Maura Maria Morais de Oliveira Bolfer - Instituto
Superior de Educação Uirapuru (ISEU) e Universidade Metodista
de Piracicaba (UNIMEP)
Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela
Modelando o artista ao seu feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor a boca
Como contrapesos de um sorriso
Já vestindo a pelo do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta
Dança o tempo sem cessar, montando
O dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama
Que está por ser escrito
No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista o infinito
(Chico Buarque)
Como é difícil iniciar este texto! Pensar em por que ensino
como ensino me leva a pensar na vida profissional, constituída
de muitas histórias e de incontáveis momentos que precisam
ser dignificados e celebrados, faz com que eu tome posse de minha própria
existência, de quem realmente sou.
Inicio este trabalho pensando se tenho vivido em estado de consciência
de minha participação no todo, naquilo que ocorre dentro
e fora de mim ou se tenho apenas sobrevivido, encontrando justificativas
para estar viva, sem compreender a dimensão real de minha ação
profissional. Para fazer esta reflexão, preciso retomar a memória
e rever os caminhos percorridos, os desafios enfrentados e as conquistas
realizadas. É preciso arrumar coragem para parar e olhar para trás,
apurar os sentimentos, ouvir o corpo, entrar em contato com a minha própria
essência e recuperar o tornar-me professora, considerando que, do
ponto de vista histórico-cultural, assim como “aprendemos
a ser homens e mulheres nas relações que estabelecemos entre
nós, mediados pelos significados e práticas culturais”
(FONTANA, 2000: 35), aprendi também a ser professora resgatando
minhas vivências familiares, escolares (tanto na escola elementar
como na de cunho profissional) e profissionais. Vou tornando-me professora
nas relações familiares, escolares e profissionais. Vou
constituindo-me por vocação, por formação
acadêmica, pelo exercício docente, pela interlocução
com meus pares, pela consciência de meus atos, pelo que deu certo,
pelo que deu errado, por aquilo que sou, por aquilo que dizem que sou
e pelo que desejo ser.
Desde 2002 deixei o trabalho docente com as crianças, ficando exclusivamente
com a docência e a coordenação no ensino superior.
Inicio também um mestrado na Unicamp.
Este período foi, para mim, a vivência um momento histórico
especial que apontou o presente como único lugar do possível
futuro e por isso, precisava ser vivido com paixão. Paixão
que é motor da teimosia de pessoas que ousam fundir afeto e trabalho,
professando e confessando a dor e a delícia de ser artífice
do futuro numa tarefa sempre nova. Estar aberta a uma tarefa sempre nova
é parte do meu ofício, do ofício de ser professora.
Este contexto todo me faz lembrar de um conto que considero muito significativo:
“O rei e a omelete”, de autor desconhecido.
Era uma vez um rei que tinha todos os poderes e tesouros da Terra, mas
apesar disso não se sentia feliz e a cada dia ficava mais melancólico.
Um dia chamou o seu cozinheiro preferido e disse: “Você tem
cozinhado muito bem para mim e tem trazido para minha mesa as melhores
iguarias, de modo que lhe sou muito agradecido. Agora, porém, quero
que você me dê uma última prova de sua arte. Você
deve me preparar uma omelete de amoras iguais àquelas que eu comi
há cinqüenta anos, na infância. Naquele tempo, meu pai
tinha perdido a guerra contra o reino vizinho e nós precisamos
fugir. Viajamos dia e noite através da floresta, onde afinal acabamos
nos perdendo. Estávamos famintos e cansadíssimos, quando
chegamos a uma cabana onde morava uma velhinha que nos acolheu generosamente.
Ela preparou para nós uma omelete de amoras. Quando comi fiquei
maravilhado: a omelete era deliciosa e me trouxe novas esperanças
ao coração. Naquela época eu era criança,
não dei importância à coisa. Mais tarde, já
no trono, vasculhei todo o reino, porém não foi possível
localiza-la. Agora quero que você me atenda esse desejo: faça
uma omelete de amoras igual à dela. Se você conseguir lhe
darei ouro e o designarei meu herdeiro, meu sucessor no trono. Se você
não conseguir, entretanto, mandarei mata-lo.” Então
o cozinheiro falou: “Senhor, pode chamar imediatamente o carrasco.
