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ANÁLISE
DO DISCURSO NA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA – UM CASO
DE QUÍMICA
Paula
Porto Brotero - Mestranda – Interunidades em Ensino de Ciências
(Química) da Universidade de São Paulo (USP)
1- Química,
ensino e leitura
“Química no Cotidiano” foi o tema que orientou o ensino
de Química no nível médio no final do século,
numa tentativa de tornar seu estudo mais significativo para os estudantes.
Observou-se muitas vezes a manutenção do enfoque conteudista,
apenas mais recheado de exemplos do dia-a-dia.
Atualmente, com os PCNs observamos uma maior preocupação
com aspectos interdisciplinares, relacionando os conteúdos específicos
de Química aos problemas sociais e ambientais ligados à
atividade científica e produtiva. Os temas transversais como saúde
e meio ambiente incorporam questões éticas na realização
de projetos de interesse da comunidade escolar. A leitura e a escrita,
antes delegadas aos professores de línguas, passam a ser exercitadas
em todas as disciplinas fundamentando a aprendizagem e a tomada de decisões
(Keiman e Moraes, 1999). O uso de textos veiculados pela mídia
se difunde, pois, apesar da superficialidade, respondem a um interesse
imediato da sociedade, fornecendo múltiplas referências e
possibilidades de leitura negadas aos livros didáticos (Keiman
e Moraes, 1999).
Pfeiffer aponta para os perigos da invasão da escola (de certo
modo reconhecendo sua falência) pela mídia impressa, que
passa então a ser referência de informações
objetivas e até do modo correto de escrever. Em relação
à divulgação científica a autora aponta para
os efeitos de sentido, nem sempre reconhecidos, dados pelas transposições
que ocorrem ao se passar do discurso científico para o jornalístico
(Pfeiffer, 2001).
Pensando nos textos disponíveis aos professores de química
escolhi para análise um texto de divulgação científica
sobre cloro, publicado em um Informativo de Conselho Regional de Química
(CRQ). A relevância deste assunto se deve aos problemas atuais relacionados
ao consumo e tratamento de água. A idoneidade do texto é
garantida pela instituição CRQ, uma vez que este é
o órgão que regula a atuação profissional
dos químicos envolvidos na produção e pesquisa. Este
número do informativo foi enviado também aos professores
que participaram de um congresso sobre ensino de química ocorrido
em julho de 2004. A análise do texto foi feita segundo a percepção
da linguagem e do sujeito interatuantes constituídos nas condições
sócio-históricas, seguindo orientação da linha
francesa de Análise do Discurso.
2- Análise
do Discurso
A linguagem já foi entendida como um código desenvolvido
visando a comunicação, e o texto uma unidade fechada em
seu sentido de informar, sendo produto da ação e intenção
de seu autor. Hoje entendemos a intervenção de processos
bem mais complexos, como o fator sócio-ideológico, atuando
na significação das interações linguísticas
( Brandão (1998), Orlandi (1988)).
As formações discursivas carregam valores, muitas vezes
pouco percebidos, das instituições, definindo uma retórica
profissional, e perpetuando estruturas de poder. Esta ligação
da utilização das formas simbólicas e relações
de dominação são estudadas por Althusser numa orientação
marxista determinista. Já Foucault se interessa pelos papéis
dos sujeitos e das restrições externas e internas nos processos
discursivos, definindo o que pode e deve ser dito (Althusser (1985), Foucault
(1971)).
As perspectivas apontadas por estes autores e os trabalhos de Pêcheux,
entre os anos 60 e 90, convergiram no que se chama de linha francesa de
Análise do Discurso. Nesta abordagem os múltiplos significados
das situações de discurso são definidos por interações
complexas de sujeitos e significados historicamente constituídos.
As influências do inconsciente apontadas pela psicanálise
também são reconhecidas pelas suas várias vertentes
(Possenti (1988)).
O conceito de polifonia proposto por Bakhtin é retrabalhado por
Ducrot, que propõe a análise de marcas linguísticas
dos diferentes enunciadores que se manifestam no discurso, anteriormente
considerados na unicidade do locutor. Ducrot também analisa a existência
dos tabus e procedimentos linguísticos responsáveis pelos
subentendidos, como a significação implícita nas
formações discursivas (Indursky (1989), Ducrot (1977)).
