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RITUAIS
COMEMORATIVOS: DISCIPLINANDO CORPOS, TEMPO(S) E ESPAÇO(S) NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Rodrigo Saballa de Carvalho – PPGEdu/ UFRGS
O que são os rituais comemorativos? Como funcionam?
Quais os seus efeitos? Tais questionamentos foram desencadeados pela informação
prestada por uma professora de que “as inúmeras festas que
acontecem na escola (Casa Amarela) já se tornaram rituais comemorativos,
pois se alteram apenas as temáticas e repetem-se sempre as mesmas
ações" (Diário de Campo, 19/09/03). Ao participar
de alguns rituais , observei que estes apresentam uma repetição
de procedimentos de natureza pedagógica que incidem no disciplinamento
dos corpos infantis, em termos de atitudes, comportamentos e hábitos,
tendo em vista uma eficiente aprendizagem.
Tais procedimentos podem ser assim descritos: organização
das crianças por faixa etária no espaço em que se
realizam as comemorações; utilização de quatro
horas (dividas em dois turnos) para realização das propostas;
apresentações artísticas das crianças e/ou
professoras; definição e exploração de uma
temática para a festa através da decoração
do salão; proposição de competições
entre as crianças; avaliação da comemoração
através de registro fotográfico e relatório escrito
(pelas professoras, educadoras e equipe diretiva); realização
de merenda "especial"; reorganização dos horários
da instituição e rotinas das salas de aula; presença
da equipe diretiva e representante da mantenedora (Secretaria Municipal
de Educação e Pesquisa - SMEP).
Com o objetivo de ensinar, através de certa disposição
e ordenação do corpo daqueles que aprendem e das coisas
que são aprendidas, os rituais (entre outras propostas) possibilitam
a ação do poder disciplinar . A operacionalização
deste poder se deve ao uso de instrumentos simples como a vigilância
hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.
A vigilância hierárquica é descrita por Foucault (1987)
como um aparelho através do qual, as técnicas que permitem
ver induzem a efeitos de poder, já que os meios de coerção
utilizados tornam visíveis os indivíduos sobre os quais
se aplicam. O referido instrumento inclui a todos em um regime de constante
visibilidade, transformando os espaços (escolares, penitenciários,
hospitalares, etc.) em verdadeiros laboratórios de observação.
O exercício da vigilância produz indivíduos como objetos
de controle, conhecendo seus modos de agir e de conduzir suas preferências,
sem necessitar recorrer à coação física. Desta
forma, os mesmos aprendem a vigiar a si próprios (e aos outros)
tornando-se o princípio de sua própria sujeição.
A sanção normalizadora funciona como um pequeno mecanismo
penal, que tem suas leis próprias, seus delitos especificados,
suas formas particulares de sanção e suas instâncias
de julgamento. A ação deste instrumento privilegia a correção
dos comportamentos indesejáveis através do exercício,
tornando penalizáveis as frações mais tênues
de conduta. A sanção normalizadora não se trata de
uma jurisprudência punitiva corporal , porque as disciplinas (e
seu respectivo poder) são invisíveis e tornam o olhar cada
vez mais imperceptível e inscrito nas pessoas.
O exame é apresentado por Foucault (1987) como uma combinação
da vigilância hierárquica e da sanção normalizadora.
Este instrumento exerce um controle normalizante (que permite qualificar,
classificar e punir) e estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade
através da qual eles são diferenciados e sancionados. O
exame inverte a economia de visibilidade no exercício do poder,
faz a individualidade entrar em um campo documentário e torna cada
indivíduo um "caso", situando-se no centro dos processos
que constituem os indivíduos como efeito e objeto de poder e de
saber.
Através da ação dos referidos instrumentos, pode-se
dizer que o saber pedagógico se instaura e redefine o estatuto
de sujeito-infantil na instituição educacional. As propostas
desencadeadas nos rituais comemorativos (entre outras) se desenvolvem
através da ação do poder disciplinar (e seus instrumentos)
que possibilitam a produção de subjetividades dóceis.
Estas propostas apresentam características que lhes são
peculiares e se desenvolvem em sucessivas etapas de curta duração.
No primeiro momento, é realizada a abertura da festa através
do pronunciamento da equipe diretiva e convidado/a, seguida de uma representante
das profissionais que trabalham na instituição. Ao término
da abertura, as crianças são posicionadas em espaços
demarcados (em círculo no chão) por faixa etária
e a merenda é servida pelas funcionárias. As competições
entre os grupos iniciam após a alimentação. Algumas
crianças representando suas turmas (com exceção do
M1 e M2) participam dos jogos propostos, visando à conquista de
brindes para seus pares. O encerramento das comemorações
é marcado pela liberação das crianças para
brincarem no salão ao som de músicas infantis.
Neste espaço social configurado pelas comemorações,
o olhar pedagógico não cessa de objetivar os indivíduos,
transformando-os em foco de observação. Assim, evidencia-se
a urgência de a escola controlar, regular e normalizar a população
infantil, através de táticas disciplinares que tomam os
indivíduos — ao mesmo tempo — como objetos e instrumentos
de seu exercício. Neste sentido, Corazza (2001), ao discutir os
mecanismos de observação, assegura que estes são
interessados, implicados na constituição de políticas
de identidades e comprometidos em determinadas relações
de poder-saber .
Tais mecanismos sutis disciplinam através de sua ação,
pois as crianças são provocadas a evitarem condutas “erradas”
e a terem atitudes de constante cuidado ante o que pode ser considerada
(como sendo) uma falta. A finalidade desta operação pode
ser considerada a produção de uma série de condutas
adequadas, nas quais se encontram formalismos inerentes a um “bom
aluno”, a um “aluno educado”, “civilizado”.
É importante ressaltar que essas comemorações provocam
expectativas nas profissionais que trabalham na instituição,
pois as mesmas são avaliadas pela equipe diretiva (e convidados)
em relação ao comportamento das crianças e realização
das propostas previstas. Desta forma, é preciso levar em consideração
que o “jogo” praticado na escola não ocorre somente
nos saberes ensinados, mas também na constituição
dos modos de ser professora, atendente, educadora, membro da equipe diretiva,
funcionária, etc. Estas pessoas, sejam elas adultos ou crianças,
"aprendem" modos de peculiares de serem integrantes e de se
relacionarem no(s) espaço(s) da escola infantil.
Operacionaliza-se, assim, o dito por Foucault (1987; 2003a) de que as
instituições de seqüestro (entre elas destaco as escolas
infantis) podem ser consideradas como “máquinas” que
disciplinam aqueles são submetidos, imprimindo profunda e permanentemente
certas disposições (disciplinares) que passam a operar pelo
resto da vida. Este conjunto de operações leva ao fim o
poder disciplinar e tem como propósito a (normalização
das condutas) transformação técnica dos indivíduos
para adequá-los a uma norma. É importante ressaltar que
a norma, conforme Skliar (2003), insiste em atrair para si todas as identidades
e diferenças, tendo em vista ser o centro da gravidade, eixo a
partir do qual se organiza, cataloga e classificam-se as coisas no mundo.
