvinte, o que já demonstra um certo
declínio no egocentrismo.
Outro objetivo proposto para esse trabalho é o de verificar quais
operações mentais são colocadas em jogo nesse processo.
Nesse sentido, os dados indicam que a verbalização da mensagem
visual requisitou das crianças a realização de um
trabalho de reconstrução do pensamento e de estruturação
das idéias. A leitura das imagens que compunham o livro en-volveu
a execução de operações mentais diversas,
dentre as quais se destacam : relações cau-sa-efeito, associações,
e antecipações .
As crianças exercitaram seu raciocínio fazendo, segundo
Smith (1999,p.107) “pergun-tas ao texto”. Os dados confirmam
as afirmações de Buoro (2002, p.111) e Bombini (2001, p.73)
de que a leitura de imagens envolve raciocínio, uma vez que as
crianças, mobilizando seus esquemas mentais no processo de atribuição
de sentido às imagens que viam , puderam entender como os elementos
do código visual dialogavam entre si, e quais significados ex-pressavam
a partir do modo como se encontravam dispostos, realizando um trabalho
mental relevante e significativo que nada tem a ver com a simples recepção
da imagem pela visão.
Considerações
finais
As constatações acima permitem inferir que a leitura de
imagens envolve aprendiza-do, e que a criança pode ser estimulada
a galgar patamares mais altos, cabendo à escola tam-bém
auxiliar nesse processo, principalmente oferecendo oportunidades para
as crianças cujo contato com imagens e as oportunidades de expressão
verbal sejam pouco freqüentes no con-texto extra-escolar..
O papel do trabalho pedagógico é relevante na medida em
que, da mesma forma como o contato e a exploração de diferentes
textos escritos vai auxiliar a criança a construir seu próprio
conhecimento a respeito da linguagem escrita, no caso da linguagem visual
ocorre coisa semelhante: o contato com diferentes textos compostos por
imagens pode estimular a criança a se tornar um leitor crítico
e também, quem sabe no futuro, um produtor de ima-gens.
Ao ser convidada a interpretar diferentes imagens, a criança poderá
desenvolver e e-ducar o seu olhar, conhecendo diversas representações
do mesmo objeto e expressões, reali-zadas em diferentes contextos
(caricaturas, fotos, pinturas, desenhos). Também ao ser estimu-lada
a narrar o que vê, a criança estará desenvolvendo
sua expressão verbal, aprendendo a organizar suas idéias
e verbalizar seu pensamento cada vez mais coerentemente.
Esse horizonte de mudanças propõe à escola um grande
desafio: incluir o trabalho com imagens na sala de aula desde cedo, adaptando-se
dessa forma ao novo cenário que hoje se delineia, formado por alunos
mais questionadores, “bombardeados” por um crescente nú-mero
de informações visuais que recebe cotidianamente. Sendo
assim, o uso de livros somen-te de imagens na sala de aula desenvolve
e exercita o raciocínio, o que torna o livro de ima-gens um ponto
de partida para a leitura do texto escrito, desenvolvendo habilidades
necessá-rias para sua efetiva realização: ordenação
de idéias , associações, comparações,
elaboração de inferências, etc.
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