É claro que eu conheço todo o segredo da preparação
de uma omelete de amoras, sei empregar todos os temperos. Conheço
as palavras mágicas que devem ser pronunciadas enquanto os ovos
são batidos e a melhor técnica para bate-los. Mas isso não
impedirá de ser executado, porque minha omelete jamais será
igual à da velhinha. Ela não terá o sabor picante
do perigo, a emoção da fuga, não será comida
com o sentido alerta do perseguido, não terá a doçura
inesperada da hospitalidade calorosa e do ansiado repouso, enfim conseguido.
Não terá o sabor do presente estranho e do futuro incerto.”
O rei ficou calado durante algum tempo. Não muito mais tarde, consta
que lhe deu muitos presentes, tornou-o um homem muito rico e despediu-o
do serviço real.
Assim como o cozinheiro poderia fazer a melhor omelete ao rei e não
satisfazê-lo, eu também posso fazer os melhores cursos, ler
os melhores livros, conviver com ótimos professores, ter acesso
às melhores tecnologias e não ser uma professora competente.
Isso acontecerá se eu não fizer diariamente, o resgate da
amorosidade, da cumplicidade, do carinho e da sedução, componentes
intrínsecos e tão necessários do vir a ser professora.
Neste precioso momento,retomar/resgatar tudo isso, já é
um outro momento.
Mestrado defendido em 2003. Ingresso no doutorado em 2004. O trabalho
docente continua e as reflexões sobre a prática ganham corpo
e forma à luz dos textos estudados na disciplina “Necessidades
formativas de professores”.
O texto de Zeichner (1993) me fez pensar muito sobre meu fazer pedagógico,
meu fazer enquanto coordenadora e professora de cursos de formação
de professores. Me fez olhar para mim mesma, para meu cotidiano que vislumbra,
via profissionalização do professor, uma sociedade mais
justa. Como fazer para que isso não seja apenas um slogan, mas
de fato uma prática significativa para mim e para meus alunos?
Em que medida aceito as coisas que estão na moda, ou impostas pela
legislação, sem ter a certeza de que esse é o melhor
caminho?
Percebo, à luz das idéias de Dewey, que em minha prática
docente me aproximo muito mais de uma “ação reflexiva”
do que de uma “ação rotineira”, porque acredito
que reflexão “implica intuição, emoção
e paixão” (ZEICHNER, 1993: 18) aliada aos conhecimentos técnicos/acadêmicos
e à busca de soluções lógicas e racionais.
Por conta disso, fico buscando a abertura de espírito, a responsabilidade
e a sinceridade para que essa ação se concretize na sala
de aula, espaço de atividade e de conflito.
Ao pensar nisso é preciso ressaltar concepções arraigadas
ao “bom ensino” que precisa levar em conta “a representação
das disciplinas, o pensamento e compreensão dos alunos, as estratégias
de ensino sugeridas pela investigação e as conseqüências
sociais e os contextos de ensino” (ZEICHNER, 1993: 25). É
isso, de certa forma, que dará cor ao trabalho e à prática
reflexiva.
Algumas idéias apresentadas por Zeichner (1993) apontam uma saída
factível e que contribuem positivamente ao elaborar/planejar minhas
aulas. Começo, cada vez mais a ver os professores enquanto produtores
de saber, procurando propiciar o estudo de situações vividas
em sala de aula e inclusão de relatos/trabalhos de professores
para leitura e reflexão; utilizar instrumentos que facilitem o
encaminhamento para a reflexão do professor; conscientizar e valorizar
os compromissos educacionais e políticos do professor.
Estou tentando aprofundar essa reflexão a medida em que torno-me
espectadora de minha própria prática, analisando-a através
do conhecimento científico, levando em conta a singularidade sócio-histórica
vivida por mim, por meus pares e pelos seus alunos. Além disso,
em minhas reflexões, não posso deixar de relacionar e integrar,
de forma criativa e inovadora, o conhecimento, a técnica e a prática.
Para que isso se concretize faz-se necessário que coloque em exercício
a capacidade de recolher os dados e interpretá-los, pensando nas
conseqüências do trabalho educativo desenvolvido e a possível
aplicação dos resultados no futuro.
