Karin Casarin – Unesp - Instituto de Biociências
- Rio Claro
Introdução
Nas últimas décadas, as escolas de educação
infantil têm acentuado o trabalho relativo à alfabetização.
Com a divulgação da proposta construtivista, há a
percepção de que esse trabalho pode ser desenvolvido de
modo mais compatível com as características cognitivas de
sua clientela.
A didática tradicional envolve procedimentos muito diferentes dos
compatíveis com o construtivismo. A abordagem construtivista, exige
dos professores conhecimentos teóricos e a compreensão das
decorrências pedagógicas das diferentes opções
epistemológicas subjacentes ao ensino. Porém, a grande produção
de saberes relacionados ao ensino da escrita e da leitura, por vezes ocasiona
dificuldades na construção de uma visão de conjunto
e em seu aproveitamento na prática pedagógica, não
raro, pelo fato de que “hoje os professores não dispõem
de tantas certezas como antes, sobretudo, quando as explicações
teóricas mais divulgadas focalizam o desenvolvimento do conhecimento
infantil, sem a contrapartida do ensino”. (MICOTTI, 2001, p.14)
O confronto entre as abordagens construtivista e tradicional, e, de seus
fundamentos epistemológicos, mostra a grande diferença entre
elas que devem ser expressas na prática dos professores.
Os diversos fatores que mobilizam e influenciam a ação docente
diariamente na sala de aula é identificado por Tardif (2002, p.18)
como saberes da formação docente, os quais “estão
longe de serem produzidos por eles mesmos ou de se originarem no trabalho
cotidiano”. Portanto, o saber do professor é um saber plural
e temporal, pois envolve vários conhecimentos e um saber-fazer
diverso dentro de um dado contexto, ambos de origem social, ou seja, alguns
deles provem das escolas de formação acadêmica, outros
das escolas em que os professores foram formados, de sua família
e da cultura pessoal, outros ainda estão ligados às instituições
em que trabalham (princípios pedagógicos, objetivos, regras...),
dos cursos de reciclagem que freqüentam, dos pares, entre outros.
Nesse ínterim, percebe-se então, que a construção
de conhecimento sobre o trabalho pedagógico não se reduz
somente à prática de sala de aula.
Sobre o processo de implantação do construtivismo vale lembrar
que entre os saberes utilizados pelos professores no exercício
da profissão distinguem-se os conhecimentos da experiência,
podendo ser influenciados ou não pelos demais saberes. Sobre essa
questão, Tardif (2002, p.48) afirma, com base em suas pesquisas
com professores, que a partir dos saberes adquiridos através da
experiência profissional, o professor julga “a pertinência
ou o realismo das reformas introduzidas nos programas ou nos métodos”,
como também, “produz ou tenta produzir saberes através
dos quais ele compreende e domina sua prática”.
Evidenciando-se assim, que a aplicação de um novo método
de ensino ou aceitação de mudança didática
pelo professor, depende dos conhecimentos que os professores dominam e
de suas experiências prático-pedagógica.
Apesar do reconhecimento da importância dos conhecimentos práticos,
principalmente como condição para a aquisição
do saber pessoal, não se pode perder de vista a importância
dos referenciais teóricos para a atuação prática,
os quais tem o papel de guiar a ação docente ao invés
de determiná-la, pois não se trata de manuais para executar
receitas e instruções estereotipadas, mas de um instrumento
poderoso para a reflexão e a ação sobre a realidade.
Becker (2004, p.52-57), a partir de seus estudos sobre a formação
de professores, gênese e o desenvolvimento do conhecimento, aponta:
“Como pode um professor transformar os processos didático-pedagógicos,
pelos quais é responsável, se continua a pensar os processos
de desenvolvimento do conhecimento e da aprendizagem dentro dos limites
do senso comum?”.
A prática por si só não gera conhecimento, apenas
uma estagnação a nível de senso comum, nesta perspectiva,
”uma pessoa pode atravessar sua vida repetindo tarefas práticas,
com grande habilidade, mas sem mostrar progresso significativo no conhecimento”,
o que denota a fugacidade da prática pela prática.
