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  DIALOGANDO COM OUTRAS RACIONALIDADES: A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NO PLURAL

Rosa Helena Dias da Silva (UFAM)
Iara Tatiana Bonin (UFRGS)

RESUMO

Entendendo que o diálogo entre diferentes culturas é um diálogo entre distintas racionalidades, o trabalho se propõe a abrir o pensamento para outros possíveis, ou seja, a aprender com outras tantas maneiras de pensar, permitindo que distintas formas de pensamentos filosóficos, de organização social, política, educacional desconstruam o fetiche de que o modelo hegemônico é único. Ampliar os horizontes educativos para provocar o estranhamento sobre as nossas próprias maneiras de fazer educação é o que se busca no texto, a partir de pesquisas realizadas sobre a infância indígena no Rio Uapés, Alto Rio Negro/AM e na aldeia Nossa Senhora da Saúde, do povo Kambeba, Médio Solimões/AM.

Pressupostos para o diálogo proposto

Para pensar a filosofia da educação no plural, faz-se necessário entrar em diálogo com o outro – suas lógicas e valores – e mais do que isso, estar convencido de que este é um processo que vale a pena. Assim, a reflexão acerca da existência de filosofias da educação indígena nos desafia a pensar de outras maneiras. Não se trata, necessariamente, de romper com o que foi historicamente instituído como saber hegemônico, como “conhecimento válido”. Trata-se de um distanciamento necessário, para percebermos que em muitas destas perspectivas - que parecem novas - habitam velhas idéias como, por exemplo, a divisão entre pensamento primitivo (mágico, irracional, entre outros nomes que foram/são usados para caracterizar os saberes tradicionais dos povos indígenas) e saber filosófico e/ou científico. Perspectivas como essa encerram o assunto antes mesmo que um possível diálogo tenha sido estabelecido.

Neste processo de mudança de visão e paradigma frente a questão de como a humanidade – com toda sua diversidade – pensa sobre si mesma e seu mundo, constrói conhecimentos e verdades, impõem-se a necessidade de superarmos o etnocentrismo que acompanhou a trajetória destes 504 anos de Brasil. Da mesma forma, é preciso admitir que há outras lógicas, outros jeitos de olhar e explicar a realidade e seus “problemas”. Enfim, há racionalidades – no plural.

Filosofias da educação? Por que, para que e para quem?

Como sabemos, falar de filosofia da educação - indígena ou não - é tocar fundo em questões chaves como saber e poder, conflito e resistência, dominação e diálogo intercultural, reprodução e construção de conhecimentos, interesses e ideologias, manutenção ou transformação da ordem, enfim, é falar de processos em luta. É falar de projetos de sociedade e de humanidade, de autonomia e protagonismo.

Desde logo é preciso definir de que filosofia (ou filosofias) da educação se está falando. Para pensar tal problemática, faremos um paralelo com uma reflexão realizada por Rodrigues (1999) e Holliday (1985) acerca da educação popular. Segundo Rodrigues, o termo popular, acrescido à educação, pode ser compreendido sob distintas maneiras. Uma delas enfatiza a visão de uma educação preparada para atender as carências e necessidades das classes populares. É a “educação para o povo”, tomada no sentido de suplência e de controle social. “(...) Tomada nesta acepção, educação popular implicará para o povo deixar-se programar para resignar-se à inferioridade, à infantilidade e à sobrevivência, sob a tutela despótica dos prepotentes”. Para Holliday, a educação popular é, fundamentalmente, a dimensão educativa do agir político. Assim, o que caracteriza o adjetivo “popular” não é o destinatário e sim o protagonismo de seu próprio aprender. O mesmo questionamento pode ser atribuído para pensarmos a problemática da palavra “indígena” acrescida à filosofia da educação.

Gadotti (1995), ao tratar da História das Idéias Pedagógicas nos lembra que “o pensamento pedagógico brasileiro começa a ter autonomia apenas com o desenvolvimento das teorias da Escola Nova. Quase até o final do século XIX, nosso pensamento pedagógico reproduzia o pensamento religioso medieval”. Ou seja, na nossa historiografia oficial, os pensamentos filosóficos e pedagógicos indígenas foram apagados, silenciados.