É interessante observarmos que as contribuições dos
autores possibilitam destacar que a disciplina não é regida
pelo domínio da lei que estabelece um conjunto de proibições,
mas pelo da norma que define uma codificação dos costumes.
Pode-se dizer, portanto, que tal codificação se (re)significa
nos rituais comemorativos, pois a instituição, através
de um conjunto de técnicas de controle corporal, aponta o espaço,
o tempo e os movimentos dos adultos/crianças, utilizando mecanismos
econômicos que maximizam o corpo como força útil.
Neste espaço de relações, as pessoas são concebidas
em uma série de estratégias reguladas de comunicação
e práticas de poder que permitem a individualização
e a subjetivação . Essas relações evidenciam
a operação de micropoderes sobre os corpos enquanto objetos
a serem “manipulados” e “controlados” visando
ao governo dos mesmos.
Dessa forma, ao longo deste capítulo procuro discutir o funcionamento
dos rituais comemorativos e seus efeitos no processo de disciplinamento
dos corpos, considerando que os mesmos compõem uma rede (quase
invisível) de normas, valores, verdades e proibições,
cujo intento é o de produção de sujeitos pedagógicos
.
E é justamente a partir das intenções expostas no
início deste capítulo, que apresento as seções
que o constituem. Este capítulo é formado por quatro seções,
que têm o intuito de discutir o processo de disciplinamento dos
corpos dos indivíduos através das práticas dos “rituais
comemorativos” na escola de Educação Infantil. Através
da operação analítica dos rituais de Halloween, Primavera
e Família, busco destacar o funcionamento dos mesmos (usos e costumes),
assim como a sua produtividade em termos de efeitos nos corpos dos adultos
e crianças. O corpus de análise será composto de
registros do diário de campo, gravações de diálogos
informais (entre as crianças) e trechos de entrevistas com profissionais
da instituição. Através deste material, buscarei
descrever e analisar alguns efeitos dos referidos rituais com o objetivo
de trazer à discussão outras possibilidades de compreendê-los.
Festa da Primavera
ESCOLA INFANTIL – CASA AMARELA
Senhores Pais:
Convidamos a todos para a nossa IV FESTA DA PRIMAVERA, ocasião
na qual serão eleitos o rei e a rainha da estação.
Lembramos que a primavera é muito importante para todas as pessoas,
pois é a época do acasalamento da maioria das espécies
da natureza. Dentro de nós, começa a surgir uma agradável
sensação de que a vida, após os frios e escuros meses
de inverno, recupera seu esplendor. Esta estação faz renascer
a vida de um modo mais flexível e com toda a sua beleza busca o
equilíbrio. Desta forma, aguardamos vocês para comemorarmos
a chegada da primavera e assistirmos a apresentação de nossas
lindas florzinhas. Lembramos que nossas crianças são como
flores, que merecem nosso carinho e atenção para crescerem
belas e viçosas. Desta forma, temos o dever de cuidar de nossos
jardins. A festa será no dia 19/09/03 às 15h no salão
da escola. Um abraço da equipe diretiva, professoras e funcionárias.
A partir da leitura do convite da IV Festa da Primavera, é possível
destacar o caráter disciplinar do mesmo. Na medida em que se propõe
a “ensinar” aos pais (determinados) “modos de ver”
a natureza e compara as crianças com flores, este convite pode
ser compreendido enquanto um “produtivo” mecanismo disciplinar.
Dessa forma, percebe-se que o texto extrapola suas finalidades aparentemente
precisas, de informação da data, horário, local e
temática da comemoração, pois enuncia aos/às
seus/suas leitores/as representações de criança e
natureza. A primavera é descrita como o período áureo
das estações do ano, que influencia diretamente na vida
das pessoas, enquanto as crianças como seres humanos que necessitam
de cuidado, carinho e atenção para se desenvolverem. É
interessante destacar a perspectiva adultocêntrica de representação
da criança, enquanto indivíduo que está por vir,
que se tornará um adulto “belo e viçoso”, a
qual permeia o texto do convite. Pode-se dizer, portanto, que o adulto
é tomado como referência através da qual a criança
é individualizada. Assim, é importante retomar o dito por
Foucault (1987, p.161):
num sistema de disciplina, a criança é mais individualizada
que o adulto, o doente é antes do homem são, o louco e o
delinqüente mais que o normal e o não-delinquente. E é
em direção aos primeiros, em todo caso, que se voltam, em
nossa civilização, todos os mecanismos individualizantes;
e quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista,
agora é perguntando-lhe o que há ainda nele de criança,
que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer.
É
interessante observar que a individualização não
tem mais como alvo os “detentores do poder”, pois se trata
de uma individualização operada por uma tecnologia de poder
que não está mais nas mãos de uns ou de outros, como
no caso do poder soberano. Trata-se de um poder anônimo e funcional,
cujo alvo são principalmente as pessoas que estão nas margens
da sociedade e devem ser,antes de tudo, recuperadas, trazidas para o centro.
Uma das principais atribuições desta individualização
moderna é tornar os indivíduos detalhadamente caracterizados,
para identificação das margens e possível distinção
dos que estão recuperados, daqueles que devem ser trazidos para
o centro.
E é justamente, a partir de todos esses ditos a respeito da operação
de individualização, que penso ser possível apontar
para (re)significação de (alguns) elementos (remanescentes)
da pedagogia de Frobel, nos discursos que permeiam as representações
de criança contidas no convite do evento. O referido autor é
considerado um dos pedagogos precursores nos estudos sobre a educação
infantil, pois (depois de Rousseau) redefiniu organicamente a imagem da
infância e teorizou a sua escola. Dessa forma, é interessante
ressaltar os três aspectos destacados por Cambi (1999) como sendo
primordiais na pedagogia de Frobel: a concepção de infância;
a organização de jardins-de-infância e a didática
para primeira infância que constituíram o eixo fundamental
do método froebeliano e que tanta difusão teve na práxis
escolar do século XIX. É importante enfatizar que o referido
pedagogo foi quem nomeou como “jardim-de-infância”,
o espaço destinado à educação das crianças,
considerando-as enquanto flores que deveriam ser regadas e cuidadas pela
jardineira (professora).