Em situação de efervescência da proposta construtivista
nos meios escolares, o processo de incorporação de tal teoria
pelo professorado ganha relevância, visto que envolve a relação
entre diversos saberes práticos e teóricos.
Para o interessado em educação infantil a questão
que se coloca é a de saber como se dá a interpretação
das idéias construtivistas na prática pedagógica
neste segmento da educação que atende crianças com
características cognitivas específicas, o que propõe
para o ensino a necessidade de cuidados particulares com referência
à construção da escrita.
A pesquisa
Esta investigação visa a averiguar em que
consistem as práticas pedagógicas utilizadas pelos professores
de educação infantil para desenvolver o trabalho referente
a alfabetização; visa também averiguar em que consistem
as representações que os professores apresentam a respeito
deste trabalho; visa ainda identificar as tendências pedagógicas
predominantes no trabalho docente e nas representações desse
trabalho.
Considerando que no ano de 2004, havia 86 classes de pré III nas
escolas municipais de educação infantil na cidade de Rio
Claro, trabalhou-se com 10% dos professores dessas classes, selecionados
aleatoriamente, através da tabela dos números randomicos
de Fisher e Yates (1957).
Primeiramente, optou-se por fazer as observações, com roteiro,
do trabalho realizado pelos professores que compõem a amostra,
e, somente após finalizadas todas as observações
inicio-se as entrevistas, semi-estruturadas, sobre o trabalho com a alfabetização
(como aquisição da leitura e da escrita), para tanto, utilizou-se
o auxílio do rádio gravador.
Os procedimentos das professoras sobre o trabalho que desenvolvem em classes
de pré-III com referencia a alfabetização são
comparados com as manifestações que colocam em prática
em suas aulas e interpretados considerando-se as orientações
pedagógicas predominantes.
Neste Trabalho serão examinadas as manifestações
de duas professoras de pré III que lecionam em escolas diferentes,
tendo em comum a experiência do trabalho em classes de pré
III; cursado o magistério no ensino médio e estarem cursando
no momento da pesquisa a Pedagogia cidadã (trata-se de um curso
de Licenciatura (nível superior) para a formação
de professores de educação Infantil e ensino fundamental
(série iniciais), com duração de 2 anos, destinado
a professores da rede pública que não têm o ensino
superior). Aqui será analisado, principalmente, o trabalho referente
a escrita infantil.
ANÁLISE E CONFRONTO ENTRE A PRÁTICA E A REPRESENTAÇÃO
As observações em sala de aula ocorreram,
dependendo das situações encontradas, de duas à cinco
vezes em cada sala de aula, isto é, as observações
se repetiram, pois o interesse maior era captar momentos que envolvessem
a leitura e a escrita.
A seguir são apresentados uma análise dos dados obtidos
nas observações das práticas pedagógicas,
realizadas em sala de aula, e a representação do trabalho
pedagógico obtido através das entrevistas, de duas professoras.
Professora R
Através da observação de sala de aula pode-se constatar
os seguintes procedimentos: trabalho com a seqüência das letras
do alfabeto, cópia de palavras da lousa, letras e palavras circuladas
em textos, escrita espontânea de palavras e trabalho individual.
A representação oral em relação à prática
aparece contraditória no que diz respeito à maneira de trabalhar
a escrita, em que a professora R diz: “[...] a criança, ela
aprende muito mais tirando do todo por partes do que você dá
as partes para ir para o todo, eu sempre acreditei nisso, não sei,
e comigo funciona, eu prefiro dar assim, dar um texto e a criança
explorar um texto, ir tirando as palavras e letras e ir explorando aquilo,
do que você ficar assim, a não eu vou ensinar o ba, be, bi,
bo, bu, aí depois você entra em algum texto, eu acho que
fica muito aquela coisinha tradicional”. A contradição
aparece na própria fala, no momento em que ela não reconhece
sua prática como tradicional, quando pressupõe que tirar
letras ou palavras de um texto, significa outra concepção,
que não a tradicional, além do mais, sua fala também
contradiz a prática, pois o trabalho com a seqüência
do alfabeto trata-se de procedimentos isolados.