Vemos assim que uma das primeiras questões que se sobressai neste debate é a da visão etnocêntrica que predominou ao longo da história brasileira com relação aos povos indígenas. Havia um modelo eleito como verdadeiro e legítimo para definir o que é “ser humano”, “ser civilizado”, “ser desenvolvido”, “ter cultura”. A partir desta perspectiva etnocêntrica, os povos indígenas foram tratados como “os outros”: inferiores, menores, cidadãos de segunda categoria. Ser índio foi considerado condição temporária, tempo de passagem, rumo à “verdadeira” civilização. O futuro de todos era alcançar o modelo hegemônico de “civilidade”, sendo necessário superar a situação de “atraso”, de “primitividade”, de “carência”.

Na história política de nosso país, a diversidade de lógicas, pensamentos, sabedorias e racionalidades, a riqueza de culturas, de jeitos de ser humano neste Brasil foi tida como problema, como obstáculo ao modelo de desenvolvimento/progresso que predominou. Os povos indígenas foram considerados como portadores de “déficits” e não como sujeitos com potencialidades e valores próprios.

Nesta ótica, como mostrou Meliá (1979), “pressupõe-se que os índios não têm educação, porque não têm a nossa educação”. Diriam então: se não há educação, tampouco uma filosofia da educação. Esse tipo de preconceito tem gerado a idéia de que é necessário “fazer a educação do índio”.

Uma outra resultante do processo colonial que predominou em nosso país está ligada ao fato de que foi difundida – muitas vezes, e ainda hoje, com apoio forte das escolas – a idéia de que o “bom é o de fora”, de que “a” verdade é a “deles” – o ocidente invasor... Neste sentido, como já apontamos, os povos indígenas foram olhados como aqueles que não tem algo, como aqueles que não sabem, sujeitos habitados por ausências... Por isso as políticas que visavam o atendimento de suas necessidades eram, fundamentalmente, assistencialistas. Eram, em última instância, compensatórias. Era preciso “eliminar os vícios que poluíam suas almas”, eliminar e/ou silenciar complexas lógicas e racionalidades que se confrontavam (e resistiam) à cultura ocidental – européia, branca, cristã, individualista, competitiva e excludente. Estas políticas tiveram o intuito de integrar os povos indígenas, compensando suas supostas deficiências e silenciando suas diferenças. Integração que, ainda hoje, tem a função de criar uma fronteira institucional, uma estratégia de controle sobre a “desordem” que produzem esses tantos pensamentos diferentes.

Silenciar os “outros” é uma estratégia para nos sentirmos autorizados a continuar a falar por eles, e a produzir sobre eles saberes unitários, arbitrários e totalizadores. É nessa prática que construímos verdades sobre nós e sobre os outros, e afirmamos de tal modo nossas concepções de mundo, que desejamos que os povos indígenas vejam a si mesmos como incompletos, primitivos, incapazes.

Por isso a diversidade indígena precisa ser abordada como questão filosófica e política – porque ela traz consigo a questão de como nos representamos e como representamos os outros, e traz também a tensão entre os saberes historicamente constituídos sobre estes povos e suas próprias narrativas e resistências.

Um caminho possível para pensar a diversidade na filosofia seria considerar a existência de filosofias, no plural, como valor e não como problema. Fundamental para assumir uma nova postura é reconhecer que, como afirma Stephen Corry (1994), “os povos indígenas são sociedades viáveis e contemporâneas, com complexos modos de vida, assim como com formas progressistas de pensamento que são muito pertinentes para o mundo atual”.

Pensamentos indígenas: concepções e valores na diversidade humana

Nos últimos anos, “diversidade cultural” tornou-se uma idéia comum e em torno dela se formalizam leis, diretrizes, princípios. A diversidade, como conceito, está presente na LDB, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos projetos político-pedagógicos de muitas escolas. Falando em diversidade de povos e de culturas, uma primeira idéia que é necessário colocar sob suspeita é aquela, estereotipada e genérica, de ‘índios’.

Segundo o Censo populacional do IBGE/2000, vivem hoje no Brasil mais de 230 povos indígenas diferentes, falando cerca de 180 línguas, com uma população aproximada de 700 mil pessoas . São povos que constróem e reconstróem de maneiras distintas suas próprias culturas, suas formas de viver e de educar as novas gerações. Essas múltiplas maneiras de pensar, de fazer ciência, de relacionar-se com a natureza, de construir a vida são inspiradoras para a superação de alguns dos grandes desafios da prática educativa.

