Maria Elizete Guimarães Carvalho - Universidade
Potiguar- UnP/Natal/RN
Introdução.
Os saberes docentes são construídos ao longo
da vida profissional, incluindo-se nesse percurso os estudos e as experiências
vivenciadas durante a formação inicial. É um momento
de desenvolvimento do processo de autoformação em que os
saberes teóricos são reelaborados, quando postos em contato
com os contextos escolares. É nesse sentido o propósito
desse trabalho. Ele aborda o processo de elaboração e aplicação
de uma proposta pedagógica desenvolvida durante a docência
da Disciplina Prática Pedagógica VI, com alunos da Turma
de 2002.1, do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da Universidade
Potiguar/Natal/RN. A proposta tinha como objetivo orientar os graduandos
para o exercício da docência, sob a forma de Estágio
Supervisionado, no que diz respeito aos conhecimentos relativos à
Educação Infantil. Para tanto, foram feitos estudos que
abordaram teorias e estudiosos como Freire e a Pedagogia da Autonomia
(2004), Vygotsky, Piaget, Emília Ferrero. Durante a trajetória
semestral da disciplina, desenvolveu-se um processo de trocas e interações
professor x aluno, aluno x aluno. Produzindo o conhecimento: memórias
e narrativas docentes. As primeiras elaborações em sala
de aula realizaram-se a partir da simulação de aulas e oficinas
em que se tomaram como categorias de estudo, ensino, aprendizagem, educação,
mediação, interação e criança. Considerando
essas elaborações, desenvolveu-se um processo de orientação
para a construção do Projeto de Docência que envolveu
um conjunto de teorias, imagens e representações sobre a
prática professoral. Tal Projeto foi aplicado intensivamente durante
duas semanas, no campo de estágio – Escolas das Redes Pública
e Privada do Estado do Rio Grande do Norte, com alunos do 1º e 2º
Ciclos, ou seja, com alunos cursando de 1ª a 4ª série.
As primeiras imagens trazidas para a sala de aula da experiência
realizada narravam memórias de uma prática docente conservadora
e desinteressada que se acreditava já superada pelas necessidades,
reclames ou apelos da pós-modernidade. É nesse sentido as
memórias de uma graduanda, que estagiou no 1º Ciclo, numa
turma de 2ª série. “Terminada a primeira semana, realizei
as seguintes constatações: a professora concluiu a semana
sem apresentar o plano de aula, deixando desta forma transparecer atividades
dispersas e sem objetivo definido, a falta de controle emocional sobre
a turma de alunos que dava uma demonstração de rebeldia
e desinteresse pelo que estava sendo ensinado, resultado da falta de metodologia
inovadora. O mais grave era a dificuldade das crianças na leitura
e na escrita, contrastando com o nível das atividades propostas,
pois os educandos encontravam-se em níveis diferenciados, ou seja,
no silábico, pré-silábico e silábico alfabético.
Eles se limitavam a copiar as atividades do quadro-verde, o que me deixou
angustiada”. (PEREIRA, 2004). Vale ressaltar outro depoimento de
uma graduanda que atuou numa sala de aula, formada por alunos de 3ª
série. “Outro grande desafio que considero bastante complexo
é em relação à resistência da professora
titular quanto à proposta de aceitação da educação
inclusiva. Fiquei chocada com sua postura extremamente arcaica e tradicional,
sem indícios de boa vontade de mudar seu pensamento para uma atitude
mais flexível em prol da aprendizagem e crescimento do aluno portador
de Síndrome de Down que estuda na sua turma”. (LEITE, 2004).
A aluna também fez referências à falta de preparo
e humanização da professora, resultante da atual conjuntura
da docência no Brasil. Outro fator importante apontado e que é
preocupante, diz respeito ao fato dos alunos se sentirem acuados devido
à metodologia punitiva exercida pela professora.Trazidas para a
sala de aula, essas experiências geraram discussões e saberes,
apontando para a necessidade de estudos e pesquisas sobre a auto-estima,
os fatores que provocam a baixa auto-estima, o processo de aquisição
da leitura e da escrita, as questões relacionadas à inclusão/exclusão.
Ora a auto-estima é construída passo a passo, no relacionamento
e no convívio social. As estagiárias descobriram que amando
os alunos, valorizando suas atividades e desempenho, estavam contribuindo
para que eles se aceitassem, dessa maneira realizando tarefas que até
então rejeitavam. A mediação restou de grande importância
nesse espaço de construção do conhecimento. Já
para as dificuldades de leitura e escrita, um problema registrado de modo
geral em todo universo de alunos em que foi aplicado o Projeto de Estágio
Supervisionado, foram revisitadas as concepções de Vygotsky,
Ferreiro, entre outras, que apontam para novas formas de conceber a aprendizagem
da língua. Também foi considerado que a criança aprende
muito antes de vir para a escola, bem antes de ser submetida ao ensino
sistemático, mas desde sempre na interação com o
outro. É nessa interação em que são construídos
os conhecimentos.