Por conta disso, vale destacar que
A reflexão implica a imersão consciente do homem no mundo
e sua experiência, um mundo carregado de conotações,
valores, intercâmbios simbólicos, correspondências
afectivas, interesses sociais e cenários políticos. (...)
A reflexão é um conhecimento contaminado pelas contingências
que rodeiam e impregnam a própria experiência vital (GÓMEZ,
1992: 103).
Nesse sentido, para transformar-me em professora prática é
necessário fazer uso do pensamento prático. Isso se dá
quando há a integração de três processos complementares
entre si: ‘conhecimento-na-acção’ (manifestado
no saber fazer), ‘reflexão sobre a acção’
(reflexão crítica sobre a representação ou
reconstrução a posteriori da acção) e ‘sobre
a reflexão-na-acção’ (possibilitando ser um
investigador da sala de aula). Esses processos se encadeiam quando, retrospectivamente
analiso o ensino e a aprendizagem, reconstruindo os conhecimentos, os
sentimentos e as ações.
Nesse sentido, o conhecimento do que acontece dentro da escola torna-se
condição importante para nos apropriarmos dela, com vistas
à sua transformação, ao seu vir a ser. Assim, nossa
competência de professor reflexivo, de alguém que toma decisões
e resolve problemas, se expressa a medida em que o domínio do conteúdo,
do saber escolar e dos métodos adequados para trabalhá-los
são favoráveis aos alunos que não apresentam as precondições
idealmente estabelecidas para sua aprendizagem.
Ao se considerar a atividade docente como ato político, a reflexividade
do professor ganha espaço e significado, impedindo uma “apropriação
generalizada e banalizada e mesmo técnica da perspectiva da reflexão”
(PIMENTA, 2002: 25). Isso dá força a um movimento que aponta
a atuação docente numa perspectiva emancipatória.
PIMENTA (2002) ainda nos diz que para compreender esse movimento é
preciso ter em mente o que se entende por teoria e seu papel na reflexão:
oferecer aos professores perspectivas de análise para compreenderem
os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e
de si mesmos como profissionais, nos quais se dá sua atividade
docente, para neles intervir, transformando-os [e que a reflexão
é um ato coletivo que incorpora a idéia de professores como
intelectuais críticos e transformadores] (2002: 26).
Libâneo (2002), por sua vez, aponta três significados distintos
para a reflexividade: como consciência dos próprios atos
do sujeito; como algo imanente à própria ação;
e como dialética, uma realidade em movimento captada intencionalmente
pelo pensamento humano.
A partir dessas idéias, enquanto professora de Prática de
Ensino, tanto no curso de Letras como Normal Superior e de alguns módulos
na pós-graduação em Gestão Escolar, que desenvolvi
as atividades ao longo do semestre buscando, ainda, apoio na “tradição
desenvolvimentista” (ZEICHNER, 1993). A “tradição
desenvolvimentista” me aponta como caminho uma formação
centrada no aluno, uma formação humanista. Essa formação
leva à formação do professor, enquanto naturalista,
artista e investigador. Enquanto naturalista, a partir daquilo que observo
em seus alunos é que construo o currículo e proponho um
ambiente favorável à aprendizagem. Enquanto artista, faço
uso de conhecimentos da psicologia do desenvolvimento para pensar em estratégias
de ensino-aprendizagem que revelem a criatividade, o questionamento e
a abertura de pensamento. Enquanto investigadora apresento atitude experimental
em relação à minha própria prática.
Na turma de Letras de 2004, por exemplo, formada por alunos ingressantes,
tinha como tarefa principal a inserção deles na escola (futuro
campo de atuação), não mais enquanto alunos, mas
como potenciais professores. Primeiro, pedi para que fizessem uma ‘visita
orientada’ de reconhecimento do local. Após a realização
da visita, os alunos puderam apresentar as principais características
de cada escola, destacando o papel que ela representava para a comunidade
na qual estava inserida. Precisava trabalhar com esses alunos algo produzido
nessas escolas. Foi aí que veio a idéia de trabalhar com
textos produzidos por crianças de 1a a 4a série. No início,
os alunos estranharam um pouco o fato dos textos serem de 1a a 4a série,
afinal “vamos trabalhar com alunos de 5a série em diante”,
diziam. Aí procurei destacar a importância de conhecerem
um pouco sobre o trabalho realizado nas séries iniciais do ensino
fundamental para que pudessem entender melhor os processos de escrita
que vivenciam as crianças antes de chegarem na 5a série.