Maingueneau, seguindo idéias de Ducrot, fala em “leis do
discurso”, ressaltando a importância do contexto e interdiscurso,
e imagens recíprocas do enunciador e destinatário. O aspecto
interativo do discurso é tão importante na construção
do sentido que o autor prefere se referir ao destinatário como
coenunciador. O próprio suporte também é visto como
direcionando o sentido e uso do texto que veicula (Maingueneau (1998)).
Estas abordagens permitem analisar um texto tentando detectar as intenções
representadas pelas diversas posições do sujeito, e as construções
de sentido possibilitadas pela organização textual e o próprio
suporte (Orlandi (1988), Possenti (1988), Barzotto (2001)).
3- O suporte
O Informativo oficial do Conselho Regional de Química XII (Goiás,
Distrito Federal e Tocantins) em questão é uma publicação
com tiragem de 10 mil exemplares dirigida a químicos industriais,
engenheiros químicos e técnicos químicos, que para
exercerem a profissão devem estar filiados ao CRQ. Consta de 12
páginas em cores, com projeto gráfico e impressão
muito boas. Por eleger o XII Encontro Nacional de Ensino de Química
realizado em Goiânia como um dos assuntos abordados, foi enviado
a todos seus participantes.
Na capa podemos ver pelos assuntos abordados e disposição
das fotos uma preocupação em envolver o leitor de modo a
partilhar as opiniões veiculadas no informativo (vide anexos).
Os destaques são as entrevistas com pesquisadores estrangeiros,
um deles ganhador do prêmio Nobel. Esta estratégia tenta
agregar o valor pelo reconhecimento do trabalho científico do pesquisador
ao próprio Informativo, uma vez que lhe foi concedida a interlocução.
A exclusividade da entrevista também é ressaltada no editorial
da segunda página, garantindo a idoneidade do veículo.
O uso de hipérboles no resumo, tanto para se referir ao prêmio
Nobel (“premiação mais cobiçada do mundo”),
como importância da pesquisa (“ajudam a humanidade”),
tentam aumentar a importância do assunto e interessar o leitor,
o que também é feito na tentativa de o envolver pela possível
inclusão na citação final (“O cientista elogiou
os químicos brasileiros”). Na referência a outro artigo
também se encontram comparações exageradas: “Cientista
polonês desenvolve a fórmula da vida”. “…misturou
sais e conseguiu dar origem a uma membrana idêntica a uma membrana
celular” (grifos meus).
A coluna central da parte inferior da capa aparece a chamada se referindo
ao Encontro de Ensino de Química, com uma foto dos participantes
na frente do estande de inscrições.
Vemos que o artigo sobre Cloro aparece como destaque com a mesma importância,
se medida pelo tipo e tamanho de letra, dada ao Editorial, estando apenas
em menor destaque que o Premio Nobel.
O texto em si encontra-se na última folha, página 11, no
lado direito se considerarmos o informativo aberto, na parte interna da
contra-capa. Barzotto observa que a localização de matérias
nas páginas ímpares de periódicos contribui para
a construção de sentidos além do próprio texto,
uma vez que são mais visíveis (Barzotto, 2001). Existe aí
uma classificação como tema “saúde” (escrito
em verde e na vertical externa, fora dos limites de espaço do texto),
que não tinha sido dada na capa. Observa-se que, assim como as
entrevistas e outros artigos, não é um artigo assinado,
podendo ser creditado ao jornalista responsável, encontrado em
letras miudas após nomeação de toda diretoria, secretaria
e conselheiros, numa pequena faixa na segunda página, após
o editorial. Um possível entendimento para a ausência de
marcas de autoria é a identificação total das matérias
com o próprio conselho, num apagamento de subjetividades.
O único texto assinado do Informativo aparece na contra-capa, p.
12, e é um artigo técnico-científico, escrito da
maneira impessoal característica, com gráficos, referência
bibliográfica e ênfase nos títulos acadêmicos
de seus autores. A localização do artigo analisado imediatamente
anterior a este, pode significar uma tentativa de intermediar um conhecimento
excessivamente técnico, de interesse mais restrito (“Tratamento
alternativo de efluente industrial domissanitário com biopolímero”),
e ao mesmo tempo compartilhar sua credibilidade.
