Irene Zanette de Castañeda* - UFSCAr
Este trabalho intenta relacionar linguagem e memória
da população remanescente do meio rural que migrou para
o centro urbano da cidade de São Carlos. Optou-se, metodologicamente,
pelo conceito antropológico de cultura, definida por Lévi-Strauss
(2003, p. 61) “como um sistema simbólico que é uma
criação acumulativa da mente humana”.
Assim, o homem vindo da fazenda adapta-se biologicamente, mas seu processo
de construção de uma nova cultura é muito lento.
Os mais velhos, por exemplo, continuam mantendo sua forma de pensar, sua
religião, sua ideologia, seus valores, tais como tinham na fazenda.
As novas gerações, no entanto, vão se adaptando às
novas tendências e esquecendo-se, gradativamente, daquilo que lhes
foi passado pelos pais, sobretudo, avós. Nesse sentido, Keessing
refere-se às teorias que consideram cultura como um sistema adaptativo.
Serão feitas, aqui, considerações a respeito de textos,
narrativas orais consideradas Literatura Oral, coletadas em São
Carlos nas décadas de 1980 e 1990, que representam resquícios
dessa memória construída nas grandes fazendas e que chegaram
à cidade paralelamente ao avanço do progresso industrial.
Uma vez na cidade, os trabalhadores tinham de se adaptar às novas
tendências econômicas, ao novo estilo de trabalho, às
novas tecnologias, enfim, a uma nova forma de pensar. Isso proporcionou
conflitos às novas gerações. As narrativas aqui apresentadas
falam, em sua maioria, de problemas relacionados às mulheres, as
maiores vítimas do novo sistema urbano. Eram elas que sabiam lavar,
passar, plantar, colher, carpir e agora tinham de trabalhar nas fábricas,
com gente de todo tipo e de todo pensamento. Esse tipo de convívio
levava ora ao “bom caminho, ora ao mau caminho”.
Os pais, desesperados, procuravam, no afã de conservar os valores
da família, contar histórias às vezes de horror,
cuja personagem marcante quase sempre era o Diabo, que tinha o papel de
levar as moças ou moços para o Inferno, certas vezes ainda
vivos.
Essa literatura oral popular deve ser entendida não como cultura
de massa, mas como cultura natural, simples, ingênua, enraizada
na tradição, livre das regras clássicas. Sua análise
tem como base alguns elementos da semiótica greimasiana. Também
servem como referência as Formas Simples de André Jolles.
A intenção é mostrar as relações entre
a conservação do passado e a sua articulação
com o presente, por meio da linguagem própria do povo citadino
proveniente do meio rural.
São Carlos é uma cidade interiorana, localizada no centro
do Estado de São Paulo. Foi fundada em 1857, a partir de um rancho
de tropeiros viajantes que passavam por ele em direção ao
ouro das Minas Gerais e que provavelmente trouxeram histórias de
seus ancestrais que permanecem ainda na mente dos mais velhos. Uma cidade
que teve muitos imigrantes portugueses e italianos que formaram grandes
fazendas, como a do Pinhal, patrimônio Histórico, além
de escravos negros e índios, estes quase todos dizimados. O lugarejo
de ranchos rodeava uma capela, hoje Catedral .
Ao tratar dos contos, procurou-se verificar a importância do desenvolvimento
da intuição e imaginação enquanto processos
humanos construtivos do imaginário não apenas individual,
mas coletivo.
*Professora de Literatura da Universidade Federal de São
Carlos
Ressalta-se que são contos anônimos, recolhidos por meio
de gravações de pessoas idosas que rememoraram histórias
de seus avós, e assim por diante. E foram registrados conforme
a oralidade dos contadores.
Quanto aos índios, foram dizimados da região ou fugiram
para as floretas. Deixaram uma rica herança toponímica (Araraquara,
Tietê, Moji, Jaboticabal, etc.).
Em relação aos contos, constata-se um imaginário
que sempre tentou explicar as razões para os desastres familiares
e para o destino dos filhos desobedientes. Para contarem suas histórias,
utilizavam-se do elemento fantástico, de modo que deixavam o ouvinte
na incerteza, na hesitação daquilo que lhes era contado.
Embora sejam contos simples, longe do tratamento aristotélico,
são formas artísticas. Percebe-se, ainda, que os contos
não são neutros, incorporam valores muito bem recriados
pelo sábio contador. Assim, as pessoas são boas ou más
segundo satisfazem, obedecem a um padrão familiar tradicional estabelecido
pelo chefe, que, por sua vez, embute um padrão maior, ou seja,
o da Igreja.