A partir daí começamos a coletar os textos.
Os textos foram chegando e nos dedicamos à leitura deles. Não
podíamos fazer a leitura pela leitura. Por isso, ao mesmo tempo
em que traziam as produções das crianças para a sala
de aula, iam lendo e estudando textos que ajudavam no entendimento. Procurei
selecionar textos, produções de professores-pesquisadores
refletindo, entendendo e significando a própria prática.
Foi nesse período que tomo contato com o texto de Soares que me
diz “existe, ou deve existir, influência das pesquisas nas
áreas específicas sobre os cursos de formação
de professores” (2002: 94). Foi interessante a descoberta dos alunos
de que os professores que atuam no ensino fundamental também são
pesquisadores, também produzem textos valorizados e validados academicamente.
Estudando os textos teóricos e lendo os textos produzidos pelas
crianças os alunos puderam estruturar, cada um, o seu banco de
textos. No banco de textos as produções das crianças
foram agrupadas de acordo com critérios estabelecidos pelos alunos.
Houve a preocupação em justificar esses critérios
a fim de validar a inserção das produções
em determinado grupo. Penso que, partindo do conhecimento do que as crianças
produzem na escola os ‘futuros professores’ possam pensar
em intervenções pedagógicas.
Acredito que esse trabalho foi interessante, pois possibilitou a todos
a consciência de que, tanto as crianças, como meus alunos
e eu mesma, somos sujeitos leitores e sujeitos autores.
O eu levo dessa reflexão
Daquilo que eu sei
Nem tudo foi permitido
Nem tudo me deu certeza
Daquilo que eu sei,
Nem tudo me foi proibido
Nem tudo me foi possível
Nem tudo foi concebido
Não fechei os olhos
Não tapei os ouvidos
Chorei, toquei, provei
Ah! Eu usei todos os sentidos
Só não lavei as mãos
E é por isso que eu me sinto
Cada vez mais limpo!
(Ivan Lins & Victor Martins)
Concebidos a priori como seres inacabados, expostos a
um constante aprendizado, a uma educação continuada, como
devo agir, enquanto profissional da educação, nessa sociedade
em acelerada mudança? Como, enquanto profissional, digiro o conteúdo
teórico formador, o avalanche de recursos tecnológicos e
a minha prática pedagógica?
Falta-me, muitas vezes, humildade suficiente para aceitar verdadeiramente
essa minha inconclusão e olhar a beleza do valor desse constante
aprendizado, que nos torna humanos e não deuses. “Gosto de
ser gente, porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente
do inacabamento, sei que posso ir além dele” (FREIRE, 2000:
59).
Preciso sair da prisão em que, muitas vezes, acabo me encontrando,
tirar as amarras e entregar-me à maravilha da construção
desse ser criado à imagem divina, com todos os recursos disponíveis
para o aperfeiçoamento. Preciso realmente estar no mundo, afinal,
Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazer
cultura, sem tratar sua própria presença no mundo, sem sonhar,
sem cantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas,
sem usar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista
sobre o mundo, sem fazer ciência ou teologia, sem assombro em face
do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação,
sem politizar não é possível. É na inconclusão
do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como
processo permanente (FREIRE, 2000: 64).
Imaginemos um diamante bruto e que precisa percorrer um longo caminho
para se tornar uma jóia, tornar-se aquilo que encanta e é
admirado por sua essência. Não é uma pedra oca, mas
traz dentro de si algo de real valor, com um interior que precisa de estímulo
adequado para abrir-se. Assim também é o ser humano.