Na chamada do texto na capa já podemos notar uma intenção
de valorizar o assunto cloro mostrando através de números
inquestionáveis (80% dos produtos industrializados, 87% dos medicamentos)
sua importância na indústria, mas essencialmente tentando
associá-lo a coisas boas (saúde, medicamentos). Esta preocupação
existe uma vez que os químicos sabem, presume-se, que se trata
de uma substância gasosa asfixiante e venenosa quando pura; fato
nunca abordado nos textos. O único reconhecimento desta noção
de periculosidade vem do uso de também com conotação
adversativa “Substância utilizada em 80% dos produtos industrializados
também é sinônimo de saúde”, subentendendo-se
que, em princípio, cloro não é sinônimo de
saúde. Ducrot mostra que estes significados implícitos no
discurso são usados em função dos interesses do locutor.
A frase final usa um artifício de envolver o leitor explicitando
um tratamento mais pessoal pelo convite, e também aguçando
seu interesse. Isto é feito pelas associações positivas
ao cloro e ao conhecimento que o leitor passará a compartilhar
lendo o artigo: “Saiba mais sobre esse elemento químico,
usado na fabricação de 87% dos medicamentos.”
Os três lugares referidos na capa (o texto usa a nacionalidade como
referência dos pesquisadores que aparecem nas fotos, e situa apenas
a universidade do que não ganhou um Nobel): Alasca (genérico,
“extremo norte da América”, segundo reportagem), Estados
Unidos (“Universidade Johns Hopkins, Baltimore, Maryland”
descritos na reportagem) e Brasil (evidenciado pela bandeira facilmente
visível na foto do ENEQ, e local de origem da enunciação)
podem ser compreendidos na contraposição aqui-lá.
O aqui do locutor é o mesmo espaço do interlocutor, e o
lá, o estrangeiro. O espaço apresentado como desejável,
local ideal de trabalho e recompensa (o prêmio), onde se produz
o conhecimento (transmitido pelos professores) é sutilmente relacionado
aos Estados Unidos. A aproximação desejada é viabilizada
pela interferência do CRQ e seu informativo oficial, criando uma
sensação de participação de seus membros nestes
ambientes.
A palavra química aparece seis vezes e químico, três,
só na capa, sem contar as abreviações. Esta repetição
típica de discursos publicitários tenta garantir a compreensão
fácil, e acaba por reforçar um interesse comum. O objetivo
é criar uma identidade de classe entre os participantes da comunidade
que recebem o Informativo, de modo a todos compartilharem os mesmos interesses
e opiniões.
4- O Texto
O título do texto aparece no alto da folha, com letras grandes
e significativamente verdes: “Cloro:”, um pouco abaixo, em
preto com letras menores mas mais grossas: “garantia de vida”.
O artifício de usar as primeiras palavras do título em letras
maiores e coloridas (vermelha, azul, laranja e verde) também foi
utilizado nos outros artigos do Informativo. Já neste título
podemos fazer algumas relações com a cor da letra e o sentido
da frase: a substância cloro, podendo ser referida pela fórmula
Cl2 , é um gás esverdeado nas condições ambientes,
reconhecida pela alta reatividade e toxidez, sendo essencialmente contrária
à vida (já foi usada como arma química). A necessidade
de associá-la ao termo garantia de vida mostra uma intenção
de valorizar um de seus usos: sua ação bactericida quando
em diluição adequada em água. Esta ação
contra a vida de microorganismos garantiria a vida de outros animais supostamente
livres de doenças causadas por eles.
O subtítulo vem a seguir com letras maiúsculas: “SUBSTÂNCIA
DESCOBERTA HÁ 250 ANOS ESTÁ PRESENTE EM 80% DOS PRODUTOS
INDUSTRIALIZADOS E É IMPRESCINDÍVEL À SAÚDE”-
Aí vemos, já como um resumo do texto, a intenção
de difundir a noção de substância importante, não
só por ser usada largamente na indústria, mas por ser essencial
à saúde.
O texto em si vem a seguir, com apenas uma divisão introduzida
pelo sub-título INDUSTRIALIZAÇÃO. Na metade inferior
da página sobre fundo verde há um texto sob o título
“Melhor método de purificação”, onde
se esperaria tratar apenas do uso do cloro na purificação
da água. O recurso visual dá a entender que nesta parte
teríamos uma outra abordagem do assunto, mas observamos ser a continuação
do texto inicial.
