Marco Aurélio Canadas - Mestrando em Linguagem
e Educação pela Faculdade de Educação da USP
– FEUSP; Professor titular de Língua Portuguesa da rede municipal
de ensino da cidade de São Paulo.
O texto propõe uma reflexão a respeito dos
modelos, das necessidades e dos modismos que podem envolver os cursos,
em vigência, de formação continuada de professores
de Língua Portuguesa, oferecidos por órgãos públicos,
tais como secretarias municipais ou estaduais de educação,
em associação ou não com instituições
de ensino superior. Esta reflexão tem como pano de fundo a nossa
experiência em cursos de formação continuada, dos
quais participamos há dois anos e meio.
Parece que já virou uma espécie de consenso
entre os órgãos gestores da Educação pública
que o professor de Língua Portuguesa, ao sair da universidade,
já o faz de modo desatualizado. Aliás, isso já é
algo que vem sendo dito há um bom tempo. De fato, para a sobrevivência
profissional no mundo contemporâneo, exige-se de todos uma preocupação
com a necessidade de se manter atualizado, e no caso do profissional da
Educação não seria diferente. Para além dessa
questão, no caso do professor, ocorre que ele, também, é
visto como alguém mal formado. Nesse caso, os cursos de formação
não se configuram apenas de modo a proporcionar uma atualização,
mas para suprir deficiências, muitas vezes, geradas pelas deficiências
dos próprios cursos de Letras. Em virtude dessas necessidades,
é que estes órgãos procuram, cada vez mais, manter
cursos de capacitação e formação continuada
para seus professores. Além, claro, de atenderem a uma exigência
legal.
Geralmente, os organizadores desses cursos baseiam-se em dados estatísticos
que revelam sempre que a média dos alunos tem tido uma performance
cada vez pior em seus estudos, em todas as matérias curriculares,
e, principalmente, em Língua Portuguesa. Isso porque alguns deles
terminam o ensino fundamental sem que saibam escrever textos simples ou,
mais preocupante, ainda, sem que consigam ler um pequeno trecho escrito.
O que é muito pouco para quem passou oito anos dentro de uma escola.
A questão que chama a atenção, neste caso, é
que o número de alunos nessa situação tem aumentado
ano a ano.
Como exemplo: ao consultar a página do Inep na Internet, pude visualizar
os dados oficiais relativos ao Sistema de Avaliação do Ensino
Básico – Saeb 2003, em que há a apresentação
dos resultados obtidos por alunos do ensino fundamental II no exame de
Língua Portuguesa. Em um de seus gráficos, já especificamente
em relação à situação no estado de
São Paulo, há uma comparação entre todos os
exames do Saeb realizados desde 1995. Observando-o com cuidado, percebe-se
que desde a sua primeira edição, a curva de rendimento dos
alunos paulistas neste exame tem declinado. Com uma pequena oscilação
positiva no ano de 2001 e uma nova queda em 2003. Porém, de qualquer
forma, ainda não se conseguiu atingir o mesmo patamar do primeiro
exame.
Esses e outros dados (ENEM ou Saresp) relativos ao desempenho de alunos
da rede pública em exames de Língua Portuguesa repercutem
na mídia, de modo que acabam gerando algumas polêmicas. Atitudes
para minimizar ou superar o baixo rendimento dos alunos passam a ser cobradas
dos governos, que por sua vez, procuram encontrar uma explicação
plausível. E uma das explicações é o despreparo
dos professores que, por sua vez, implica na necessidade de se investir
em cursos de atualização.
Ao divulgar os índices de aproveitamento dos alunos em exames externos,
o governo, que decide sobre as políticas públicas educacionais,
mostra que as suas medidas não têm alcançado os resultados
esperados. O que percebo é que, visto pela mídia e grande
público, isso faz com que o caminho que pareça mais adequado
a ser tomado seja o de classificar os professores como agentes ineficazes,
portanto, necessitados de ajuda para melhorarem seu desempenho no trabalho
de dar condições para os alunos terem um maior domínio
da Língua, e, conseqüentemente, um aproveitamento melhor nos
testes.
Grosso modo, parece-me que os fatores que levam os órgãos
gestores da educação a compreender a necessidade dos cursos
de formação continuada estão ligados aos dados estatísticos
relativos ao desenvolvimento dos alunos nos exames externos. Geralmente,
questões de base, relacionadas com a estrutura escolar e com a
sociedade contemporânea, acabam sendo sempre apresentadas, pelos
professores, como os maiores obstáculos para o desenvolvimento
de bons trabalhos. A sociedade, em geral, também as reconhece como
elementos que causam o mau rendimento dos alunos. Entretanto, essas questões
acabam sendo vistas como desculpas para a imobilidade, o não fazer,
não podendo ser tomadas como as únicas justificativas para
o que é revelado pela estatística. Concordamos com ambas
posições, mas acreditamos que é necessário
dar um passo além nessa questão, não colocando apenas
nas costas do professor a responsabilidade pelo “fracasso”
dos alunos, mas chamando-o para sua responsabilidade, implicando-o na
situação. Mas antes de discutir isso, discorrerei um pouco
sobre os cursos de formação que já presenciei.