Hall (1997) nos lembra que antes da colonização não havia uma “nação única, um único povo”, mas muitas culturas diferentes. O silenciamento dos povos indígenas e de suas diferentes maneiras de conceber e construir a vida foi, e em muitos casos continua sendo, a estratégia discursiva do Estado para consolidar o que hoje conhecemos como a “cultura nacional”.

Para este autor, a maioria das nações só foi unificada a partir de um longo processo de conquista violenta, no qual se investiu na supressão forçada da diferença, subjugando os povos conquistados, suas línguas, culturas, tradições e, por que não dizer, suas filosofias.

Filosofia da educação na vida indígena no Rio Uaupés/AM: a força pedagógica do exemplo, do trabalho e das brincadeiras

Como se sabe, a educação é um processo que ocorre de modos distintos e por meio de pedagogias e mecanismos próprios em cada cultura. Com relação aos povos indígenas, vemos que estes possuem espaços e tempos educativos dos quais participam a pessoa, a família, a comunidade e todo o povo. Deste modo a educação é assumida como responsabilidade coletiva.

O processo de educação e de cuidados com o bem estar da criança começa, para os povos do Rio Uaupés, muito antes do próprio nascimento. Há uma complexa e pertinente filosofia do educar presente no cotidiano indígena desta região. Vejamos alguns depoimentos colhidos durante as visita às comunidades:

Depois que já ganhamos o neném, temos a emoção de ver nosso filho, nosso neném. Assim que eu faço com meus filhos: cuido bem, crio meus filhos com cuidado. Quando já fica um pouco maior - dois anos para frente - já começamos a dar conselhos e educar para a vida. Eu sempre educo bem meus filhos.

Nossos filhos têm que educar com calma, sem estar gritando com eles. Quando os pais educam com gritos, falando alto, com raiva, as crianças já sentem. Desde a barriga, na gravidez, já podemos educar os filhos. Já vai falando com a criança. Com dois, três anos, já pode mandar fazer as coisas mais leves e eles já vão assumindo seus trabalhos.

Desde criança nós, a mulher da gente cuidava bem da criança. Depois do parto, o marido ajuda a cuidar da esposa, prepara alimentos para dar para ela. Com um certo tempo, a criança já pode ser levada para a roça. Em cada roça eu fazia a casinha, tinha rede da criança e levava os brinquedos deles. Por isso a criança já acostuma logo cedo a fazer os trabalhos.

Ao enfocarmos a questão do “como se aprende a viver”, percebemos que, mesmo dentro da diversidade de conteúdos e formas construídas pelos povos indígenas, pode-se observar aspectos que se repetem. Assim, esta recorrência (de atitudes, de modos de atuar, de práticas e valores) sugere serem estas algumas das características gerais de uma filosofia da educação para o desenvolvimento da criança indígena: aprende-se a viver dentro da vida cotidiana; adquire-se os conhecimentos necessários para a vida, com o pai, a mãe e a comunidade; aprende-se pelo exemplo e pela experimentação; a tradição cultural dos antepassados é valor fundamental e base do fazer pedagógico; preserva-se a tradição da oralidade; valoriza-se o trabalho, como meio educativo e como inserção na vida do grupo; o valor fundamental da terra é afirmado constantemente; aprende-se a conhecer e respeitar a natureza.

Destaca-se, como princípios filosóficos da ação pedagógica para o desenvolvimento infantil, a liberdade, a alegria e o prazer de viver. O que podemos perceber no contato direto com a realidade indígena e através de relatos de diferentes experiências, é que a criança aprende brincando, num clima de ampla liberdade. Agemiro Fontes, Tariano da comunidade de Ipanoré, fala da liberdade que as crianças têm na aldeia, de viver na comunidade.

Aqui as crianças correm por aí, brincam e a gente não tem preocupação. Criança anda livre aqui, anda nas capoeira, toma banho. Crianças convivem conosco pela festa, comem conosco, comem o peixe que a gente moqueia. As crianças já de 7 anos prá cima já andam pescando por aí e têm esta liberdade. No dia da festa eles convivem conosco também e comem junto e aí eles ficam lá fora brincando entre as crianças. Depois andam jogando bola e todo o tipo de brinquedo.

A criança indígena participa ativamente, e de forma integrada, da vida da comunidade. Ou seja, de todos os seus momentos, incluindo tanto as festas e rituais como as atividades produtivas - ou propriamente de trabalho: como caça, pesca, roça, entre outros. Esse “acompanhar” a vida do grupo é parte intrínseca do processo de formação.