Acredito ser possível, neste momento, fazer uma aproximação
entre a representação de infância contida no convite
e o postulado pela pedagogia de Froebel. De certa forma, salvo as devidas
peculiaridades de objeto, local e época a que se referem, ambos
ditos concebem a criança como um ser humano em desenvolvimento
cuja referência fundamental (para sua individualização)
é a figura do adulto, enquanto seu provedor e orientador. Levando
em consideração as discussões empreendidas a partir
da análise do convite, em relação à representação
de criança e seu processo de individualização, ressalto
a relevância de descrever o funcionamento (os usos e costumes) do
ritual comemorativo de primavera, tendo em vista o enfoque da produtividade
do mesmo enquanto prática disciplinar.
A festa da primavera é a comemoração mais popular
na Casa Amarela, sendo o evento que recebe o maior investimento financeiro
em decoração, sonoplastia e figurino de seus participantes.
O investimento financeiro realizado pela instituição é
revertido através da venda de votos para eleição
do rei e da rainha da estação. No início do mês
de julho, é realizada uma reunião com os pais que pretendem
candidatar seus/suas filhos/as para o concurso. Neste momento, são
distribuídas cartelas com votos, para serem vendidas até
o dia que antecederá a realização da festa. As famílias
que conseguirem vender o maior número de votos (e por conseqüência
arrecadarem a maior quantia em dinheiro) elegerão seus/suas filhos/as.
À medida e que a verba da venda dos votos é arrecadada,
a escola investe nos gastos com o evento, dentre os quais se destacam
a compra de brinquedos para os vencedores. As crianças eleitas
recebem faixas com os respectivos títulos e seus pais uma cesta
de flores do campo.
As atividades previstas para o ritual de primavera diferenciam-se dos
demais eventos da Casa Amarela, devido à realização
de três apresentações. Estes espetáculos são
o teatro, a roda cantada e o desfile dos/das candidatos/as ao concurso
de rei/rainha. É importante ressaltar que este evento mobiliza
a equipe de profissionais que trabalham na instituição assim
como a comunidade escolar que se envolve enquanto equipe de apoio. À
proporção que se desenvolvem os preparativos para a festa,
as equipes constituídas pelas famílias contribuem com a
limpeza, organização, venda de votos e ornamentação
do salão. E é justamente, a partir de todas essas considerações
a respeito dos “usos e costumes” praticados no ritual comemorativo
de primavera, que passo a narrar algumas cenas deste ritual. Trago tais
cenas com a intenção de apontar para operacionalização
do poder disciplinar em relação ao “controle”
dos corpos infantis, no que se refere aos seus efeitos.
Dessa forma, transcrevo a seguir uma cena do diário de campo que
narra o momento da apresentação de teatro das crianças
do Pré A:
É
anunciada no microfone a apresentação do teatro. As crianças
do Pré A deitadas no chão e cobertas por um tecido marrom,
representam as sementes embaixo da terra. Inicia a música. “Faz
de conta que você é uma sementinha bem quietinha, deitadinha
pelo chão (...)". Uma menina do Pré B interpreta uma
jardineira e começa a regar as sementes. Os corpos das crianças
movimentam-se de forma sincronizada no chão e lentamente as plantas
começam a brotar da terra. As professoras repetem os gestos da
coreografia, para as crianças levantarem devagar. Ao som da música,
nascem e crescem as flores representadas pelas crianças. Margaridas,
rosas, crisântemos, violetas e cravos são os figurinos escolhidos.
Crianças maquiadas com pétalas na cabeça colorem
o salão. Após a apresentação, o público
aplaude e cada criança procura o seu canteiro, pois a sala está
dividida com placas (por cores) indicando o lugar em que cada uma deve
ficar posicionada. A professora elogia as crianças no microfone,
pois, conforme seu relato, tudo saiu como haviam ensaiado. Pais, crianças
e equipe sentam e aguardam a próxima apresentação.
Desta vez, são as professoras, educadoras e funcionárias
que apresentarão a roda cantada “A linda rosa juvenil"
(Diário de Campo, 19/09/03).
Os corpos
infantis, durante a apresentação, estão sincronizados
executando movimentos coreografados pelo ritmo da canção
e gestos da professora. À medida que se aceleravam os movimentos,
percebia-se o entusiasmo das crianças personagens e dos/as expectadores/as.
Todos/as aguardavam o momento de reconhecerem os/as seus/as filhos/as
fantasiados/as de flores. As crianças dançavam, cantavam
e vibravam com a canção da semente. Os pais, as professoras
e colegas aplaudiram com euforia o espetáculo realizado. Busco,
através deste fragmento destacar que a ação do poder
disciplinar implica relações de poder, que são menos
visíveis quanto mais física e materialmente se encontram
presentes e quanto mais vinculadas se encontram em relação
à aprendizagem. Assim, acompanho o dito por Foucault (1987) de
que o poder disciplinar se exerce tornando-se invisível e impondo
aos que submete uma visibilidade obrigatória. No teatro, são
as crianças que têm que ser vistas, a sua “iluminação”
permite que o poder se exerça sobre elas. É possível
dizer que, para a realização da apresentação,
as crianças tiveram que interiorizar certas disposições
(disciplinares), sendo submetidas e submetendo seus corpos (e de seus/suas
colegas) ao controle.
Trago os comentários de uma professora a respeito do processo de
preparação da apresentação, relato através
do qual é possível perceber os embates ocorridos durante
os ensaios e o processo de organização da turma. Dessa forma,
transcrevo a seguir o referido relato:
Fiquei muito feliz com o teatro. Você nem faz idéia. As crianças,
nos ensaios, corriam de um lado para o outro, não conseguiam se
concentrar, gritavam, brigavam e, quando paravam, começavam a conversar.
As minhas colegas olhavam os ensaios e diziam que seria muito difícil
dar certo. Aos poucos, fui fazendo todos os dias atividades de relaxamento
e eles começaram a sentir mais a canção. Com o passar
dos dias, elas já estavam conseguindo fazer a coreografia conforme
o combinado. As brigas e empurrões cederam lugar aos risos pelo
prazer de fazer tudo certinho. Estou emocionada. (Diário de Campo,
19/09/03).
A declaração evidencia a positividade da ação
do poder disciplinar em termos de efeitos nos corpos infantis. Através
do “controle” dos corpos infantis, empreendido pelas práticas
de relaxamento, houve a possibilidade de organização das
crianças no espetáculo. E é a partir destes ditos
que penso ser imprescindível retomar as palavras de Foucault (1987,
p.161) quando enfatiza: “temos que deixar de descrever os efeitos
do poder [disciplinar] em termos negativos: ele ‘exclui', 'reprime',
'recalca', 'mascara' [...]; Na verdade o poder produz; ele produz realidade;
produz campos de objetos e rituais da verdade”. É importante
ressaltar que a produtividade deste poder está relacionada à
capacidade do mesmo em produzir diferentes subjetivações
à medida que é exercido, pois inter-relaciona posições
diferentes, economizando os “custos” de imposições
violentas.
