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AFETIVIDADE
E COGNIÇÃO NO DESENVOLVIMENTO DO LEITOR
Ana Flavia Alonço Castanho
A formação do leitor é uma das grandes
questões que tem mobilizado a sociedade brasileira nos últimos
anos. Embora o Brasil tenha conseguido diminuir seu índice de analfabetismo
consideravelmente nas duas últimas décadas, ainda persiste
uma situação de exclusão de grande parte dos cidadãos
do domínio da leitura e da escrita. Isso se deve ao fato de que
a alfabetização por si só não é suficiente
para instrumentalizar o indivíduo para os diversos usos e suportes
da escrita e, também, ao fato de que a demanda social de capacidade
de leitura tem crescido ano a ano, devido às características
da vida nas grandes cidades e à presença cada vez maior
da informática e da internet, no trabalho e no cotidiano das pessoas,
dentre outros fatores.
Diante dessa situação a sociedade tem se mobilizado: campanhas
de alfabetização e de leitura têm sido realizadas
tanto pelo governo quanto por organismos da sociedade civil, assim como
a criação de bibliotecas públicas e renovação
de seu acervo; tem sido buscado o estabelecimento de indicadores mais
fiéis da situação da leitura no Brasil (como é
o caso do Índice de Alfabetismo Funcional – INAF, desenvolvido
pelo Instituto Paulo Montenegro) e por parte das universidades observa-se
o crescimento da produção acadêmica no campo da leitura,
através de pesquisas que possibilitem compreender melhor a dinâmica
da formação do leitor.
Este artigo se inscreve nessa última linha de reação,
e tem como objetivo apresentar alguns resultados preliminares da pesquisa
que ora realizamos sobre a influência da afetividade no desenvolvimento
de habilidades de leitura pelo indivíduo. Nosso objetivo, nessa
pesquisa, é estabelecer relações entre o lugar que
a leitura ocupa na hierarquia de valores estabelecida pelo sujeito e o
desenvolvimento, por parte dele, de estratégias mais ou menos elaboradas
para o ato de ler.
Para discutir essa questão é interessante retomar alguns
elementos da teoria psicogenética de Jean Piaget e do trabalho
de Roger Perron sobre as representações de si, marcos importantes
do referencial teórico que nos sustenta:
Sujeito e objeto do conhecimento na teoria piagetiana
O sujeito que a teoria piagetiana nos dá a conhecer é um
sujeito ativo, que aprende a partir da sua interação com
o mundo e dos valores que confere a certos objetos desse mundo (no caso,
a leitura). É a partir de suas ações sobre os objetos
que o sujeito constrói suas próprias categorias de pensamento
e, ao mesmo tempo, organiza seu mundo.
Desta forma, segundo Piaget (1964/2002), o contato com um mesmo objeto
vai despertar diferentes perguntas de acordo com o estágio do desenvolvimento
que se encontra a criança (pensemos, por exemplo, na diferença
de possibilidades entre uma criança ainda incapaz de classificações
e uma criança que já possui essa capacidade). Assim, os
interesses da criança, ao longo do seu desenvolvimento, vão
depender de seu desenvolvimento cognitivo e de suas disposições
afetivas, que os interesses tenderão a completar, levando-a a um
melhor equilíbrio.
Para esse autor, toda e qualquer ação (ou seja, todo movimento,
pensamento ou sentimento) está ligada a uma necessidade que é
sempre uma manifestação de um desequilíbrio (aqui
Piaget nos remete a Claparède). A ação visa sanar
esse desequilíbrio: se inicia devido a ele e se finda quando ele
for satisfeito, ou seja, quando o equilíbrio tiver se restabelecido.
Interesses, hierarquia de valores e força de vontade
Para Piaget, toda conduta envolve aspectos afetivos e cognitivos, sendo,
os aspectos afetivos, a motivação e o dinamismo energético,
e os aspectos cognitivos, as técnicas e meios empregados na ação.
O interesse, enquanto mobilizador da ação, existe, assim,
desde o início da vida psíquica, estabelecendo a relação
entre um objeto e uma necessidade. “O interesse é a orientação
própria a todo ato de assimilação mental. Assimilar,
mentalmente, é incorporar um objeto à atividade do sujeito,
e esta relação de incorporação entre o objeto
e o eu não é outra que o interesse no próprio sentido
do termo (‘inter-esse’).” (1964/2002, p.37). À
essa primeira forma indistinta de interesse, Piaget distingue os interesses
que se diferenciam e se multiplicam em resultado do desenvolvimento do
pensamento intuitivo.
Dessa forma, na teoria piagetiana, o interesse apresenta dois aspectos
complementares entre si: como regulador, mobilizando as reservas internas
de energia, de forma que as tarefas que são interessantes para
o sujeito lhe parecem mais fáceis e menos cansativas que aquelas
que não lhe despertam o interesse, e , num outro aspecto, temos
que o interesse, ao longo do desenvolvimento da criança, se diferencia,
partindo de formas mais elementares, relacionadas com a satisfação
das necessidades orgânicas fundamentais até chegar a se constituir
como um sistema de valores, e com isso designando objetivos cada vez mais
complexos para a ação.