Minha experiência como professor na rede municipal da cidade de
São Paulo e, posteriormente como professor em cursos capacitação,
ajuda-me a conceber alguns modelos de cursos vigentes que dão diferentes
tons à formação continuada. Destaco, para efeito
de provocação, alguns deles: (a) cursos que procuram fazer
uma espécie de complementação do que, como os seus
idealizadores imaginam, ter faltado ao professor na sua formação
primeira, ainda na faculdade; (b) cursos que tentam fornecer ao professor
um repertório de atividades, do tipo pronto e acabado, para que
ele possa aplicar diretamente aos alunos; (c) cursos que procuram passar
para o professor um conjunto de conhecimentos para ajudá-lo em
sua interação com o aluno, (d) cursos que se preocupam em
construir, junto com o professor, um aparato prático, teoricamente
fundamentado, que o sustente em suas tomadas de decisões sobre
o que e como ensinar aos alunos.
De fato, quando se promove um curso de capacitação, precisa-se
levar em conta o nível de formação dos professores,
que está relacionado, por sua vez, com a qualidade dos cursos promovidos
pelas faculdades de Letras. Pode haver lacunas em vários aspectos:
em que se confunde o conceito de língua materna com o de língua
padrão; uma visão ainda centrada na tradição
gramatical; pouco repertório teórico, principalmente em
relação às contribuições que a lingüística
tem dado ao ensino de língua materna etc. Sem contar a falta de
definição em relação ao papel da disciplina
prática (ou metodologia) de ensino Língua Portuguesa nos
cursos de graduação. Não é muito difícil
ouvir comentários de professores do tipo: “O aluno não
sabe escrever porque não sabe gramática”. Em virtude
desses fatores é que surge a necessidade de cursos que ampliem
os conhecimentos dos professores a respeito de questões teóricas
de base. Metaforicamente dizendo, a teoria, neste caso, é o alimento
para o espírito. Sem ela, não se consegue respostas para
questões como o que e para que ensinamos Língua Portuguesa.
Na linha dos cursos que visam complementar a formação acadêmica
do professor, há os que se preocupam com a transposição
didática dos documentos oficiais produzidos pelo governo. Destacadamente,
os Parâmetros Curriculares Nacionais.
Segundo Rojo (2002) há quatro níveis de concretização
de tal transposição:
? Nível 1: que envolve a formação do professor, a
análise de materiais e livros didáticos e o sistema de avaliação
nacional
? Nível 2: O relacionamento com os Estados e Municípios
? Nível 3: Integração ao projeto educativo da escola
? Nível 4: Realização do currículo em sala
de aula
No meu entender, os cursos de formação de professores que
visam a pura concretização da transposição
didática dos documentos orientadores oficiais podem correr o risco
de direcionarem essa formação apenas para uma vertente das
possibilidades de trabalho do professor, criando uma padronização
que pode ser perigosa.
Pelo que tenho observado, alguns cursos que apresentam características
como as descritas, acabam tendo um tom muito teórico, deixando
de lado questões metodológicas, que devem ser tratadas no
âmbito da prática de ensino. Em contra partida, um curso
mais voltado para a metodologia se preocuparia em dar ao professor condições
dele “inventar” sua aula, promovendo atividades instigantes
para dar condições ao aluno de construir uma relação
positiva com a linguagem, contribuindo para a melhoria de sua performance
na leitura e na escrita.
Há outro tipo de curso que visa mesmo dar ao professor atividades
prontas para que ele as aplique em sala de aula. Neles são mostrados
aos professores jogos e atividades para trabalhar com os alunos tópicos
relacionados à leitura, à escrita e à reflexão
lingüística. A princípio, são atividades que
na teoria são denominadas de epilingüísticas, pois
operam sobre a linguagem, sem a ela se referirem, ou seja, sem ação
metalingüística ou corretiva. Que tais atividades contribuem
sim com a aula do professor não há dúvidas, entretanto,
corre-se o risco apenas de se criar uma espécie de livro didático
de jogos e práticas de ensino de Língua Portuguesa para
professores (que já até pode existir no mercado), mas que
não é pensado levando-se em consideração um
aluno real, mas um ideal de aluno. Ou seja, pode ser aplicado com sucesso
numa turma e ser um desastre total em outra. Na minha opinião,
o que garante o sucesso de uma atividade não é a sua existência
em si, mas a necessidade daqueles para quem ela se destina.
Nesse sentido, um curso de formação que apresente ao professor
jogos e atividades sem que o leve a conceber seus próprios, teoricamente
fundamentados, irá torná-lo um aplicador de atividades e
dependente de outro que as construa. Caso não contribua para que
se mude a concepção de ensino de Língua Portuguesa,
corre-se o risco de após a atividade (usada como forma de distrair
o aluno) volte-se à “aula séria”.