A análise geral do texto mostra uma estrutura característica
de um texto de divulgação científica visando a informação
através da utilização do discurso relatado de autoridades.
Este discurso é intercalado com o discurso pedagógico típico
do discurso científico, geralmente operado por um locutor genérico,
impessoal, se investindo da autoridade do conhecimento científico,
inquestionável. Em apenas uma ocasião no início do
segundo parágrafo o locutor se manifesta como pessoa ao utilizar
a forma verbal referente à primeira pessoa, mas mascarado pelo
plural (“chegamos aonde queríamos”). É uma formação
que permite a aproximação com o leitor ao deixar claro seu
movimento de persuasão. Podemos entender este nós como uma
exclusão do você (referindo-se a eu + ele), englobando enunciadores
potencialmente distintos do leitor, ou como incluindo eu e você,
aproximando-se do destinatário e compartilhando com ele as afirmações
do texto.
Logo após, o locutor se esconde sob a forma de um locutor impessoal,
criando a ilusão de que os fatos são auto-narrados e objetivos.
No entanto, a presença do locutor enquanto pessoa aparece através
das avaliações usadas com o objetivo de enfatizar seu ponto
de vista: apenas 70%, “recente”, já representa 60%,
assustadora média. Podemos distinguir também outras vozes
representadas no texto como enunciadores: estatísticas (genérica),
revista Life, Organização Mundial de Saúde, diretor
do Conselho Mundial de Cloro; normalmente instituições que
conferem seriedade às enunciações associadas. Note-se
que possíveis vozes discordantes como por exemplo trabalhadores
prejudicados ou ambientalistas nem são aventadas.
A referência ao destinatátio (tu - você) também
é diluída no texto, aparecendo apenas no primeiro parágrafo:
“pode ter certeza” e implicitamente nas perguntas retóricas
“alguém conseguiria viver…?”, “quem nunca
ouviu falar…?”. Estas são as únicas formas de
aproximação com o leitor, que não poderia ter outra
opinião, restando apenas aceitar as proposições do
texto. O tratamento por você, que poderia significar uma diferenciação,
na realidade se aplica a qualquer destinatário que tenha uma escolarização
média e possa fazer parte do universo dos que aceitam a idéia
de que o cloro é importante e precisa ser consumido.
Esta forma de apagamento de interlocutores tenta produzir um texto neutro,
que não é produto de opiniões mas de fatos inquestionáveis,
baseados essencialmente em cifras (250 anos, 80% dos produtos, 70% da
população, 58% dos municípios, 12 unidades de fabricação,
1,2 milhão de toneladas, 60% do mercado, 25 mil, 20 norte-americanos,
média de 2083, década de 1960, 20 norte-americanos, média
de 1,6 morte, 25 mil crianças, 87% dos remédios).
Este tipo de discurso apresentando-se como inquestionável tem como
objetivo a anulação de qualquer subjetividade, buscando
uma homogeneização de opiniões (Brandão, 1998).
5- Os sentidos
do texto
O texto usa algumas sequências lógicas estranhas e confunde
alguns conceitos de química. Elemento, substância, átomo
e molécula são usados ao menos uma vez inadequadamente sob
o ponto de vista do conhecimento científico. O objetivo é
mostrar a importância do cloro, que não é reconhecida
mesmo garantindo a potabilidade da água distribuída, através
da sua presença como constituinte de diversas substâncias.
Transcrevemos o primeiro parágrafo:
Algumas substâncias estão intimamente ligadas ao dia-a-dia
do homem moderno. Prova de que a química transcende as fórmulas,
equações e enunciados das faculdades. Alguém conseguiria
viver sem duas moléculas de hidrogênio conjugadas a uma de
oxigênio, por exemplo? E aquele arroz com feijão? Pode ter
certeza de que não ficaria tão bom sem uma molécula
de sódio e outra de cloro.
A presença de termos como dia-a-dia e arroz com feijão torna
o assunto química mais próximo do homem comum. O uso do
qualificativo moderno e alguns conceitos químicos facilmente reconhecíveis
atribui um valor positivo ao interlocutor, que poderia se reconhecer ao
entender as referências a água e sal. No entanto, além
da descrição química inadequada destas duas substâncias
vemos a discrepância do exemplo banal associado a vida moderna,
uma vez que ambas podem ser entendidas como pré-requisito para
a própria vida.