Novamente, com Meliá (1979), vemos que “a criança indígena faz em miniatura o que o adulto faz. Vive no jogo a vida dos adultos. Aprende as atividades sociais rotineiras, participa da divisão social do trabalho e adquire as habilidades de usar e fazer instrumentos e utensílios de seu trabalho, de acordo com sua idade e a divisão de sexo”.

Contrariamente, segundo Jean Chateau (1987), em seu livro O jogo e a criança, nas sociedades de tradição ocidental, a criança logo percebe que o trabalho que lhe é permitido pelos adultos “é uma tarefa menor”, sem utilidade realmente expressiva e da qual ela tem pouca autonomia (“é vigiada de perto”; “não pode fazer sozinha”). Duas idéias centrais elaboradas por Chateau são: “é por ser estranha ao mundo do trabalho que a criança se afirma através do jogo”; “participar das tarefas adultas é sonho de toda a criança”.

Como se sabe, o jogo e a brincadeira são elementos importantes na educação infantil.

A originalidade aqui é que o índio, já desde pequeno, brinca de trabalhar. Seu brinquedo é, conforme o sexo, o instrumento de trabalho do pai ou da mãe. O índio, que brincou de trabalhar, depois vai trabalhar brincando. O seu jogo é brinquedo que não lhe deu ilusões, que depois a vida lhe negará. Pequenos arcos e flechas nas mãos de um menino ou pequenos cestos dependurados na cabeça de uma menina, que vai com a mãe buscar mandioca na roça, são cenas que têm encantado qualquer visitante de uma aldeia indígena (Meliá, 1979).

Ao falar especificamente da educação das crianças do povo Kaiowá (no Mato Grosso do Sul), Meliá (1979) nos mostra que:

no primeiro período (de um a três anos), é sobretudo a comunidade que atua sobre a criança, aprovando ou rechaçando suas atividades ou comunicando-lhes através do jogo e de exemplos da própria vida, atitudes e valores. De três a cinco anos, a criançada constitui uma verdadeira mini-sociedade, onde a vida adulta é imitada em todas as atividades diárias, até as religiosas. O respeito que os pais têm para a criança, o modo de falar com ela, quase nos pareciam exagerados. O adulto considera o papel da criança na sociedade com muita seriedade. O que não quer dizer que as relações entre eles sejam tensas ou tristes. Adulto brinca com criança e criança brinca com adulto.

Filosofia da educação no cotidiano e na escola Kambeba

Na organização social Kambeba, como em outras realidades indígenas, a educação é processual: ao longo de sua vida uma pessoa está sempre aprendendo. Ela é viva e exemplar: aprende-se pela participação na vida, observando e fazendo junto. (Fernandes, 1975). E ainda, ela fundamenta-se na tradição e na memória coletiva atualizada na palavra dos mais velhos.

Na aldeia Kambeba o ato pedagógico primordial é a participação. Para aprender, as novas gerações são estimuladas a participar desde cedo. Aos poucos elas vão assumindo todas as responsabilidades de um adulto.

Educação é ação de quem aprende. É também ação de quem ensina, é exemplo. E toda palavra é precedida de um exemplo. Assim, faz parte da filosofia do ensinar a questão do fazer junto, fazer para que o outro aprenda. E, nesse sentido, é possível dizer, como Fernandes (1975), que educar é também auto-educar, já que um adulto não pode fugir à responsabilidade da ação, não pode deixar de dar o exemplo.

Aprender é processo permanente, que segue em etapas, nas fases da vida de cada pessoa, de forma que o conhecimento vai se tornando significativo à medida que vai se construindo. Por exemplo, o menino aprende os hábitos dos animais a partir da observação sistemática, que permite que ele seja um bom caçador. Aprende a distinguir as diferentes espécies de peixes e a classifica-las, ao mesmo tempo em que aprende a ser um bom pescador. Conhecer os peixes é condição para assegurar a pesca. Na relação com a própria natureza a criança aprende, e os adultos - que vivenciam com ela cada experiência - são encarregados de explicar cada fenômeno, cada acontecimento.