Desta forma, a partir da discussão empreendida a respeito do processo
de individualização a que são submetidos os indivíduos
(adultos e crianças) na instituição escolar, assim
como a produtividade do poder disciplinar, apresento a seguir o ritual
comemorativo de Halloween. A partir da descrição do funcionamento
deste evento “alienígena”, é possível
evidenciar (alguns elementos) da rede de relações de poder
que se estabelecem na Casa Amarela, assim como (alguns) pontos de resistência.
Festa de
Halloween
Morcegos, vampiros, fantasmas, monstros e bruxas percorrem os corredores
da Casa Amarela em direção às salas de aula, pois
já estão prontos para a comemoração. Em poucos
minutos, cessam os rumores e escutam-se apenas as vozes das funcionárias
organizando os últimos detalhes da decoração. Sonoplastia,
recreação, equipe de apoio, organização do
ambiente, animação e apresentação são
algumas das tarefas distribuídas entre as profissionais. As velas
das abóboras são acesas, as luzes do salão apagadas
e as cortinas fechadas. Um silêncio toma conta do ambiente.
As professoras fantasiadas retornam para as salas de aula. Enquanto isso,
duas professoras sem fantasia conversam no salão a respeito da
insatisfação que sentem em relação à
festa, por ser esta uma comemoração tipicamente americana.
Ao término do breve diálogo, elas retornam em silêncio
para sala, na companhia de suas turmas. O salão fica vazio. Na
penumbra do ambiente, observam-se móbiles com morcegos e máscaras
de monstros. No centro do salão, um grande caldeirão, dissemina
fumaça produzida através de gelo seco. Saquinhos coloridos
de doces e dentaduras de vampiros estão dispostos em volta do caldeirão.
As funcionárias da cozinha colocam na mesa jarras com suco de framboesa
(cor vermelha) e bolos de chocolate que serão servidos no momento
da comemoração.
Após alguns minutos, a diretora bate com uma colher de pau no caldeirão.
O sinal é o aviso de que a festa das bruxas vai iniciar. As crianças
em fila começam a sair das salas de aula e se dirigem para o salão.
Todas sentam em um grande círculo demarcado no chão. A demarcação
respeita uma ordem crescente de idades, através da qual podem ser
visualizadas etiquetas com a identificação de cada turma.
A primeira turma a sentar é do M1. As crianças ficam assustadas
com as maquiagens dos colegas e começam a chorar.
O início da festa é adiado, a turma do M1 é reconduzida
para sala de aula. Enquanto ocorre o deslocamento, as crianças
do Pré A espalham-se pelo salão e começam a correr.
Alguns passam por baixo da mesa e tentam pegar pedaços de bolo,
outros imitam bruxas, monstros através de gritos e encenações.
A professora, da turma procura conter as manifestações das
crianças, enquanto as demais colegas observam com olhar de insatisfação.
As crianças divertem-se com a situação. A professora
com ajuda de sua auxiliar, consegue dispor novamente todas as crianças
de sua turma sentadas no chão. Elas passam falando uma mensagem
no ouvido de cada uma delas, como em um jogo de telefone sem fio. Todas
começam a ficar em silêncio e se ouve apenas o murmúrio
das conversas paralelas. As demais turmas sentam no chão. A equipe
diretiva coloca um CD no rádio e as professoras iniciam uma apresentação
musical. O olhar das crianças é de admiração.
No compasso do espetáculo, sob os olhares atentos das turmas, inicia-se
mais uma comemoração de Halloween na Casa Amarela.
Os rituais comemorativos podem ser considerados como mecanismos disciplinares,
utilizados com o propósito de conhecer e entender as emoções,
necessidades, sentimentos, limites e espaço(s) ocupado(s) pelas
crianças. É importante observar que essas práticas
procuram atender em seus tempos e espaços a vontade de poder e
de saber que a sociedade tem de conhecer as crianças para assim
melhor conduzir suas ações.
Durante um diálogo com a equipe diretiva, questionei a respeito
de qual era a importância do evento de Halloween na instituição,
e também sobre os motivos pelos quais o mesmo começou a
ser realizado. A equipe consultou o projeto de trabalho referente às
comemorações da casa e, logo em seguida explicou, que:
as comemorações de Halloween começaram a fazer parte
do calendário da escola no momento em que percebemos a necessidade
de trabalhar com o imaginário das crianças. Através
da festa, elas penetram em um mundo mágico, de faz de conta, através
do qual podem ser bruxas, monstros e fantasmas. As nossas crianças
de classe popular não vivenciam este tipo de fantasia em seus lares.
O nosso objetivo principal através das comemorações,
sejam elas de Halloween ou de outra temática, é que as crianças
aprendam a compartilhar com os outros, a respeitar o próximo e
a desenvolver a autonomia (Diário de Campo, 31/10/03).
A partir da informação, destaco a positividade presente
no caráter “pedagógico”dos rituais comemorativos,
pois, através da realização destes eventos, as profissionais
visam ao desenvolvimento do imaginário das crianças e a
vivência de valores morais como convivência, partilha e respeito
ao próximo. Assim, percebe-se que a “necessidade” de
trabalhar o desenvolvimento do “imaginário infantil”
enunciada pela equipe, pode ser considerada como emergente da produção
de saberes sobre as crianças. Através destes saberes, são
organizadas práticas (como os rituais comemorativos) que disciplinam
as crianças a se relacionarem consigo mesmas e com seus pares,
tendo como referenciais os conhecimentos produzidos e reconhecidos como
verdadeiros (desenvolvimento do imaginário infantil, autonomia,
etc.). Desta forma, conforme Rocha (2000), através da produção
de conhecimentos, exercemos poder relacional e sujeitamos o outro impondo
nossas vontades/verdades.
A compreensão das professoras e equipe diretiva de que o evento
do Dia das Bruxas contribui para o desenvolvimento do imaginário
das crianças não foi compartilhada por todas as profissionais
que trabalham na Casa Amarela. Evidenciou-se uma divergência de
pontos de vista, que pode ser observada nas considerações
realizadas por duas docentes recém-nomeadas na instituição.
Durante o momento das brincadeiras, percebi que apenas as referidas professoras
não estavam fantasiadas participando das brincadeiras propostas,
conforme havia sido previsto no planejamento coletivo (prévio)
para realização do evento. Ao perceber que ambas haviam
saído do salão, iniciei uma aproximação indagando
:
Pesquisador:
O que houve? Vocês não irão participar das brincadeiras?
Professora A: Sempre é a mesma repetição. Em todas
as festas, a gente faz as mesmas coisas. Mas hoje o pessoal se superou.
Pesquisador: Por quê?