Os termos prova e faculdade remetem a situações de ensino,
e a frase em que se inserem lembram os discursos do tipo “química
no cotidiano”. A noção de química restrita
a fórmulas está no senso comum, mas o locutor parece excluir
leigos como destinatários ao usar o termo “enunciados das
faculdades”. A quem então se destina o texto? Qualquer pessoa
que estudou química na faculdade esperaria um exemplo mais pertinente,
ou com menos concepções alternativas (“duas moléculas
de hidrogênio conjugadas a uma de oxigênio”, “molécula
de sódio e outra de cloro ”). Podemos perceber uma tentativa
de desqualificar o conhecimento acadêmico: o discurso sobre a ciência
veiculada pela faculdade é associado a um imaginário negativo.
A referência à química de faculdade se faz como algo
distante ou até contrário à verdadeira química
que seria representada pelo sistema produtivo, que o locutor enquanto
pessoa parece defender.
O segundo parágrafo começa com uma exclamação:
“Pronto! Chegamos ao ponto que desejávamos.” Este tipo
de construção parece mostrar um súbito reconhecimento
de uma idéia, como se aflorasse no instante e fosse inquestionável.
Mostra que o autor, com sua responsabilidade disfarçada pelo plural,
considera que o parágrafo anterior e suas conclusões confusas
da importância da química do sal e água na vida moderna
são o ponto de partida para a compreensão da importância
do cloro. Podemos entender esta idéia sabendo que as matérias
primas para a produção do cloro não passam de sal
e água, fato também não explicado no texto.
As informações seguintes mostram quem e quando descobriu
o elemento cloro, veiculando uma concepção mecanicista de
história da ciência, e tentam mostrar que se trata de um
elemento essencial para a vida cotidiana: “está presente
em pelo menos 80% de todos os produtos industrializados, como medicamentos,
equipamentos cirúrgicos, eletrônicos, água sanitária,
automóveis, etc. Também pode ser encontrado na siderurgia,
agricultura, construção civil, informática, entre
outras áreas.” Nesta enumeração dos produtos
industrializados se parte de conceitos gerais como equipamentos cirúrgicos
e eletrônicos, restringe explicitando água sanitária,
em vez de produtos de limpeza, e completa com automóveis, restringindo
a indústria automobilística. Logo a seguir expande a aplicação
em áreas como agricultura e construção civil e enumera
informática que já teria sido referida pelos equipamentos
eletrônicos. O sentido desta repetição é enfatizar
a importância da substância pelas suas aplicações,
mas fica sem sentido por dois motivos: ou por fazer as áreas parecerem
substância, ou, sendo uma forma indireta de mostrar a presença
do cloro como componente dos equipamentos que as áreas utilizam,
a lista seria infindável. Ao omitir sua presença no que
no fundo é sua única fonte: o sal da água do mar,
e não explicando exatamente como ele participa da composição
química de diversas substâncias artificiais, fica-se com
a impressão que é um componente essencial em todas elas.
O texto contribui bastante para a confusão entre conceitos químicos
como elementos e substâncias simples e compostas.
O texto continua dizendo que apesar de tanta relevância, seu consumo
é muito baixo no Brasil, indicando que o texto está sendo
escrito justamente para mudar este quadro, convencendo mais pessoas (de
preferência ligadas a indústrias) que é essencial
ampliar seu consumo. Como justificativa para este aumento de consumo lembra
que o cloro é usado em países desérticos para purificar
água. Argumentação estranha para fazer uma comparação
com o Brasil, uma vez que o maior problema lá, ao contrário
daqui, seria a escassez de água. A necessidade de purificação
da água deve diferir essencialmente de países mais populosos
para desérticos, visto que a ação fundamental do
cloro é na eliminação de microorganismos patogênicos,
presumidamente com incidência ligada ao adensamento populacional.