. No desfecho, quando trágico, a moral ingênua é satisfeita,
visto que os desvalores como egoísmo, mentira, indiferença,
teimosia, injustiça são eliminados com a morte ou o desaparecimento
das “personagens portadoras dos desvalores”. Esse fato parece
uma inovação, uma revelação de rebeldia das
personagens, sobretudo das novas gerações, contra aqueles
valores tradicionalmente marcados, com conseqüente busca da liberdade,
mesmo cultuando a morte. Assim, empresta-se de André Jolles a fórmula:
“o que deve ser não pode ser ou o que não pode ser
deve ser”. A maioria dos contos de São Carlos apresenta,
de certo modo, um caráter educativo informal significativo, cujo
poder de ação sobre o imaginário popular é
extremamente importante. Às vezes há sobreposição
do valor pedagógico ao imaginário.
Os contos coletados e aqui presentes expressam um forte dialogismo entre
as formas simples das diferentes literaturas: portuguesa, italiana e afro-descendente.
Há, em São Carlos, um imperativo de um imaginário
que nunca deixou de dar explicações do mundo, mesmo sendo
recheados do elemento fantástico. Embora sejam ficcionais, implicitam
uma série de valores. Não se pode deixar de considerar que
tais contos têm como marcas a ambigüidade, a alegoria, as metáforas,
porque está sujeito a um tratamento artístico. Cultiva-se
o uso dessacralizado do texto, isto é, sem o padrão aristotélico.
A intertextualidade também é constante, porque presumimos
que os contos têm, de certo modo, uma relação com
os contos de viajantes que traziam histórias de sua localidade
e dos imigrantes que por aqui ficaram.
Vamos expor aqui uma pequena mostra dos contos que analisaremos.
A moça que dançou com o Diabo
Essa é uma história de uma moça que não acreditava
em Deus. Ela falava que nunca tinha visto Deus, então não
acreditava. A sua mãe se benzia quando ela falava assim. O pior
foi que ela fazia aniversário justamente na Sexta-feira Santa.
Pediu e exigiu e teimou que queria uma festa nesse dia. Sua mãe
disse que não, porque era pecado. Mas a moça falava que
pecado não existia, nem que Deus existia, muito menos o Diabo.
Teimou, teimou e fez o baile. Ela dançou muito. À meia-noite
veio um moço muito bonito. Ele disse para ela que era seu admirador.
A moça apaixonou-se à primeira vista. Ela ficou encantada
porque a beleza dele era diferente da dos outros moços. Os outros
quando olhavam para aquele par perfeito e feliz morriam de inveja. Mas,
pra surpresa da moça, a certa altura da noite, o rapaz soltou uma
gargalhada que deu eco no salão e, ao seu redor, apareceu uma fumaça
fedorenta e, no meio dela, ele desapareceu. Dizem que a moça ficou
louca e anda pelas ruas falando sozinha e, além do mais, o moço
era o Diabo porque tinha pés de bode.
A imagem refletida no lago
Em uma fazenda aqui perto da cidade morava uma linda moça. Não
tinha moço que não quisesse se casar com ela, mas ela não
se decidia por ninguém. Sua mania era passear na beira do rio e
do lago. A sua mãe já estava cansada de avisar do perigo,
mas ela não se importava. Num dia ensolarado, ela estava na beira
do rio quando viu sua imagem lá refletida. Depois foi no lago para
continuar vendo sua bela imagem. Sua mãe chamava, chamava, mas
ela não obedecia.. Um dia, lá se foi ela de novo no lago,
só que, desta vez, ao invés de sua bela imagem, viu a imagem
do demônio. Então ela se jogou no lago e morreu afogada.Dizem
que foi morar com o Diabo.
UM CAPITÃO DO MATO ARREPENDIDO
Foi assim: Há algum tempo, quando em São Carlos ainda era
um punhado de ranchos, não havia uma polícia´, e era
o povo quem ditava as leis, apareceu um homem muito temido por todos.
Ele era um capitão do mato que caçava e matava negros fugidos
das fazendas da região para obter algum dinheiro. Invadia os barracos
onde desconfiava que havia negros. Um dia, deparou com uma negra grávida.
Sem demora, foi atirando, justamente na barriga que era para matar mãe
e filho. A mãe morreu, mas para sua surpresa a criança começou
a nascer sozinha,na sua frente. A surpresa foi maior ainda quando viu
duas asas se abrindo no corpinho da criança negra. O malvado viu
um anjinho negro subindo ao céu. Ficou tão atrapalhado que
não sabia o que pensar e o que fazer. Mas sentiu que aquele era
um sinal divino para que ele parasse de cometer tão horrendos crimes
contra os negros. Nunca mais voltou a trabalhar para o fazendeiro. Ao
contrário, a partir daí começou a ajudar os negros
a fugirem.