Professora A: Aceitar os enlatados americanos é complicado. Festa
de Halloween! Nunca pensei que fosse passar por isso. Qual é o
significado desta comemoração para nós, brasileiros?
Qual o significado desta festa aqui na vila?
Professora B: Eu não vejo significado nenhum. Estamos em uma escola
infantil de periferia, gastando com abóboras, balões e vestidos
de bruxa. Só o que falta pedirmos para as crianças fazerem
a brincadeira das “gostosuras ou travessuras” na rua.
Pesquisador: Vocês conversaram com as colegas e equipe explicando
os motivos pelos quais não concordam com a comemoração?
Professora A: Não adianta falar nada. As inúmeras festas
que acontecem na escola (Casa Amarela) já se tornaram rituais comemorativos,
pois se alteram apenas as temáticas e repetem-se sempre as mesmas
ações.
Professora B: Elas justificam que, com as comemorações,
as crianças aprendem a se relacionar com os outros, através
da socialização, partilha, etc. Eu penso que existem outras
formas, mas como sou nova aqui não tenho muita alternativa.
Professora A: Na faculdade, a gente discute, planeja, mas,quando chega
aqui, a dinâmica é outra. Saí da graduação
cheia de idéias e utopias. Quando comecei a trabalhar, fui-me tornando
uma outra professora.
Professora A: Pelo menos hoje, não nos vestimos de bruxa e nem
orientamos as brincadeiras de sempre.
Professora A: Pelo menos isso.
Pesquisador: Tem muitas comemorações aqui na escola?
Professora A: Tem uma festa por mês. Sempre estamos nos preparando
para uma nova comemoração.
Professora B: As festas são como aulas. Planejamos, planejamos
e depois executamos. A diferença é que não precisamos
ter muitas idéias, porque é sempre a mesma repetição.
O diálogo realizado com as professoras sinalizou a resistência
das mesmas em relação aos rituais comemorativos, reafirmando
as considerações de Foucault (2003b) de que não existem
relações de poder que sejam completamente triunfantes e
cuja dominação seja incontornável. Reapareceram,
na explicação das docentes, os objetivos dos rituais, que
foram enunciados no diálogo realizado com a equipe diretiva. Ao
argumentarem que existem formas diferentes de trabalhar com as questões
relativas à moral, demonstraram alguns dos (muitos) pontos de vista
gerados pela pedagogia em relação às crianças
e seu encaminhamento na educação infantil. Embora os pontos
de vista das professoras e equipe possam ser considerados divergentes,
nenhuma das partes escapa da vontade de pedagogizar a infância.
Tal vontade, conforme a discussão realizada por Narodowski (2001),
é atravessada por categorias que estipulam a normalidade das crianças,
que homogeneízam o seu desenvolvimento e que uniformizam suas dificuldades
possíveis, assim como a sua virtual solução. Este
sistema de regulação e normalização produz
aquilo que conta como sendo uma “boa pedagogia” e, por conseqüência,
o que passa a ser considerado como um bom/boa professor/a.
As profissionais que trabalham com as crianças também vivenciam
um processo de disciplinamento na instituição, que visa
a extrair um tipo específico de utilidade dos seus corpos. O referido
processo “fabrica” a professora (educadora, atendente, funcionária,
equipe diretiva, etc) “normal”, conforme os diferentes regimes
disciplinares que estão em operação na instituição.
Essa produção se destaca no relato da docente, ao enfatizar
que ela foi-se tornando uma outra professora a partir do momento em que
começou exercer a sua função. É interessante
destacar as contribuições de Silva (2000b), que problematiza
a identidade vista como normal, dizendo que a mesma é vista como
natural, única e desejável. Tal identidade tem tanta força
que simplesmente nem é vista como uma identidade, mas como a identidade.
Desta forma, a norma operacionaliza-se através de um processo de
supressão das identidades incômodas, inomináveis,
irredutíveis, misteriosas, etc.
E é justamente, a partir de todos estes ditos, que penso ser possível
dizer que as profissionais ocupam posições estratégicas
na disseminação do poder disciplinar, porém não
devem ser consideradas vilãs da história. Conforme Kohan
(2003), todas as pessoas que trabalham nos espaços escolares estabelecem
uma rede de relações, através da qual estão
presas ao controle e dependência umas das outras. Dessa forma, as
professoras podem ser consideradas em muitos sentidos, “rebanhos”
dos orientadores, conselheiros, diretores, que, por sua vez, também
são “rebanhos” de outras instâncias como supervisores,
administradores, macrogestores, etc. Em função da posição
relativa que cada participante da instituição escolar ocupa,
operacionalizam-se dispositivos intencionais (mas não-pessoais)
que os sujeitam.
As redes de relações tecidas entre os diferentes participantes
que atuam na escola evidenciaram-se no cotidiano. Em situação
ocorrida durante a realização do lanche, na festa de Halloween
percebi o quanto os diferentes “personagens” da Casa Amarela
estavam “presos” ao controle e dependência uns dos outros.
Ao término do diálogo com as professoras, retornei para
o salão de festas e sentei próximo a um grupo de crianças
do Pré A que estavam realizando o lanche da tarde. Mesmo percebendo
a presença de um adulto por perto, iniciaram o diálogo que
segue:
Júlia: Eu não estou gostando de ficar sentada aqui nesse
lugar.
Marcela: Eu também não. Já comi bastante bolo e tomei
muito sangue (framboesa).
Pedro: Vamos levantar e dar uma corrida lá fora.
Júlia: A professora vai ficar triste com a gente. Ela já
pediu pra gente parar de correr pelo salão.
Pedro: Mas nós somos bruxos. Bruxo pode transformar todo mundo
em estátua (risos).
*Aproxima-se um menino que estava do outro lado da roda demarcada no chão:
Henrique: Quem quer um pouco de suco de sangue (framboesa)?
Júlia: Eu não quero suco babado (risos).
Marcela: Nem eu. Eu vou pedir pipoca ensangüentada para professora.
Marcela: Professora eu quero pipoca ensangüentada (a professora alcança
um pacote de pipoca para menina e ela divide com os colegas).
Marcela: Vamos levantar e brincar lá fora.
Júlia: Mas nem chegou ainda a hora das brincadeiras.
Henrique: Se vocês levantarem, as tias (funcionárias) vão
contar para professora.
Pedro: A professora disse para sentar e parar de correr aqui dentro. Mas
eu quero correr lá fora na praça.
Pedro: Eu vou contar bem baixinho até 3. No três, todo mundo
levanta e sai correndo.
Pedro: 1, 2,3...
(As crianças levantam e saem correndo em direção
ao corredor. Uma funcionária da cozinha avisa a professora. Uma
integrante da equipe diretiva chama atenção das crianças
e elas retornam para seus lugares).
Professora: O que eu disse para vocês? Eu pedi para comerem aqui
descansados, pois depois teremos as brincadeiras com as turmas.