Continuando a argumentação o texto apresenta estatísticas
mostrando que no Brasil “apenas 70% da população usufruem
do acesso à rede de esgoto e 58% dos municípios não
têm água tratada”. Estes dados parecem ser fáceis
de manipular, uma vez que compara inicialmente número de pessoas
e depois número de municípios. Considerar que 70% da população
com acesso a rede de esgoto é pouco não parece razoável,
sendo que o principal problema não deve ser a coleta em si, mas
seu tratamento, que aí sim estaria ligado ao uso do cloro, e deve
apresentar um número significativamente pequeno.
Aparentemente iniciando nova abordagem aparece o subtítulo “Industrialização”.
O que se segue é um histórico da produção
de cloro no Brasil, usando o único termo isolado do texto que aparece
entre aspas (“recente”), e dizendo que “apenas em 1993
o elemento químico passou a ser processado em escala comercial”,
se referindo à substância química. O uso destas aspas
esconde uma interpretação deixada ao leitor, podendo alterar
o significado da informação, que poderia não ser
considerada recente, ou também indicando não ser um dado
confiável, já que a indústria de cloro-álcalis
existia há mais tempo. Seguem-se os valores exatos de unidades
produtoras atualmente e a quantidade produzida por ano, salientando que
“a produção brasileira já representa 60% do
mercado latino-americano”. Este dado parece mostrar que se produz
bastante cloro, mas não deve ter consumo interno significativo,
confirmando a impressão de se tratar de artigo encomendado pelos
produtores visando aumentar o consumo.
O próximo parágrafo se inicia com uma referência a
um “recente” artigo da “renomada revista americana Life”
mostrando a importância para a saúde pública mundial
do tratamento da água com cloro. O conhecimento deste assunto já
é estabelecido na comunidade acadêmica há décadas
e transmitido há pelo menos 50 anos nos cursos de ensino médio
brasileiros, não sendo necessário referendar com um artigo
popular, justamente valorizado por ser escrito nos Estados Unidos. Em
seguida é discutida a ação do cloro na prevenção
da febre tifóide no século passado, mostrando através
de estatísticas, nos EUA do início do século e da
década de 60, que a mortandade diminuiu significativamente. Dados
tão antigos e do exterior parecem mostrar desconhecimento do assunto
por parte do autor. A exposição deixa claro não se
tratar de artigo recente, como afirmado, e põe também em
dúvida a pertinência do adjetivo aposto (renomada revista),
que já foi semanal, mensal e não está mais sendo
publicada .
O texto é finalizado por um parágrafo concluindo que a saúde
pública mundial sofre devido ao não-uso do cloro, pois dados
da OMS mostram que “25 mil crianças morrem diariamente em
países onde a água não é tratada com cloro”.
A análise desta frase de efeito não deixa claro se as mortes
se devem a doenças decorrentes da falta de tratamento da água,
ou a outros problemas como guerras e fome.
No texto escrito sobre fundo verde e localizado logo abaixo deste texto
principal tem-se o título Melhor método de purificação.
Estes indícios de aprofundamento do assunto cloro como agente purificador
não se verifica totalmente. Após iniciar o texto com “De
acordo com Howlett Jr., diretor-ecutivo do Conselho Mundial de Cloro”
seguem-se afirmações esperadas e repetidas de que o cloro
é o melhor tratamento desinfetante para a água.
As confusões continuam quando aborda a questão do uso do
cloro na área da medicina: na assepsia hospitalar e na fabricação
de remédios. Após igualar conceitos de substâncias
cloradas reativas usadas em desinfecção e produtos estáveis
contendo cloro, é afirmado “No entanto, mesmo saudável,
o ser humano se cruza com o cloro quase que diariamente”(grifos
meus). É uma frase que merece atenção, afinal a tese
defendida até então era cloro = vida, pois a água
só seria pura com ele, e o sal do dia-a-dia conteria cloro. Parece
que estes argumentos são esquecidos ao se usar as expressões
grifadas para restringir a onipresença do cloro. Na continuação
podemos encontrar o significado destas restrições, quando
o texto passa a se referir veladamente aos agrotóxicos: “produtos
à base de cloro, utilizados nas lavouras asseguram o fornecimento
de culturas com ótima qualidade”. Logo em seguida fala da
água sanitária, esta sim responsável pela desinfecção
das águas, e simplificadamente associando a fórmulas químicas
como NaCl e H2O (o processo é bem mais complexo, e aqui caberia
todo crédito ao próprio cloro, Cl2) que “garantem
um processo peculiar de limpeza e desintoxicação de alimentos.”