Assim, na aquisição da leitura e da escrita, a criança
aprende a escrever fazendo uso de seus conhecimentos prévios, levantando
e verificando hipóteses sobre a correspondência entre o oral
e o escrito, agindo e interagindo com a língua escrita, em um processo
de aprendizagem mediado pelo professor, que prescinde da seqüência
e progressão anteriormente impostas. A questão da inclusão/exclusão,
bem mais polêmica, apontou para a necessidade de serem trabalhados
valores e atitudes, numa perspectiva de respeito e aceitação
do outro, incluindo o aluno com necessidades especiais em todas as atividades
desenvolvidas, inclusive nos momentos de recreação, onde
jogos e brincadeiras eram desenvolvidos. Pelo visto, o Estágio
Supervisionado não é apenas o momento de colocar/transformar
a teoria em prática, mas especialmente o momento em que saberes
da prática são trazidos para a sala de aula, refletidos
e analisados. Daí novos saberes são construídos,
mais consistentes, porque em sua estrutura estão não somente
um arcabouço teórico, mas a vivência. Nesse espaço,
ressalta-se a importância de preparar professores para que assumam
uma postura reflexiva em relação ao ensino e às condições
sociais que o influenciam. Pimenta (2002, p. 29), discutindo a formação
de professores, afirma que a “formação é, na
verdade, autoformação, uma vez que os professores reelaboram
os saberes iniciais em confronto com suas experiências práticas,
cotidianamente vivenciadas nos contextos escolares. É nesse confronto
e num processo coletivo de troca de experiências e práticas,
que os professores vão constituindo seus saberes como praticum,
ou seja, aquele que constantemente reflete na e sobre a prática”.
Foi assim que aconteceu. As alunas trouxeram para o âmbito da prática
pedagógica os saberes adquiridos durante o Estágio de docência.
Tais saberes foram reelaborados, passando a integrar o corpo de conhecimentos
das discentes. No entanto, em outros relatos das experiências desenvolvidas
no campo de estágio, causava admiração o conjunto
diferenciado de temas e atividades trabalhados pelos docentes. É
o caso do trabalho produzido pelos professores do Colégio Criativo
Cooperativista que se reúnem toda terça-feira para realizarem
estudos que contribuam para o aprimoramento de sua prática docente.
As discentes em estágio participaram de uma dessas reuniões,
em que assistiram ao filme “Nenhum a menos”. Esse filme trata
da história de uma professora inexperiente que assumiu uma turma
multisseriada, tendo como objetivo maior impedir a evasão dos alunos.
Intuitivamente, ela utilizou-se de estratégias que contribuíram
para o desenvolvimento dos alunos. Conforme Silva et al (2004, p. 30),
“esta trama serviu para que as professoras discutissem a respeito
de sua prática de ensino”, revendo posturas, atitudes e conceitos.
Ora produzir a vida professoral e os saberes docentes, “implica
valorizar, como conteúdo de sua formação, seu trabalho
crítico-reflexivo sobre as práticas que realiza e sobre
suas experiências compartilhadas”. (PIMENTA, 2002, p. 29).
Em outro momento, o trabalho abordou a questão da discriminação
e intolerância, sendo apontadas pelo alunos atitudes preconceituosas,
em que acorreram depoimentos de maneiras de agir que resultam em preconceito
e discriminação. Nessa sala de aula, havia um aluno chinês,
entre outras nacionalidades, sendo uma turma heterogênea em seus
aspectos social, econômico e cultural, valendo ressaltar que nas
aulas de Prática Pedagógica havia sido trabalhada a pedagogia
das diferenças, o respeito pelo outro. No confronto com a realidade,
as discentes criaram discussões trabalharam textos, e produziram
uma oficina. Como atividade, entregaram a cada aluno uma folha de papel
e pediram para desenharem “um boneco ou boneca de cabelos cacheados,
boca pequena, nariz de cenoura e olhos de barco”. Os alunos produziram
livremente sem intervenção das estagiárias. Os desenhos
foram colocados no centro da sala para que todos observassem. Mediados
por elas, responderam a perguntas como: “Que acharam dos desenhos?
Todos são iguais?” As discentes então observaram que
“embora tenhamos dado todas as diretrizes, nenhum desenho ficou
igual ao outro, pois cada um tem seu modo próprio de pensar e agir,
e isso deve ser respeitado por todos”. Os alunos perceberam e respeitaram
as diferenças existentes entre os desenhos e eles próprios.