A educação, a tradição, o conhecimento tem como espaço privilegiado o cotidiano, e se transmite pela tradição oral. Educar é compartilhar o dia a dia, o trabalho, a sabedoria, o espaço onde se vive a experiência de aprender, seguido de perto por aqueles que já sabem. Nesta filosofia da educação Kambeba, é papel dos adultos incentivar os mais jovens, ensiná-los pelo exemplo, aconselhá-los, valorizar as ações esperadas e repreender, sem abusos, as ações rejeitadas.

Para os Kambeba, a presença da mãe na vida da menina e do pai na vida do menino é fundamental. É papel do pai motivar os meninos a segui-lo, elogiar ou punir as ações dos filhos homens. É papel da mãe incentivar as meninas a participar das tarefas femininas, e elogiar ou punir suas ações. Mas o processo educativo não é exclusividade dos pais. Os avós ocupam lugar de destaque, bem como o chefe da aldeia, os irmãos e irmãs, os tios e tias, entre outros atores. Educar é, portanto, nesta perspectiva filosófica, tarefa de uma comunidade educativa.

Desta comunidade educativa fazem parte também os líderes que respondem por atribuições específicas. Os pajés, por exemplo, são responsáveis por dinamizar os conhecimentos médicos, realizando investigações, incorporando inovações, e rearticulando continuamente o cotidiano ao mundo dos espíritos e toda a dimensão sagrada da existência. Sua ação é também exemplar, além de exercer um papel regulador, que conduz a comunidade e cada indivíduo aos comportamentos socialmente esperados. Outro exemplo é o tuxaua (o chefe político dos Kambeba) responsável em manter princípios de organização política, de organização interna e comunitária, fundadas na reciprocidade e na solidariedade. Os anciãos também desempenham um importante papel na educação das novas gerações, ativando continuamente os fios da memória coletiva, unindo passado, presente e futuro.

Quanto à educação escolar, muitas são as formas de participação da comunidade na escola, o que lhe imprime um sentido coletivo. Há uma presença sutil e constante de pessoas da comunidade no espaço da escola, muitas vezes como expectador, em uma das janelas, outras vezes interferindo diretamente nas aulas, complementando ou corrigindo o professor. Em certos momentos o professor convida lideranças e anciãos da aldeia para participar da discussão de algum tema específico, para contar histórias antigas e falar das tradições Kambeba. Os pais e avós dos alunos estão presentes no cotidiano da escola: passam pela sala de aula, entram, riem, conversam com o professor, fazem chacota de comportamentos dos alunos. Isso traz uma certa leveza ao trabalho pedagógico.

Fato interessante nesta filosofia educacional é a flexibilidade curricular. Quando algo interessante acontece na aldeia o professor e os alunos saem da sala de aula, participam do acontecimento, depois retornam, comentando o fato. Desta maneira a escola não está “fechada em si mesma”. Muitas vezes um acontecimento é motivador e permanece como tema de aula por vários dias.

A comunidade Kambeba possui formas próprias de avaliação e de controle sobre a escola, seu funcionamento, a freqüência dos alunos, o trabalho do professor, o papel dos pais no acompanhamento, entre outras. Atitudes do professor são criticadas ou elogiadas em momentos de conversas informais, modo pelo qual controlam a sua atuação. Comportamentos dos alunos também são socialmente avaliados. Comentam sobre seus modos na escola, responsabilizam a família em corrigir ações desaprovadas, repreendem publicamente os pais que deixam de mandar os filhos para a escola. Isso porque, para eles, a escola tem um importante papel a cumprir, portanto, não pode ser de “faz-de-conta”. Estas são algumas das formas de controle social sobre o trabalho pedagógico que reafirmam o valor da comunidade na filosofia deste povo indígena.

No dinamismo da cultura Kambeba, a escola vai sendo apropriada e ressignificada pela intervenção da coletividade. Desta forma, apesar das contradições, reproduções e seduções características desta instituição, ela pode assumir os princípios, as funções, os conteúdos relevantes para o povo em suas relações internas e externas.

A filosofia da escola Kambeba vincula-se aos projetos mais amplos de futuro do povo, contribuindo para a continuidade e atualização das tradições, para a compreensão da realidade, para o domínio dos conhecimentos que podem colaborar para a garantia dos direitos assegurados constitucionalmente aos povos indígenas.