Apesar desta contradições, tanto a prática como sua
representação, refletem uma epistemologia empírica
em vários aspectos, como o fato de tirar letras ou palavras de
textos, previamente definida pelo professor, revisar o alfabeto, como
também, copiar da lousa palavras, sem uma utilidade precisa, significa
transformar a linguagem escrita em objeto de aprendizagem escolar, pois,
não há utilidade para a comunicação, mas um
fim em si mesmas, servindo apenas para a cópia e arquivo no caderno.
Por outro lado, o fato de inserir textos antes que a criança domine
o código, corresponde a um dos aspectos do construtivismo, mas
os procedimentos adotados distanciam-se dele. Outro aspecto da didática
de inovação é o trabalho com a escrita espontânea,
porém pode-se perceber que ela é escassa e restrita a produção
de palavras.
Pode-se identificar justaposições de concepções
de ensino, ainda que em fragmentos.
Vê-se aqui uma professora que conduz a classe, propõe tarefas,
mantém a disciplina e as crianças ocupadas e que representa
sua prática confusamente apoiada na cotidianeidade da sala de aula.
A teoria em sua fala não aparece, o que aparece é a afirmação
da certeza adquirida pela prática como uma justificativa para a
fala. Este saber docente é empírico, baseado na regularidade
do cotidiano, ou seja, no senso comum.
Além do mais, o excesso de exemplos da professora indica que ela
procura justificar sua fala através da prática, denotando
que não há uma fundamentação teórica
no seu trabalho
Professora L
Algumas idéias construtivistas estão expressos
no discurso e na prática desta professora, como por exemplo: produção
de listas, reprodução e produção de textos
orais e escritos pela criança tanto em grupo, em duplas, como individual,
escrita espontânea de palavras e textos com a possibilidade de confronto
com o escrito real e o trabalho com diferentes tipos de textos.
Na escolha dos textos para trabalhar em sala de aula buscava-se adequação
a datas comemorativas, porém as situações de escrita
não perfazem situações cujo a função
social do texto fosse privilegiada, transformando a escrita em objeto
de aprendizagem escolar.
A professora L citou na entrevista um exemplo de atividade de escrita
de texto em duplas, em que uma criança canta a música e
a outra escreve, nesse momento elas vão confrontando suas hipóteses
e em outro momento elas revêem o texto original. Apesar de ser importante
o trabalho em dupla e a escrita espontânea de um texto, por outro
lado, esta atividade está reforçando alguns aspectos do
ensino tradicional, como a acentuação da correspondência
entre o oral e o escrito, e a escrita independente de uma situação
de comunicação, de modo que a atividade apresenta um fim
em si mesma, aspectos privilegiados na didática tradicional. Pode-se
constatar justaposições de concepções de ensino
não percebidas pela professora.
CONCLUSÕES DA PESQUISA
Através das observações das práticas
realizadas pelas professoras, em sala de aula, é possível
inferir que essas práticas não correspondem em sua totalidade
ao ensino tradicional.
Tendo como base o primeiro objetivo deste trabalho, averiguar em que consistem
as práticas pedagógicas utilizadas pelos professores de
educação infantil para desenvolver o trabalho referente
a alfabetização, constatou-se a ocorrência da introdução
de alguns procedimentos inovadores ao ensino tradicional na prática
das duas professoras. A inovação referida, trata-se da aplicação
de algumas idéias construtivistas, ainda que fragmentadas e submetidas
a interpretações equivocadas.
Sobre o trabalho relativo a construção da escrita infantil,
as professoras R e L apresentam procedimentos opostos. Analisando a prática
da professora R pode-se identificar justaposições de concepções
de ensino, com forte predomínio da abordagem tradicional, em contraste,
a professora L, apesar de justaposições de concepções,
apresentou muitos aspectos do construtivismo, denotando maior superação
da didática tradicional.
As descrições das práticas observadas na sala da
professora R revelam que no todo, as atividades de escrita e leitura,
apesar de conter aspectos da didática de inovação
como a inserção de textos, os procedimentos decorrentes
adotados distanciaram-se da proposta de inovação, na medida
em que consistia numa versão tradicional da proposta, ou seja,
as atividades propostas são transformadas em objeto de aprendizagem
escolar por estarem ligadas a procedimentos com um fim em si mesmos, seguindo
padrões previamente determinados pelo professor, desvinculadas
de situações de comunicação ou da função
social da escrita que caracteriza o construtivismo.