Para Perrenoud (2001, p. 28), “(...) ensinar é confrontar-se
com um grupo heterogêneo (do ponto de vista das atitudes, do capital
escolar, do capital cultural, dos projetos,das personalidades e etc.).
Ensinar é ignorar ou reconhecer estas diferenças, sancioná-las
ou tentar neutralizá-las, (...) construir identidades e trajetórias”.
Na verdade, as escolas e professores encontram dificuldades em trabalhar
com a diversidade. É um desafio para o qual os docentes devem estar
atentos. Para tanto, é necessário desenvolver uma educação
voltada para a tolerância e respeito às diferenças
de todo gênero. As estagiárias, no confronto que esse contexto
escolar, construíram saberes para enfrentá-lo, reelaboraram
metodologias e conteúdos, numa tentativa de atenuar as desigualdades
presentes na escola. Perrenoud (2001, p. 17) considera que a pedagogia
das diferenças pode atuar como uma forma de luta contra o fracasso
escolar. “As pedagogias diferenciadas são, em geral, inspiradas
numa revolta contra o fracasso escolar e as desigualdades”. E a
contribuição da escola deve ser no sentido de valorizar
as peculiaridades de cada aluno, atender a todos, incorporar a diversidade,
sem nenhum tipo de distinção. (SILVA et al, 2004). Nesse
sentido também pode ser analisada a questão da inclusão
escolar. Ela pode ser entendida como a capacidade de entender e reconhecer
o outro, o que oferece o privilégio e o benefício de conviver
e compartilhar com pessoas diferentes. No dizer da graduanda, a educação
inclusiva acolhe todas as pessoas, sem exceção. É
para o estudante com deficiência física, para os que têm
comprometimento mental, para os superdotados, para os portadores da Síndrome
de Down, para todas as minorias e para a criança que é discriminada
por qualquer outro motivo. (LEITE, 2004). A inclusão possibilita
aos que são discriminados pela deficiência, pela classe social
ou pela cor, que por direito, ocupem o seu espaço na sociedade.
Todos esses saberes foram reelaborados nas reflexões e discussões
realizadas durante a Prática Pedagógica. O diálogo,
a interação e a mediação contribuíram
para a formação de novos conceitos e significados, oportunizando
que outros saberes fossem construídos e tematizados. Nessa perspectiva,
a formação inicial proporcionou compreender o significado
do estágio enquanto relação entre teoria e prática
na formação dos professores, enquanto situação
de confronto entre saberes e práticas. Desse modo, através
dos relatos orais (e posteriormente, do documento escrito), ia-se recuperando
a prática docente e construindo saberes próprios da docência,
novas maneiras de ensinar e de aprender, como ajudar a criança
a pensar, a pesquisar , a se auto-avaliar, a produzir textos, construindo-se
/ trabalhando-se os conceitos de educação, conhecimento,
docência, entre outros. No processo de interação possibilitado
pelo diálogo, foram recuperados fragmentos de uma prática
cambiante, em que emoções, gestos, imagens muitas vezes
esquecidas, inconscientes, estigmatizadas adquiriram luz, cor, vida. Em
todos os encontros, a temática principal era o ensino-aprendizagem,
trazida para o debate a partir da experiência vivenciada pelos discentes,
numa perspectiva de leitura e interpretação do exercício
da prática docente. Nesse espaço de construção
do conhecimento que é a sala de aula, muitos saberes são
ressignificados, tomando como parâmetros, além da teoria,
a experiência desenvolvida por cada um, a interação
e a mediação. Nos relatos orais e na produção
do documento escrito resultantes desse conjunto de experiências,
os discentes refletiram e analisaram o exercício da docência,
sugerindo espaços de manutenção / transformação
dessa prática, que apontaram para a reformulação,
aprofundamento e construção de saberes pedagógicos.
Conclusão. A formação do professor, apesar de ininterrupta,
é marcada por momentos especiais. A Prática Pedagógica
que proporciona ao graduando o confronto com o contexto escolar é
um deles. Nesse trabalho, foi possível alargar o campo interpretativo
do trabalho docente, resultando em saberes que expressam o processo de
ensinar e aprender em aula. Ficou patente a importância da aprendizagem
pela afetividade, a importância de uma relação dialógica
e interativa. Os saberes da experiência apontaram para a necessidade
de uma intermediação teórica eficaz, e, reelaborados
em sala, retornarem para a prática. Desse modo, o momento pedagógico
do estágio, vivenciado durante a Prática de Ensino, pode
ser considerado como espaço formador e multiplicador de saberes
docentes.
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São Paulo: Paz e Terra, 2002.
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PEREIRA, Maria Auxiliadora S. A elevação da auto-estima
como ferramenta para alavancar a leitura e a escrita. Natal, 2004. (texto
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PIMENTA, Selma G. ; ANASTASIOU, Léa das G. C. (Orgs.). Docência
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