Cinco lições filosóficas em uma história Yanomami

Conta-nos Suess (2003) que num dia ensolarado, por descuido de uma criança, a casa grande circular Yanomami que abriga todo o povo da aldeia, pegou fogo. Em poucos minutos, as chamas destruíram tudo. Ninguém gritou com a criança. Ninguém foi acusado de “falta de responsabilidade”. No meio do corre-corre do incêndio, uma Yanomami volta à casa em chamas para buscar algo. Quando reaparece envolta pela fumaça, traz um papagaio assustado, sem voz e orientação.

Este autor nos mostra que, ao adentrarmo-nos na vida dos povos indígenas descobrimos muitos gestos semelhantes de ternura pedagógica e convivência socioecológica que fazem parte de uma alteridade estranha, de uma filosofia e sabedoria profunda. Analisando a pequena história contada acima, Suess enumera cinco possíveis lições que podem ser aprendidas com os povos indígenas: 1) prioridade da vida; 2) pedagogia comunitária; 3) solidariedade pré-institucional; 4) festividade estruturante e 5) modernidade universal.

Penso que elas fazem parte daquilo que tentamos pontuar neste texto: da existência – no plural - de filosofias da educação com as quais vale a pena dialogar. Vejamos cada uma mais de perto.

1) Prioridade da vida: a escolha do papagaio como “objeto de valor” preferencial de uma casa em chamas nos surpreende. Os franciscanos da primeira hora da conquista elogiavam o “desprendimento” dos índios. Mas, esse “desprendimento” dos povos indígenas não era uma questão de “virtude” ou de “moral”, mas de seu “projeto de vida”.

2) Pedagogia comunitária: para a sociedade indígena, “tempo” não significa “dinheiro”. Os índios sabem “perder” tempo com o crescimento de seus filhos. Desde que nasce, o índio é bem amparado como indivíduo em sua comunidade e é educado para viver em comunidade. A criança que nasce é de todos. A educação indígena não algema o indivíduo ao mundo produtivo e competitivo do mercado. Prepara para a vida e para a alteridade que é a liberdade de ser respeitado em sua diferença.

3) Solidariedade pré-institucional: nas sociedades indígenas não existe um orfanato para menores, nem um asilo para os velhos, nem um hospital para os doentes, nem uma cadeia para criminosos, nem um bordel para apaziguar a libido sexual dos homens. O projeto de vida do mundo “tradicional” produz uma solidariedade imediata e pré-institucional. Atrás desta solidariedade está a experiência de que a vida é vida em rede, onde uns têm necessidade dos outros. A vida do outro é necessária. Todos são necessários. E desde cedo a criança aprende em sua aldeia que não só o vizinho, mas também os animais e as estrelas, as plantas e as árvores, os espíritos e as almas fazem parte desta rede da vida onde as fronteiras entre “sujeito” e “objeto” ainda não são marcadas pela dominação.

4) Festividade estruturante: no centro da vida do povo Guarani está a festa. Quando os missionários do século 16 proibiram ou reduziram as festas, os Guarani deixaram de plantar suas roças. A sociedade Guarani não vive para produzir, mas produz e trabalha para viver. A filosofia dos povos indígenas desenha um mundo festivo e ritual, centrado na pessoa e na comunidade, na gratuidade recíproca e na partilha. A festividade invade toda a vida. Os Guarani não só trabalham para poder festejar, mas também trabalham com animação festiva. A festa é uma das condições de igualdade social. Na festa, a “divina abundância” é socializada, no capricho estético (adornos preciosos, pinturas corporais, artesanato) e no excesso de comida e bebida.

5) Modernidade universal: o “outro mundo” indígena não é um mundo “pré-moderno”, se não consideramos a modernidade idêntica ao capitalismo e ao desenvolvimento tecnológico. Os cronistas do século 16 falam, constantemente, da abundância de alimentos que encontraram nas aldeias Guarani, sem máquinas agrícolas, sem adubos químicos e, no início, sem instrumentos de ferro. O “outro mundo” dos povos indígenas reivindica as verdadeiras conquistas civilizatórias da modernidade para todos, a saber, a autodeterminação e a participação, a igualdade de direitos e a pluralidade das culturas, o equilíbrio das questões éticas face ao indivíduo e a coletividade, a articulação entre a solidariedade da comunidade e a responsabilidade de cada pessoa com os contemporâneos e as futuras gerações. A modernidade não significa “incorporação do diferente no mesmo”, mas a convivência de muitos modos de ser e de pensar que se encontram como herança e promessa no continente latino-americano.