Importante ressaltar o uso de desintoxicação ao invés
do correto desinfecção, única consequência
comprovada do uso da água sanitária, ao matar organismos
patogênicos. Sobre os presença de agrotóxicos, pouco,
ou nada, o cloro (usado no sentido usual de água clorada, ou sanitária)
pode fazer.
Sem dúvida é conveniente para o fabricante de cloro (indiretamente
de agrotóxico e água sanitária) passar a idéia
de que uma possível presença de agrotóxico em alimentos
poderia ser eliminada com o uso de água sanitária. Poderíamos
pensar que no fundo é esta a idéia que o texto sobre fundo
verde quer passar: o título Melhor método de purificação,
inicialmente entendido como a ação do cloro na água
distribuída ao consumidor, poderia se referir a uma alegada ação
da água sanitária em produtos provenientes da lavoura contaminados
por agrotóxicos (evidente falácia). Obviamente este significado
implícito não deve ser explicitado, pois poderia ser refutado,
como observa Ducrot:
“Uma segunda origem possível para a necessidade do implícito
prende-se ao fato de que toda afirmação explicitada torna-se
por isso mesmo, um tema de discussões possíveis. Tudo que
é dito pode ser contradito. De tal forma que não se poderia
anunciar uma opinião ou um desejo sem expô-los ao mesmo tempo
às eventuais objeções dos interlocutores”(Ducrot,1977)
Finalizando as inúmeras utilidades do cloro, é lembrada
sua presença na construção civil através dos
tubos de PVC. Mais uma vez confundindo a substância cloro com produtos
que apresentam cloro na sua composição, o texto acaba afirmando
“Na construção civil, o cloro diminui a relação
custo/benefício e contribui com uma maior durabilidade do material
empregado, com seu design moderno e com a segurança”. Podemos
pensar que é o cloro que permite design moderno e segurança?
6- Conclusão
A análise que fizemos dos elementos gerais do texto mostrou que
vários fatores estão sendo usados para a construção
de sentidos. Notamos que a disposiçao das imagens e textos na capa,
assim como seu conteúdo, tentam envolver o leitor do Informativo
na construção de uma identidade de valores mediada pela
profissão. Usando um discurso que o oscila entre o informativo
e o de propaganda vai se delimitando uma visão de mundo que não
deixa espaço para a refutação. Os interlocutores
que seriam basicamente os químicos ligados à atividade industrial,
são ampliados para incluir as pessoas ligadas ao ensino de química.
Neste universo bem ordenado pela instituição CRQ há
basicamente espaço para o conhecimento (gerado pelos pesquisadores),
e sua difusão (feita pelos educadores). O lugar da indústria
e seus modos de produção, que são realmente o elo
de seus membros, é diminuído, talvez por ser menos charmoso.
É representada na capa apenas pela chamada do artigo analisado.
Neste texto específico encontramos algumas características
do discurso da propaganda:
- tentativa de um diálogo pelo reconhecimento do interlocutor pelo
tempo verbal (“Pode ter certeza”) e perguntas indiretas (“Alguém
conseguiria viver sem?”, “Quem nunca ouviu falar?”).
Ao mesmo tempo estas últimas construções anulam o
sujeito, ao apelar para um saber consensual inquestionável.
- vocabulário acessível (“arroz com feijão”,
proposta de desmistificar a química das faculdades)
- tentativa de inclusão do outro em seu discurso, usando o “nós”
(“Chegamos ao ponto que desejávamos”)
- tentativa de persuasão pela utilização de diversos
enunciadores idôneos (estatísticas, revista americana, Organização
Mundial de Saúde (OMS), Conselho Mundial de Cloro (CCM))
e também do discurso técnico-científico:
- tempo presente
- enunciador genérico associado à verdade
- utilização de referenciais numéricos inquestionáveis
(250 anos, 80% dos produtos, 70% da população, 58% dos municípios,
12 unidades de fabricação, 1,2 milhão de toneladas,
60% do mercado, 25 mil, 20 norte-americanos, média de 2083, 20
norte-americanos, média de 1,6 morte, 25 mil crianças, 87%
dos remédios.
- uso de fórmulas e termos técnicos de química.