A moça e o Diabo
Hoje, quem conta muitas histórias são nossos avós.
Eles dizem que os antigos acreditavam mesmo nas histórias que contavam.
E que certas coisas realmente chegavam a acontecer. Eu é que não
quero nunca que aconteça comigo o que aconteceu com a moça
deste conto. Uma certa moça, muito bonita e acostumada a ficar
em casa, porque, segundo seus pais, este era o melhor lugar para uma moça
de bem. Um dia, ela resolveu mudar seu jeito de ser e de viver. Estava
revoltada com a vida e com todos. Então disse para a mãe:
“Vou cortar os meus cabelos, pintar minhas unhas, maquiar este rostinho,
beber e fumar. Vou ao baile, nem que seja para dançar com o Diabo,casar,
ter um filho dele e até ir para o inferno se der”. A mãe,
aterrorizada, repreendeu a filha. “Não fale estas coisas
filha! O Tal pode dizer amém. Uma moça direita tem que ter
os cabelos compridos e nunca pintar as unhas, nem a boca. Pintar unhas,
o rosto, passar batom são coisas que o Tal gosta”. As palavras
da mãe foram jogadas fora. A moça estava mesmo decidida
e assim como falou fez. Já no baile, chegou um moço lindo,
mas lindo mesmo! Sua beleza era tanta que atraía as pessoas a olhar
para ele. A moça, que estava sozinha não conseguia nem piscar.
Só olhava para ele. Não deu outra, o lindo moço tirou
a moça para dançar. E com ela ficou a noite inteirinha.
Entre sorrisos, eles dançaram maravilhosamente. Todos do salão
fizeram um círculo e ficaram olhando o lindo par e batendo palmas.
Quando tocou a última música, ela olhou nos olhos dele e
perguntou:
“– Qual é seu nome? De onde você veio? E o rapaz
respondeu: – Meu nome é Lúcifer. Sou o Diabo mais
bonito do inferno. E vim de lá para buscar você. Esta foi
a última música, o último baile daquele salão”,
porque no meio da fumaça os dois desapareceram. Nunca mais se ouviu
falar na linda moça.
Análise
Estes contos são textos figurativos cujas figuras: “baile”,
“Sexta-feira Santa”, “rapaz de boa aparência”,
“mãe”, “filha”, lago” remetem ao
mundo vivido, enquanto as figuras: “demônio”, “pés
de bode”, “chifres”, “Deus”, “Diabo”
remetem ao mundo sobrenatural. Tais figuras formam uma rede coerente,
uma representação cuja temática subjacente trata,
de um lado, da colocação dos valores tradicionais da família,
que devem ser preservados, e, de outro, os da Igreja: da insubmissão
aos princípios religiosos, da adoção de desvalores
ou valores hedônicos e estéticos da beleza exterior e dos
prazeres deste mundo. O Diabo, embora seja enquadrado em um modelo não
desejado, é sempre testemunho de inquietação ou de
um pânico existencial que escapa ao controle dos pais ou da Instituição.
Ele evoca esse sinistro. Por isso representa uma ameaça. “É
o odiado respeitado.” Figurativiza a luta entre o Bem e o Mal. É
um desafio às convenções sociais até então
impostas. Uma lição para os ouvintes.
Quanto à relação narrador–ouvinte, esses contos
alegóricos também podem ser entendidos como “chavões
ideológicos” da família tradicional e da antiga Igreja
conservadora passados pelo narrador, algumas vezes, inconscientemente.
Por isso, as atitudes das personagens, sobretudo : “moça”,
“mulher”, representam uma subversão aos valores tradicionais
aí implícitos. Portanto, a desobediência aos pais
representa transgressão a esses princípios.Por outro lado,
os pais representam a tradição, a conservação
daqueles valores.
Os contos assemelham-se, de certo modo, quanto à temática,
à ligação da mulher com o Diabo para concretizar
um objetivo. Reminiscências bíblicas. São textos figurativos
e intertextuais. Narram histórias de mulheres que desejam valores
como: casamento (com homens de sua escolha), sexo, dinheiro, filhos e
beleza exterior. São personagens que contrariam a tradição
religiosa. Por meio de uma espécie de rito de passagem, unem-se
sexualmente à entidade demoníaca sobrenatural para realizar
sua ambição.