Marcela: A gente queria correr na praça.
Professora: Na hora das brincadeiras, vocês correm. Vocês
não estão gostando da festa das bruxas?
Pedro: Eu não gostei.
Júlia: Eu gostei da festa, mas já cansei de ficar aqui sentada.
Professora: Vamos fazer um combinado então. Fiquem aqui sentadinhos,
comportados, bem educados que nem os outros colegas. Depois que terminarem
as brincadeiras, eu levo vocês um pouquinho no pátio. Não
vai ser na praça porque hoje não é o nosso dia.
* Aproxima-se uma representante da equipe diretiva:
Equipe: O que vocês já andam aprontando de novo? Deste jeito,
a turma de vocês nunca vai ser a mais comportada da escola. Vocês
têm que aprender a aguardar os momentos certos. Tudo tem a sua hora.
A professora já explicou isso para vocês.
Marcela: Depois a professora vai nos levar lá fora.
Equipe: Hoje não é o dia de pátio de vocês.
Vocês vão brincar com as outras crianças no salão.
Pedro: Mas eu não quero brincar no salão.
Professora: Vocês irão ganhar dentaduras de vampiro depois
das brincadeiras e sacos de balas de goma. Fiquem aqui comendo que eu
vou iniciar as brincadeiras. Se vocês saírem daqui, eu não
vou poder levar vocês ao pátio.
Equipe: Professora, pode começar a primeira brincadeira, pois eu
estou aqui de olho neles.
Dessa forma, é preciso levar em consideração que
a situação desencadeada evidenciou a rede de relações
estabelecidas entre os participantes da instituição. Crianças,
professora e equipe vivenciaram embates em relação às
regras que regulamentam o ritual comemorativo de Halloween. As crianças,
mesmo posicionadas em seus lugares (de acordo com a turma em que se encontravam
e a respectiva faixa etária), movimentaram-se e interagiram com
colegas de outras localizações, (re)configurando a organização
do espaço. Henrique (integrante da turma do Pré B) saiu
do local em que estavam seus colegas e procurou a turma do Pré
A, oferecendo suco de “sangue”. Esta ação aparentemente
comum subverteu a lógica da organização do evento,
pois as crianças sabiam que, durante os rituais, todas deveriam
permanecer na roda, sempre próximas às suas respectivas
professoras aguardando serem servidas. Mesmo sabendo da regra, o menino
cruzou o espaço do salão e iniciou uma interação
com os colegas de outra turma. As profissionais que trabalham na casa
não perceberam a situação ocorrida e o ato do menino
não foi percebido. Ele sentou-se ao lado dos colegas e auxiliou
no planejamento das ações que foram empreendidas para “fuga”
do salão de festas e “quebra” da rotina.
O planejamento engendrado pelas crianças, com o objetivo de saírem
do salão para brincarem no pátio, denotou algumas relações
estabelecidas entre as mesmas. Júlia e Marcela demonstraram insatisfação
em estarem sentadas realizando o lanche coletivo, enquanto Pedro convocou
o grupo para escaparem do ritual, seguido de Marcela que (re)afirmou as
orientações do colega. As crianças, mesmo habituadas
à organização dos rituais em etapas sucessivas de
curta duração, através do qual o tempo é segmentado
em momentos de abertura, apresentações, lanches e brincadeiras,
resistiram e procuraram (re)configurar a organização do
ritual.
O deslocamento do menino para conversar com os colegas de outro grupo,
o plano discutido pelas crianças e a combinação que
a professora fez com as mesmas para irem ao pátio após a
festa podem ser vistos como movimentos de resistência, ilustrativos
da luta perpétua e multiforme que permeia as relações
de poder entre os indivíduos nas instituições de
seqüestro. Foucault (2003b, p.232) discute as relações
de poder enquanto relações de força que suscitam
necessariamente resistência considerando que:
em toda parte se está em luta – há, a cada instante,
a revolta da criança que põe seu dedo no nariz à
mesa, para aborrecer seus pais, o que é uma rebelião, se
quiserem —, e, a cada instante, se vai da rebelião à
dominação, da dominação à rebelião;
e é toda essa agitação perpétua que eu gostaria
de fazer aparecer.
A partir da contribuição do filósofo, é possível
dizer que a situação desencadeada entre as crianças,
a professora e equipe diretiva evidenciam uma rede de relações
de poder, através das quais existem inúmeros pontos de resistência.
A professora mesmo sabendo o horário marcado para as crianças
brincarem no pátio, combina com a sua turma uma outra forma de
utilização dos espaços abertos da Casa Amarela, pois
percebe a insatisfação das crianças. Ao mesmo tempo
em que combina com sua turma, é submetida à interferência
da equipe diretiva que não permite a operacionalização
do planejado.
Todos os indivíduos na instituição estão submetidos
a uma contínua vigilância, independente das posições
que ocupam na rede de relações de poder da qual fazem parte.
Em relação às crianças, a partir do diálogo
transcrito, pode-se perceber que elas sabiam que estavam submetidas à
vigilância das funcionárias, pois Henrique enunciou: “se
vocês levantarem, as tias vão contar para professora”
(Diário de Campo). É interessante salientar que este exercício
olhar contínuo faz com que as crianças iniciem um processo
de interiorização da própria transparência,
passando a observarem-se a si mesmas e aos outros. A equipe diretiva,
ao explicar para professora que ficaria “de olho nas crianças"
(Diário de Campo), (re)afirma o princípio de vigilância
a que as crianças estão submetidas. Para Narodowski (2001,
p.109), estes olhares são produtores, onipotentes, capazes de controle
na proximidade e na distancia, “discreto às vezes, direto
outras, sempre presentes na produção de toda atividade escolar
que se pretende satisfatória”. Retomando as discussões
empreendidas por Foucault (1979; 1987; 2003a), pode-se afirmar, que através
destes “olhares” que operacionalizam o processo de vigilância,
o aluno se força à aplicação, o louco à
calma, o operário ao trabalho e o criminoso à retidão
de comportamento. Emprega-se, dessa forma, a transferência do fardo
coercitivo da disciplina, através das relações de
poder que a empregam para os próprios indivíduos que são
por ela atingidos, como efeito do poder disciplinar.
Levando em consideração as discussões desenvolvidas
nesta seção a respeito dos objetivos dos rituais comemorativos,
assim como as resistências operadas por professoras e crianças
na instituição, apresento a seguir a Festa da Família.
Tal evento evidencia a vontade de poder e de saber da instituição
em relação ao conhecimento da família para o estabelecimento
e/ou fortalecimento de uma aliança.