As aplicações de idéias construtivistas observadas
na sala da professora L foram: a tentativa de tornar o trabalho mais significativo
para as crianças com a inserção da escrita em trabalhos
referentes a datas comemorativas ou projetos; o trabalho em grupo ou duplas;
o ditado de um texto ao professor para grafa-lo na lousa; a valorização
da escrita infantil e a possibilidade de submetê-la a um confronto
com a escrita convencional e o trabalho com textos anterior ao domínio
do código. Porém, os procedimentos decorrentes adotados,
por vezes, distanciaram-se da proposta de inovação, na medida
em que consistia numa versão tradicional da proposta.
Sobre o segundo objetivo deste trabalho, averiguar em que consistem as
representações que os professores apresentam a respeito
do seu trabalho, as duas professoras amostrais não apresentam a
opção epistemológica correspondente ao seu trabalho
nas representações orais, porém pode-se identificar
na fala das entrevistadas, a mistura de várias concepções
pedagógicas, que no caso da professora R, muitas vezes, não
correspondiam com a prática. De modo geral, a comparação
entre a fala do professor e as observações em sala de aula
denota uma compreensão parcial e fragmentada da própria
prática pedagógica, principalmente no que concerne as concepções
pedagógicas subjacente à ela.
Por outro lado, à partir da omissão da fundamentação
teórica na fala das professoras e os excessivos exemplos práticos
para justificar o discurso, pode-se inferir que o saber docente está
atrelado às experiências práticas, revelando a falta
de entrosamento entre a prática e a teoria.
Esta pesquisa vem a confirmar o que assinala Tardif (2002) sobre o fato
da aceitação de mudança didática pelo professor
depende dos conhecimentos que os professores dominam e de suas experiências
prático pedagógica.
Entretanto, a vida cotidiana sem o contraponto do conhecimento científico,
na profissão professor e também em muitas outras, é
a que mais se presta à alienação, ou seja, a um “fazer
sem o compreender”. Portanto, parece que a professora R não
têm esta idéia muito clara, pautando seu trabalho na experiência
e no senso comum. Mas já a professora L, embora não expôs
uma opção epistemológica, pode-se perceber uma melhor
interação com a proposta construtivista, quando ela escapa
das atividades triviais do ensino tradicional, que seria a cópia
sem sentido, o trabalho com a seqüência do alfabeto entre outras,
e apresenta uma visão mais abrangente da alfabetização.
As manifestações sobre os procedimentos relativos à
escrita infantil revelam uma concepção restrita de alfabetização
por parte da professora R, pois apesar de trabalhar escassamente com a
escrita espontânea, a escrita pela criança compreende somente
a escrita de palavras e não de textos. Embora proporcione o contato
com textos os procedimentos adotados correspondem a didática tradicional.
Através das análises das manifestações e dos
discursos das duas professoras, evidenciou-se que há um grande
número de saberes necessários à prática de
alfabetização em educação infantil que a professora
R não domina, ao contrário da professora L que demonstrou
avanço em relação as idéias construtivistas.
Considerando o terceiro objetivo deste trabalho, identificar as tendências
pedagógicas predominantes no trabalho e nas representações
das professoras, percebeu-se que não há a ocorrência
de uma tendência, mas a mistura de várias concepções
pedagógicas.
REFERÊNCIAS
BECKER, F. Tempo de aprendizagem, tempo de desenvolvimento,
tempo de gênese. In: MOLL. J. Ciclos na escola, tempos na vida:
criando possibilidades. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 41 – 64.
FISHER, R.A.; YATES, F. Statistical tables. London: Oliver and Boyd, 1957.
MICOTTI, M.C.O. Os professores perguntam. In: MICOTTI, M.C.O. (Org.).
Alfabetização: entre o dizer e o fazer. Rio Claro: Instituto
de Biociências – UNESP, 2001. p. 18 -22.
TARDIF, M. Os professores diante do saber: esboço de uma problemática
do saber docente. In:______ Saberes docentes e formação
profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 9 – 55.