Nasce o ser humano, homem ou mulher, à família cabem as
primeiras adaptações. Adaptações sim, porque
esse homem, essa mulher vão estabelecer contatos com algo que já
existe, que já tem uma estrutura, onde alguns papéis já
estão definidos e servem como parâmetros para o papel que
irão assumir ao longo de sua existência. Mas que maravilha,
a essência da criatividade acompanha-os dando-lhes a oportunidade
de criar algo novo, com a sua identidade! E nós, adultos, precisamos
abrir espaço para que essa identidade possa florescer. Onde cada
momento vivido será uma cena, que, uma vez perdida, uma vez “violentada”
será morta e dificilmente terá a chance de ser recuperada.
Esse homem, essa mulher vão se desenvolvendo, enfrentando, cada
um a sua maneira o seu dia-a-dia, vão lendo o mundo com os recursos
que dispõem, até que chega o dia de entrar na escola, não
como seres ignorantes, mas seres com uma história de vida, com
acúmulo de experiências.
Muito bem, é esse homem, é essa mulher que nos fazem professores,
que me faz professora, que dão sentido à nossa tarefa educadora,
pois sem a presença deles não teríamos sentido. E
agora, qual é o nosso papel na vida desse homem, na vida dessa
mulher?
Ensinar exige a existência de quem ensina e de quem aprende. Quero
dizer que ensinar e aprender se vão dando de tal maneira que quem
ensina aprende, de um lado, porque reconhece um conhecimento antes aprendido
e, de outro, porque, observando a maneira como a curiosidade do aluno
aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o que não
o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos.
(...) O aprendizado do ensinante ao ensinar se verifica na medida em que
o ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente disponível
a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que
procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e os diferentes caminhos
e veredas que ela os faz percorrer (FREIRE, 1998: 27).
Com certeza, quando decidi ser professora, não tinha a lucidez,
que tenho hoje, da minha real responsabilidade, do meu verdadeiro papel
dentro da sociedade, da necessidade de trabalhar com as diferenças
dentro da sala de aula. Não conhecia a real importância de
virtudes, já apontadas por Freire (2000), tão necessárias
como a amorosidade (que permite ter carinho, afeto pelo outro e por nós
mesmos), a tolerância (que permite que possamos admitir e respeitar
opiniões e atitudes contrárias às nossas, permite
que se desculpe), a abertura (que dá a possibilidade de enxergar
o novo), a persistência (que propicia a perseverança em nossos
ideais), a disponibilidade (que permite aceitar sem impedimentos preconceituosos
as solicitações do que é externo), o respeito (que
permite acatar o parecer alheio, a postura alheia, sem medo ou preconceito),
a humildade ( que permite mostrar a modéstia, não ter vergonha
de reconhecer as próprias limitações, de reconhecer
um erro, de fazer o caminho de volta, se preciso for), a responsabilidade
(que faz considerar-se responsável, que permite responder por alguma
ação ou conceito de maneira coerente), a coragem (que possibilita
ter a firmeza, a bravura permeando nosso trabalho ) e a alegria (que deixa
nosso trabalho com marcas de contentamento, de satisfação
por estar no mundo, com o mundo, sendo sujeito). E é por isso,
que nessa caminhada, ao longo do percurso, olhando para trás, posso
encontrar momentos em que me odiei enquanto professora, momentos em que
permiti que alguma coisa morresse em alguém e em mim também.
Mas não posso me entristecer! É preciso fazer desses momentos
algo que fortaleça o meu trabalho hoje. Esse olhar ao passado deve
fazer-me refletir, e que seja criticamente, sobre as atitudes e me direciona
as atitudes posteriores.
Nesse pensamento, qual deve ser o papel da escola na vida desse homem,
na vida dessa mulher?
Acredito que a escola hoje precisa ser fortalecida, deve deixar de ser
um mero local de instrução e tornar-se um local de formação
humana para a sociedade, para a liberdade, para a responsabilidade, para
colocar o saber a serviço da coletividade.
Nessa escola exigida em nossa mente, como devo ser, enquanto professora?
Em primeiro lugar, estar comprometida comigo mesma para depois assumir
um compromisso com o outro. Enquanto profissional preciso instrumentalizar-me
da ciência, da tecnologia, para uni-las às suas virtudes
e realizar realmente um trabalho de humanização.