Festa da
Família
A festa
da família é uma comemoração recente na Casa
Amarela, tendo sido realizada pela primeira vez em 2003. Tal evento foi
(re)inventado a partir da Festa dos Pais e da Festa das Mães, devido
às "novas" configurações familiares das
crianças que freqüentam a instituição. A equipe
diretiva, professoras e funcionárias perceberam a ausência
dos pais e das mães nos eventos que eram realizados para homenageá-los,
mas não sabiam os motivos pelos quais essa situação
se repetia durante as reedições das festas. No intuito de
redimensionar os eventos citados, através da participação
do maior número de famílias possível, a equipe de
profissionais da instituição decidiu realizar uma pesquisa
com os responsáveis das crianças para averiguar a porcentagem
das que viviam com seus pais e mães biológicos.
Após a leitura dos questionários enviados às famílias,
a equipe diretiva realizou a análise dos dados e destacou a existência
de dois grupos. O primeiro se referia às crianças que moravam
com os avós, tios, padrinhos, que possuíam a tutela dos
mesmos através de medida judicial. O segundo grupo se subdividia
entre as crianças que viviam com as mães (biológicas)
sem a presença dos pais e os que viviam com as mesmas, porém
com a presença da figura do padrasto. À medida que realizou
a pesquisa, a instituição evidenciou o seu caráter
eminentemente examinador, constituindo-se como aponta Varela (1996), em
um espaço que busca coordenadas (através da vigilância
hierárquica e sanção normalizadora) para decifrar,
medir, comparar, hierarquizar e normalizar os indivíduos.
A partir da estratégia descrita, é possível destacar
que existe uma urgência da escola em conhecer no “detalhe”
a vida dos pais e crianças, para assim melhor governá-los.
A esse respeito, Klaus (2004) ressalta que o conhecimento do histórico
da vida das crianças pode ser considerado um dos elementos importantes
para o estabelecimento de uma aliança com as famílias, para
que os corpos infantis que são recebidos pela escola possam se
tornar “educados”. Neste sentido, a família e a escola
podem ser consideradas como dois lugares diferenciados que foram fabricados
e legitimados pela sociedade, estando ambos envolvidos no processo de
governamento dos indivíduos e da população.
Estas histórias que são capturadas pela escola, entre as
quais destaco neste momento as configurações familiares,
são avalizadas pelas vozes das pedagogas (e demais profissionais)
que conhecem se “intrometem” e dissecam as condutas das crianças,
reafirmando o caráter disciplinar da Pedagogia. Justificam-se,
assim, as afirmações de Narodowski (2001, p.56) de que “há
vários séculos a pedagogia moderna exerce um poder capaz
de construir saberes sobre a infância e de promover na infância
determinados saberes”. Essa “via de mão-dupla”
se torna possível através da produtiva aliança que
se estabelece entre a família e a escola. É interessante
ressaltar que esta aliança se operacionaliza enunciando que é
preciso que todas as famílias entreguem e confiem seus/suas filhos/as
para escola, pois a instituição terá a tarefa de
educar as crianças no conhecimento de todas as coisas.
A partir das discussões empreendidas, partilho as informações
a respeito da Festa da Família, através dos comentários
de uma professora:
Antigamente, a festa da família não existia. Nós
tínhamos a Festa das Mães e a Festa dos Pais. Após
a realização das festas, quando fazíamos a avaliação
e o relatório nos sentíamos frustradas. Na festa dos pais,
não vinha quase ninguém, pois a maioria de nossas crianças
não moram com o pai biológico e muitas nem mesmo com as
mães. Os padrastos nunca se interessam por este tipo de comemoração.
A festa das mães tinha um número maior de participantes,
mas não era nem perto do que havíamos planejado. O número
reduzido de mães se justificava pelo fato de muitas crianças
serem criadas pelos parentes próximos que têm a sua tutela.
Essas pessoas não se sentiam à vontade de vir a uma festa
dedicada às mães. Após muito assistirmos a estes
episódios, fizemos uma pesquisa de campo e tivemos a idéia
de criar a Festa da Família. Com essa comemoração,
ampliamos o convite para todas as pessoas que convivem com as crianças
em sua casa. Essa primeira edição da festa está sendo
um sucesso como você mesmo está podendo observar. O nosso
grande objetivo com essa festa, além de desenvolver nas crianças
os valores morais, é o de aproximar as famílias da escola.
As famílias têm que se sentir acolhidas, parceiras, participantes
da escola para obtermos melhores resultados (Diário de Campo, 19/12/03).
A partir
da leitura do comentário, é importante destacar o objetivo
do evento, que, nas palavras da docente, é o de “aproximar
as famílias da escola”. À proporção
que se estreitam os laços entre as famílias e a escola,
as mesmas passam a se sentir “acolhidas, parceiras, participantes
da instituição” para obtenção de melhores
resultados em relação à educação das
crianças. Pode-se dizer, portanto, que a instituição
percebe a (re)configuração das famílias e elabora
novas estratégias de “captura” das mesmas, através
da ampliação do convite que é realizado para festa.
Dessa forma, o convite é endereçado para os/as responsáveis
pelas crianças, pois na ausência dos pais (biológicos),
estes, enquanto provedores, têm a tarefa de “revelar”
para instituição detalhes “iluminadores” do
presente e passado de seus/suas tutelados/as. Constitui-se e/ou se fortalece,
assim, uma aliança que garante a normalização do
passado dos adultos e crianças, por meio da categorização
de suas condutas e regras de civilidade que são tomadas como referencia
no espaço educativo.
Sendo assim, trago a seguir a transcrição (de um fragmento)
de uma gravação realizada na turma do Pré A durante
a preparação das crianças para apresentação
aos pais.
Professora: Vamos vestir as roupas para ficarmos bonitos.
Mãe: Professora, eu não tinha uma camisa de homem lá
em casa, consegui uma com meu vizinho. Posso colocar nele?
Professora: Claro que pode. Ele vai ficar um pai lindo, mas deve ser sério
e comportado.
(Duas crianças começam a brigar por uma bolsa)
Professora: Eu já pedi para vocês duas encerrarem as discussões.
Como que duas mães vão ficar brigando.
Carlos: É mesmo. As duas nem parecem gente grande.
Júlia: Eu sou pequena mesmo.
Marcela: Eu não sou mãe de ninguém.
Professora: Agora fiquem calmas e sentem com seus colegas.
Mãe: Professora, posso arrumar os casais?
Professora: Pode começar a organizar por tamanho. Nada de esposa
alta e marido pequeno.
(As crianças são organizadas em duplas pela mãe.
Entra uma representante da equipe na sala de aula).
Equipe: Como vocês estão lindos! Professora, você viu
as crianças? Aqui na sala nós temos somente adultos, homens
e mulheres de família.