Pluralizando a filosofia, a escola e a vida: abrir-se a outros possíveis

A realização de estudos neste enfoque plural confirma a posição de Nóvoa (1995) para quem a análise das instituições escolares só tem sentido se for capaz de abrir o pensamento a outros possíveis. E só tem utilidade se tiver a inteligência de perceber os seus limites.(...) É preciso olhar para a escola como uma topia, isto é, como um tempo e um espaço onde podemos exprimir a nossa natureza pessoal e social. (p. 42)

Abrir o pensamento para outros possíveis, eis o grande legado das pesquisas em realidades tão distintas, como das crianças indígenas do Rio Uapés, Alto Rio Negro, da aldeia Nossa Senhora da Saúde, do povo Kambeba, no Médio Solimões e do povo Yanomami, de Roraima. Aprender com eles essa resistência histórica, essa vontade de ser livre, essa ousadia cotidiana de desfazer amarras. Aprender com estas tantas maneiras de pensar, não apenas para variar o conteúdo de nossos estudos, mas para permitir que outras formas de pensamentos filosóficos, de organização social, política, educacional desconstruam o fetiche de que o modelo hegemônico é único. Abrir os horizontes educativos para provocar o estranhamento sobre as nossas próprias maneiras de fazer educação.

Retomando algumas idéias iniciais, poderíamos nos perguntar o que essa imensa diversidade de pensamentos, de ações educativas, de filosofias nos tem a dizer? Em nosso entendimento, ela nos impõe duas tarefas:

A primeira é problematizarmos nossas certezas, nossas verdades, nossa forma hegemônica- mas não única, de conceber e construir a vida. Estes povos, que denominamos diferentes, não podem continuar a ser vistos como primitivos, incompletos. Em outras palavras, a diversidade não pode ser considerada como desvio, algo que precisa ser corrigido e nem como algo a ser tolerado. A diversidade também não é o espaço do exótico, porque pensar nestes termos significa outra vez nos filiarmos a um pensamento único, universal que nos diz aquilo que é o normal e, a partir dele, o que é exótico. A questão enfatizada aqui é a necessidade de colocar sob suspeita o pensamento redutor e pretensamente universal, que herdamos do iluminismo, e prestar atenção às diferentes práticas e distintas maneiras de interpretar, construídas na diversidade.

A segunda tarefa é pensarmos a diversidade dentro de um campo político, situada portanto em relações de poder e resistência. Em nossa sociedade disputam diferentes visões de mundo, mas estas relações são assimétricas - há os que possuem o poder de dizer, de nomear, de classificar, de instituir verdades, e aqueles que resistem a imposições e continuam a compor seus diferentes discursos, seus diferentes enredos, suas filosofias de vida.

E nesse sentido, escutar a voz indígena é indispensável para romper com a tradição que temos de enquadrar o mundo em nossas categorias e de dizer quem são os “outros” a partir do modo como acreditamos que somos nós.

Seu Valdomiro, um ancião Kambeba, viveu certo tempo na cidade e reclamou que lá ele não era entendido, mesmo sendo falante de português, porque como Kambeba ele olha diferente, ele sente diferente, ele pensa diferente. Escutar as vozes dos povos indígenas é um convite a problematizar constantemente os estreitos laços entre o saber que tecemos sobre eles e o tipo de poder que pretendemos exercer e legitimar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

CHATEAU, Jean. O jogo e a criança, São Paulo: Summus Editorial,1987.

CORRY, Stephen. Guardianes de la tierra sagrada. In: Revista Especial da Survival Internacional, Londres, 1994.

FERNANDES, Florestan. Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975.

GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1995.

HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-modernidade.. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

HOLLIDAY, Oscar Jara. Educação dialética da educação popular. São Paulo: CEPIS, 1985.

MELIÁ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979.

_______. Ação pedagógica e alteridade: por uma pedagogia da diferença. Anais da Conferência Ameríndia de Educação do Congresso de Professores Indígenas do Brasil. Cuiabá: Secretaria do Estado de Educação/Conselho de Educação Escolar Indígena do Mato Grosso, 1998.

NÓVOA, Antonio. Para uma análise das instituições escolares. In: NÓVOA, A. As organizações escolares em análise. 2ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995a.

RODRIGUES, Luis Dias. Como se conceitua a educação popular. In: SCOCUGLIA, Afonso Celso, MELO NETO, Francisco José de. (org.) Educação popular: outros caminhos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPb

 
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