Enquanto professora faz-se necessário integrar o educando, realizando
uma adaptação ativa, onde existam relações
entre eles e não contatos. Porque as relações são
reflexivas, conseqüentes, transcendentes e temporais e, os contatos,
ao contrário, são reflexos, inconseqüentes, intranscendentes
e atemporais.
Preciso estar atenta ao contexto em que estou inserida, realizando um
efetivo trabalho de equipe para que o conhecimento a ser explorado e trabalhado
não fique fragmentado, que não existam fronteiras entre
uma disciplina e outra, que se possa fazer um verdadeiro “encaixe”
entre uma e outra. É necessário olhar o educando e o conteúdo
sob vários ângulos, é preciso ter uma postura interdisciplinar.
Se a educação proposta pela escola for inibidora, estaremos
domesticando e o que é domesticado perde a possibilidade de ser
agente de transformação. Não se torna um sujeito
que exercerá sua cidadania, isto é, com participação
na construção. A escola precisa “construir”
gente que possa ajudar na conversão da sociedade. Já dizia
Freire (2000), que o destino do homem deve ser criar e transformar o mundo,
sendo sujeito de sua ação.
Preciso pensar e viver uma escola que propicie a problematização
da realidade, que reflita junto com os sujeitos as reais dificuldades,
as reais possibilidades da sociedade, devendo ampliar sua metodologia,
suas técnicas de ação, sua preocupação
com a formação de seus profissionais. Uma escola que assume
seu papel de fazer sujeitos, a partir de suas relações com
o mundo, que criem, que recriem, que decidam, que se libertem pela conscientização,
que dialoguem verdadeiramente com o outro, com a realidade, que possam
ter atitudes críticas, que possam fazer História.
Preciso estar, cada vez mais, consciente de que a educação
é transcendente, passa de geração para geração,
mas o modo de educar pode e deve sofrer mudanças. Portanto, a escola
deve ser o lugar onde os sujeitos, educadores e educandos, possam ser
agentes da aprendizagem, onde sejam respeitadas as diferenças individuais
e com elas construa-se a coletividade. As crises devem ser encaradas como
oportunidades de construção e de transformação.
Onde todos possam ter a segurança de que sabem algo e de que ignoram
algo.
E é a partir do professor, da professora, da autonomia que eles
devem ter na realização do seu trabalho, é que essa
escola poderá ser construída e formar verdadeiros cidadãos,
sujeitos ativos na sociedade. Como diz Contreras (1994), melhorar a educação
é um empreendimento individual, social e político, que depende,
para obter êxito, da existência de comunidades críticas
de pessoas comprometidas na melhoria da educação como um
processo social e cultural.
Só a ação coletiva e organizada pode realizar-se
a partir de comunidades críticas, ampliando sua área de
influência e incorporando paulatinamente mais pessoas e mais setores
sociais, dando lugar a uma forma educativa e social.
Referências Bibliográficas
CONTRERAS, José. La insvestigación la acción.
Cuadernos de Pedagogia, 224, 7-19, 1994
FONTANA, Roseli A. Cação. Como nos tornamos professora?.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à
prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, 16a edição
_______. Professora sim, tia não – cartas a quem ousa ensinar.
São Paulo: Olho d’Água/Loyola, 1998, 9a edição
GÓMEZ, Angel Pérez. O pensamento prático do professor:
a formação do professor como profissional reflexivo. In:
NÓVOA, Antonio (org.). Os professores e a sua formação.
Lisboa: Dom Quixote, 1992
LIBÂNEO, José Carlos. Reflexividade e formação
de professores: outra oscilação do pensamento pedagógico
brasileiro? In: PIMENTA, Selma Garrido. e GHEDIN, Evandro (orgs.). Professor
reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São
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PIMENTA, Selma Garrido. Professor reflexivo: construindo a crítica.
In: PIMENTA, Selma Garrido. e GHEDIN, Evandro (orgs.). Professor reflexivo
no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo:
Cortez, 2002
ZEICHNER, Kenneth M. O professor como prático reflexivo e Concepções
de prática reflexiva no ensino e na formação de professores.
In: ZEICHNER, Kenneth M. A formação reflexiva de professores:
idéias e práticas. Lisboa: Educa, 1993