Tal diálogo é ilustrativo para retomarmos as discussões
empreendidas anteriormente a respeito do processo de individualização,
a que são submetidas as crianças a partir de uma visão
adultocêntrica sobre as mesmas. Embora a utilização
das roupas dos pais, seja o figurino escolhido para realização
da apresentação, pode-se dizer que o comportamento das crianças
é posicionado em relação à figura dos adultos.
À medida que as vozes enunciam: “Como duas mães vão
ficar brigando?”; “Professora você viu as crianças”?
"Ele vai ficar um pai lindo, mas deve ser sério e comportado";
o adulto é tomado como referência (exemplo) em relação
às crianças. Portanto, podem-se considerar estes enunciados
como mecanismos (disciplinares) que operam no sentido de serem internalizados
nas crianças, para que estas passem a agir segundo aquilo que nós
adultos acreditamos (ou que nos fazem acreditar) estar dentro da norma.
A partir das discussões empreendidas a respeito da pesquisa realizada
com as famílias, com vistas ao “fortalecimento” do
princípio de aliança e o posicionamento a que são
submetidas as crianças em relação aos adultos, considero
relevante descrever o funcionamento (usos e costumes) da primeira edição
ritual da Família. Tal evento foi organizado pelas professoras,
educadoras, funcionárias e crianças. Através da repartição
das tarefas, assim como do tempo empreendido nas mesmas e na distribuição
dos respectivos espaços que seriam ocupados, o procedimento disciplinar
permitiu a utilização particular e combinatória dos
indivíduos com vistas a uma arte das distribuições
marcada pela precisão das posições.
As funcionárias ficaram encarregadas da limpeza do salão
e preparação de doces e salgados para serem servidos aos/as
convidados/as. A atribuição das educadoras foi de decorar
a escola com balões e painéis com fotos das crianças
e de suas respectivas famílias. As professoras escreveram mensagens
para os pais em cartazes e ilustraram com recortes (fotos) de famílias
que apareciam em revistas e jornais, enquanto as crianças pintaram
telas em homenagem aos/as convidados/as. Os cartazes enunciavam: “Educar
é um gesto de amor”; “Família e escola: uma
parceria a serviço da vida”; “Todos nós somos
uma família”; “Os verdadeiros pais são aqueles
que educam”; “Você já abraçou seu filho
hoje?"; "A criança amada será um adulto feliz";
entre outras mensagens. Em cada um destes enunciados, é possível
perceber uma pedagogização da família, através
do valor atribuído a ela enquanto um lugar de disciplinamento e
normalização, assim como a importância de que esta
cumpra a sua missão de provedora das crianças e aliada da
escola. Os enunciados das mensagens foram reafirmados a partir das imagens
selecionadas para ilustração dos mesmos. Famílias
brancas, nucleares, heterossexuais, fotografadas pelas revistas Caras,
Chiques e Famosos, Contigo e Cláudia, ilustravam os cartazes.
A equipe diretiva fez a abertura da festa homenageando os familiares com
a leitura da Oração pela família , e logo em seguida
as crianças cantaram a oração vestidas com roupas
de seus/suas familiares. Destaco a possibilidade de apontar a existência
de uma dissonância entre a família narrada pela oração/música,
elaborada pela igreja católica e a da “campanha” realizada
pela escola. Embora tenha sido realizado um redimensionamento da festa
a partir dos dados obtidos com a pesquisa, através da ampliação
do convite a todos os familiares das crianças, é possível
dizer que a letra da canção apresenta uma referência
de família pautada em uma matriz cristã, branca, masculina
e heterossexual.
Ao término da apresentação, as crianças foram
posicionadas em um círculo (de acordo com as suas respectivas turmas
e professoras). Os familiares foram convidados a sentarem-se ao lado de
seus/suas filhos/as para aguardarem a merenda. As professoras e funcionárias
serviram os doces e salgados para as crianças e pais e, logo em
seguida, serviram-se juntamente com a equipe diretiva. No encerramento
do evento, as famílias foram homenageadas com telas pintadas pelas
crianças, sendo que algumas foram convidadas a agendarem na secretaria
um horário de atendimento com a professora. A estratégia
de agendamento do atendimento com a professora se justifica no relato
de uma educadora que informa:
Temos que aproveitar estes momentos de envolvimento dos familiares, para
agendar nossos atendimentos individuais. Precisamos conversar sobre algumas
crianças da turma que você está realizando a observação.
Realmente são casos sérios. Estamos fazendo a nossa parte,
mas eles (os pais) têm que colaborar. Afinal, o motivo de nossa
festa é o de estabelecer uma parceria com os responsáveis
pelas crianças (Diário de Campo, 19/12/03).
Conforme salientei no início da seção, destaca-se
uma urgência de a escola desvendar, junto aos familiares, dados
relativos às crianças, para — assim — operar
com estratégias de normalização sob as condutas consideradas
“desviantes”. À proporção que as crianças
são transformadas em “casos sérios” (através
da operação do exame) a instituição demonstra
a sua necessidade inelutável de integrar, corrigir e governar os
infantis. Em nome do “estabelecimento da parceria” com os
pais, será possível fazer diagnósticos das emoções,
capacidades e inteligências das crianças, saber detalhes
sobre a vida familiar, conquistando, assim, a confiança dos pais
e crianças para que confiem seus desejos, angústias e ilusões.
Dessa forma, é preciso levar em consideração que
as estratégias utilizadas pela instituição, para
melhor conduzir as ações dos adultos e crianças que
circulam em seus espaços, não devem ser consideradas intencionais,
mas emergentes da rede de relações de poder nas quais os
embates cotidianos são travados.
Portanto, através das discussões apresentadas no capítulo,
procurei descrever cenas do funcionamento dos rituais comemorativos desenvolvidos
na Escola Infantil, no intuito de evidenciar que estes extrapolam suas
finalidades aparentemente precisas e incidem no disciplinamento dos corpos
dos indivíduos. Neste sentido, durante a realização
dos rituais, pais, professoras, funcionários, equipe e crianças
estão submetidos e se submetem ao controle uns dos outros, através
do poder disciplinar (anônimo e funcional) que se faz presente na
ação de seus operadores (vigilância hierárquica,
sanção normalizadora e exame).
Ouso dizer que tais rituais formam uma rede de normas, valores e proibições
cujo intento é a produção de sujeitos pedagógicos
e, por outro lado, a normalização da conduta das profissionais
que atuam junto às crianças, tendo em vista o que se considera
como sendo uma “boa” professora, educadora, funcionária,
diretora. É importante ressaltar que, nesse “jogo”
praticado pela escola de Educação Infantil, as famílias
também se encontram nesta rede de relações de poder,
disciplinando (e sendo disciplinadas) através das práticas
que as nomeiam e as condicionam a se relacionarem consigo mesmas e com
os outros a partir de saberes entendidos como verdadeiros.
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