Outros cursos procuram mostrar ao professor que para ele ter sucesso em
seu trabalho com os alunos, é necessário que os reconheça
em suas condições sociais, vendo-os como subprodutos da
sociedade e verdadeiras vítimas do sistema que os obrigam a ter
uma vida de poucas oportunidades. Ou seja, serem pobres, morarem em condições
inapropriadas, desnutridos, abandonados, violentados etc. Acredito que
poucos professores, em sã consciência, deixem de levar em
consideração essas questões em seu trabalho, ou,
até mesmo, de se indignarem com tal situação. O problema
que vejo nisso é o risco que se corre de negar o direito dessas
pessoas ao acesso digno às riquezas das formas de sua língua
materna. Porque deste tipo de pensamento é que surge a idéia
de trabalhar a língua do aluno que lhe é familiar (a variedade
lingüística de seu grupo social), o que é correto num
primeiro momento. Porém, no meu entender, uma coisa é respeitar
sua identidade lingüística, outra é deixá-lo
na mesma situação. A visão simplista de pobre coitado
pode não levar o aluno ao conhecimento de sua língua materna
nem ao domínio da língua padrão. Por isso, esses
cursos, quando mal entendidos, podem gerar distorções na
prática de ensino do professor.
Por fim, cito os cursos que procuram chamar a atenção do
professor para a necessidade dele ser o construtor e autor de sua aula.
Que o convidam para uma reflexão apurada a respeito dos fatos que
envolvem o ensino de língua materna nos dias atuais, levando em
consideração um aluno real, de carne e osso, presente na
sala de aula. Nesses cursos, procura-se mostrar como se pode construir
uma prática diária de ensino de língua materna pelo
cruzamento de conceitos teóricos com a realidade lingüística
dos alunos. Tenta-se mostrar que para um ensino de qualidade, necessita-se
saber o que ensinar para o aluno, para que a aula não fique nem
aquém, nem além das possibilidades dele. Identificar o que
o aluno já sabe e domina é o primeiro passo para se pensar
como ensinar o que ele ainda não sabe, e aproximá-lo dos
usos da Língua Padrão, que no final das contas, é
o objetivo de todo o trabalho com a Língua.
Diante do que tenho observado nos cursos de formação, considero
este último modelo mais relevante e acertado com a contemporaneidade.
Isso porque, vejo a possibilidade de se aliar uma sólida formação
teórica do professor a uma prática singular de ensino. O
caminho, no meu entender, é exatamente este, o de identificar quem
é o aluno real que está na nossa frente, diagnosticando
a situação lingüística em que está inserido
para, a partir desse ponto, agir no sentido de aproximá-lo dos
usos da Língua Padrão, nas modalidades oral e escrita .
Não há dúvidas de que existe uma necessidade de se
proceder a uma atualização profissional constante. Mas não
se pode esquecer que tal procedimento visa mais a um mercado privado que
a uma instituição responsável por formar pessoas,
e não a produzir parafusos. Nesse sentido, os organizadores dos
cursos de formação continuada precisam ter em mente que
não estão lidando com profissionais que apertam botões,
ou que estão aprendendo a utilizar uma nova máquina. Mas,
por outro lado, que são professores responsáveis pela educação
escolar de crianças e de jovens. Que têm uma formação
acadêmica e que, para o bem ou para o mal, também têm
uma vivência em sala de aula. Que podem ser precárias, entretanto,
não podem ser totalmente desconsideradas. Em suma: são profissionais
que lidam com pessoas.
Além disso, deve-se ter em mente que a qualidade do ensino não
se dá pela quantidade de cursos que os professores fazem, mas por
sua qualidade. Parece-me que virou uma certa moda, a existência
de cursos de capacitação, dado por sua quantidade. Na cidade
de São Paulo, por exemplo, no ano de 2004, a prefeitura promoveu
tantos cursos, que houve coordenadorias de ensino com mais de oito deles
ocorrendo concomitantemente. Uma das justificativas para esse número
elevado era que o professor que os realizava, após terminá-los,
tornava-se um multiplicador em serviço, em sua unidade escolar.
Porém o que se verificou, em muitos casos, foi que esse excesso
ocasionou um esvaziamento tremendo: bons cursos com poucos professores.
E pelo relato de muitos professores, poucos se tornaram efetivos multiplicadores.
Pecou-se pelo exagerado número de opções. Em contrapartida,
na rede estadual, praticamente nada ocorreu. Neste caso, pecou-se pela
falta.
Por estar inserido em duas situações, tanto como professor
da rede municipal, quanto professor em cursos de capacitação,
disponho de um lugar privilegiado de observação, que me
possibilita realizar o relato acima. Meu contato direto com a escola e
com os professores, possibilita-me afirmar que o que relatei faz parte,
sim, de uma realidade.
Reconheço, evidentemente, que há necessidade de existirem
os cursos de formação continuada para professores do ensino
público. Mas quero ressaltar que a existência destes não
deve pautar-se por necessidades pontuais, legais ou políticas,
mas como meio de manter o professor bem amparado, dando-lhe os meios necessários
para que possa tomar e sustentar suas decisões diante dos desafios
de ensinar a Língua Portuguesa no quadro da educação
contemporânea.