Essa motivação (o Diabo), na maior parte das vezes, metaforiza
uma relação amorosa, sexual, proibida ou perversa. Sobre
essa figura diabólica tão mencionada nos anticontos, Frazer,
135 afirma que:
[...? no cristianismo medieval, o Diabo constitui uma
ameaça constante à boa ordem da vida humana, circunstância
que exigia exorcismos regulares por parte dos homens. Como personificação
de todos os males, sua aparência terrível vivia a provocar
a repulsa dos homens e suas feições animais refletem o fato
de que os bodes expiatórios tomavam, com freqüência,
a forma de animais.
Como não poderia deixar de ser, o Diabo é
representado nos anticontos como personificação do Mal.
Porém, não é ele quem objetiva a maldade de forma
atuante, não é ele o tentador, mas a mulher. É ela
quem consubstancia o exemplo a não ser seguido, a anti-santa portadora
da desgraça ao desejar um filho do Diabo, por exemplo. Por isso
ela, paradoxalmente, continua viva nas palavras do pai que narra a história
fatídica.
As figuras: “dança com o Diabo”, “ter filho do
Diabo, ” “Imagem refletida no lago” , “desaparecimento
do corpo”; “Anjo mais bonito do Inferno”; Capitão
do mato arrependido, “ Anjinho negro” concretizam os textos
para aclararem o pensamento do ouvinte. As imagens tornam mais fáceis
à compreensão do que se pretende passar. Imagens estas que
também podem induzir o ouvinte mais ingênuo a crer fielmente
na existência da entidade diabólica , à vezes, mulher,
ou a temê-la, vendo na mulher a sua cúmplice. O contador
autoritário, por meio da alegoria, parece pretender preservar o
imobilismo das idéias que veicula. A alegoria, dessa forma, não
permite reflexão, leva apenas a uma crença.. Esse tipo de
manipulação ao amor desinibido passa a ser reprimido e desagrega
em obediência.
De um lado, há valores desejados como: conformismo, pobreza, submissão,
desprendimento, espiritualidade e beleza interior. De outro, desvalores:
estéticos, como beleza exterior; carnais, como sexo; ou materiais,
como dinheiro. Nas narrativas, sexo e dinheiro parecem ter sido fontes
da desgraça do homem. Desvalores relacionados à religião,
à moralidade, à ética, ao respeito aos pais ou ao
marido, ao materialismo devem ser eliminados e com eles o bode expiatório:
a mulher transgressora.
O texto “A imagem refletida no lago” lembra o mito de Narciso
invertido. Os desvalores sugeridos são os da teimosia, da desobediência
e o estético: o valor da beleza exterior visto como sinônimo
da tentação do Diabo, que leva à morte e ao reino
infernal. Além disso, há uma tentativa de encontrar o ideal
do ego. Por outro lado, ver a imagem invertida ou monstruosa não
deixa de ser uma espécie de sublimação ou repulsa
de suas pulsões libidinais primitivas. É importante lembrar,
aqui, as palavras de Adorno quando se refere à separação
que há entre o indivíduo e a sociedade. A moça vê
o seu duplo e não o seu igual. Trata-se de um conflito intrapsíquico.
O narrador mostra-nos, por meio dessas narrativas, que o mundo material
é passageiro e que o castigo ou a morte da mulher transgressora
em tais circunstâncias é o fim do Mal. Enfim, há uma
espécie de condenação ao pacto com o Diabo como personificação
do Mal, aos desvalores relativos à família, aos contra desígnios
cristãos, por isso a tragédia ocorre no final. Enfim, a
idéia de salvar-se pela religião tem exercido um papel importante
na formação da família tradicional. Só o trabalho
do pensamento consciente de si mesmo consegue escapar a esse poder alucinatório
e alienante da manipulação do Poder, seja ele do Pai, do
Estado ou da Igreja , que insistem em andar contra a evolução
do pensamento, à modernização e humanização
do comportamento humano.
Há que se entender o caráter paradoxal dos contos,principalmente
os de São Carlos, pois expressam reminiscências de pessoas
que vieram, sobretudo, de fazendas onde as questões ligadas à
Igreja e à família eram muito importantes e tinham que ser
levados em consideração.Esta era uma forma de educação
informal que dava certo para os nossos avós, pois quem conhece
gente que veio de fazendas mais antigas sabe que estas pessoas são
de muito respeito e honestas. Gente em extinção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AMARAL, Mônica. O Espectro de Narciso na Modernidade. : De Freud
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