O movimento geral das vozes no texto mostra a estratégia do locutor
de inicialmente dar voz ao interlocutor, criando uma situação
de diálogo. Observamos em seguida uma contínua movimentação
no sentido de anular sua voz e se apossar do saber científico de
modo a impedir qualquer refutação. A indústria de
um modo geral, está presente na voz do enunciador associado à
produção do cloro (diretor da CCM) e se manifesta mostrando
sua visão de mundo (água com cloro impede doenças).
Esta posição é identificada com o locutor desde o
início do texto, e qualquer referência a possíveis
vozes discordantes, como trabalhadores da indústria de cloro ou
ambientalistas, é silenciada.
Estas considerações ajudam a confirmar a percepção
geral de ser um artigo encomendado, escrito às pressas por um jornalista
que desconhece o assunto, supondo que apenas o conhecimento das fórmulas
químicas da água e do sal seria suficiente para se dirigir
a interlocutores químicos. Sabendo que o cloro pode ser considerado
um subproduto indesejável na produção da soda cáustica,
devido à dificuldade de armazenamento e periculosidade, podemos
compreender a necessidade de um artigo enaltecendo o produto.
As idéias e valores transmitidas no texto ressaltam uma posição
ideológica, ligada a uma formação social num determinado
contexto histórico. A esta posição interessa relacionar
aspectos positivos ao modo de produção industrial capitalista
predatório representado pelos Estados Unidos.
Provavelmente o leitor médio, mesmo sendo químico, pouco
se aperceba dos usos alternativos dos conceitos científicos, e
da falibilidade das argumentações usadas, sendo estes bastante
comuns em artigos de divulgação científica. Uma leitura
rápida deixa a impressão de que se aprendeu alguma coisa:
a indústria de um modo geral usa bastante cloro nos seus processos
de produção, e não há saúde sem água
tratada com cloro (note-se a ausência de qualquer referência
a estudos que sugerem aumento da incidência de câncer em usuários
de água com este tratamento). A interligação destes
dois assuntos fica por conta da imaginação do leitor.
Como comentado anteriormente, ao interlocutor, que só se reconhece
enquanto usuário da água e consumidor de produtos industrializados,
só cabe aceitar os argumentos veiculados e passar a fazer parte
dos que acreditam que cloro é bom.
No entanto é este interlocutor silenciado que vai poder se manifestar
pela negação do discurso. Esta ação é
facilitada pelos fatores que abalam a credibilidade do texto, uma vez
que o locutor usa argumentos infundados (a revista de referência
não tinha os atributos imputados), e se responsabilizou por conceitos
não aceitos na comunidade científica. Cria-se um discurso
que não está baseado no domínio do conjunto de saberes
aceitos, sendo então passível de desqualificação.
O professor de ensino médio poderia imaginar esta possibilidade?
Além do desconhecimento de muitos conceitos abordados nesta análise,
dificilmente se encontra na posição de contestar um discurso
avalizado pela instituição que justamente regula o próprio
exercício profissional do químico.
Agradeço
ao professor Valdir Barzotto, pelo incentivo e valiosas orientações
na disciplina Análise do Discurso e Ensino, na FE/USP, onde este
trabalho se iniciou.
7- Bibliografia
ALTHUSSER,
L. (1985) Aparelhos Ideológicos de Estado, São Paulo, Edições
Graal, 9ª edição, 2003
BARZOTTO, V.H. (2001) Olhares oblíquos sobre sentidos não
muito dissimulados, em GREGOLIN, M.R. e BARONAS, R. (orgs.), Análise
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polifonia. A propaganda da Petrobrás, São Paulo, Editora
da Unesp, Imprensa Oficial do Estado.
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dizer e não dizer, São Paulo, Cultrix.
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edição, 2002.
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redes nos projetos da escola, Campinas, Mercado de Letras, 2003.
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São Paulo, Cortez Editora, 3ª edição, 2004.
ORLANDI, E.P. (1988) Discurso e leitura, São Paulo, Cortez, Editora
da Unicamp.
PFEIFFER, C. (2001) Escola e divulgação científica,
em GUIMARÃES, E. (org.) Produção e circulação
do conhecimento, Campinas, Pontes.
POSSENTI, S. (1988) Discurso, estilo e subjetividade, São Paulo,
Martins Fontes, 2ª edição, 2001
8- Anexos


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