Piaget, no Curso da Sorbonne (1953-54, p.229), coloca que “o valor
está ligado a uma espécie de expansão da atividade,
do eu, na conquista do universo. Esta expansão põe em jogo
a assimilação, a compreensão etc., e o valor é
um intercâmbio afetivo com o exterior, objeto ou pessoa.”
Desse modo, desde o estágio do desenvolvimento da inteligência
sensório-motora, - no qual se dá a diferenciação
entre meios e fins -, observa-se processos de valorização
ou desvalorização pessoal, fruto dos os êxitos ou
fracassos obtidos pela criança nas suas experiências anteriores,
além disso, nesse estágio encontramos coordenações
de interesses, através das quais objetos que não apresentavam
interesse por si mesmos passam a fazê-lo devido à sua relação
com objetos valorados pela criança. É a partir desses sentimentos
de valorização e desvalorização ligados à
atividade própria e dessas primeiras coordenações
de interesses que os valores começam a se hierarquizar, e constituem
a finalidade da ações.
No estágio seguinte, com o início da socialização
da ação, possibilitada pela aquisição da linguagem,
este sistema de valores passa a contar com os valores atribuídos
as pessoas com as quais a criança convive, sendo que estes últimos
vão dar origem aos sentimentos morais, que nesse estágio
por se constituírem a partir de condutas de imitação
e do respeito unilateral dirigido aos adultos significativos para a criança,
são sentimentos morais heterônomos, já que dependentes
de uma vontade exterior e moldados na regra recebida, observada literalmente.
Com as conquistas do pensamento operatório concreto, torna-se possível
a conservação dos valores, que aos poucos passam a se organizar
em sistemas coordenados e reversíveis de forma análoga aos
sistemas operatórios da inteligência. Ao mesmo tempo, a nova
capacidade da cooperação entre os indivíduos, de
coordenação de seus diferentes pontos de vista, leva ao
estabelecimento de relações interindividuais marcadas por
uma valorização global mútua. Dessas relações,
desenvolve-se o sentimento de respeito mútuo, que é a fonte
dos sentimentos morais autônomos, assegurados pela força
de vontade do indivíduo.
Na adolescência, com o pensamento formal, esse processo culmina
na “organização autônoma das regras dos valores
e a afirmação da vontade, com a regularização
e afirmação moral das tendências” (Piaget, 1964/2002).
Todos esses valores encontram-se subordinados a um sistema único
e pessoal, e se referem a um plano de vida, delineado pelo adolescente.
A força de vontade, está ligada, como vimos, ao funcionamento
dos sentimentos morais autônomos, constituindo o equivalente afetivo
das operações racionais. De acordo com Piaget (1964/2002,
p. 56):
A vontade não é, de nenhum modo, a própria energia
a serviço desta ou daquela tendência. É uma regulação
da energia, o que é bem diferente, e uma regulação
que favorece certas tendências à custa de outras. Também
confunde-se, freqüentemente, a vontade com o ato intencional (como
na linguagem corrente, quando se diz “você quer?”, no
sentido de “você deseja?”). Mas, como já mostraram
W. James e Claparède, a vontade é inútil quando já
existe uma intenção firme e única; aparece, ao contrário,
quando há conflitos de tendência ou de intenções,
como quando, por exemplo, se oscila entre um prazer tentador e um dever.
[...] O ato de vontade consiste, portanto, não em seguir a tendência
inferior e forte (ao contrário, fala-se, neste caso, de um fracasso
da vontade ou de uma “vontade fraca”), mas em reforçar
a tendência superior e frágil, fazendo-a triunfar.
Esse conceito de hierarquia de valores, ou seja, do valor
diferenciado que o indivíduo confere aos objetos do mundo que o
cerca, e de força de vontade, atuando para fazer triunfar as ações
baseadas em tendências de maior posição nessa escala,
permite estabelecermos a hipótese de que o fato do indivíduo
conferir um alto valor à leitura e de ver a si mesmo como leitor
é de importância fundamental para que desenvolva estratégias
mais elaboradas de leitura.
Trabalhar com o conceito piagetiano de hierarquia de valores também
nos leva a pensar em qual seria sua relação com a construção
da identidade do sujeito. Essa construção é um tema
que já foi trabalhado por muitos autores, mas nesse trabalho nos
valeremos da obra de Perron, acerca das representações de
si, por considerarmos que é possível conciliar suas contribuições
com a teoria de Piaget.
Representações de Si
Para Perron - de forma muito semelhante ao conceito de hierarquia de valores
de Piaget-, as representações de si
“...são construídas como conjunto de valores. Todas
as características pelas quais o sujeito pode se definir são
com efeito sentidas, em diversos graus, como desejáveis ou desagradáveis.
Mas existe mais: no mais íntimo da consciência de si –
o sentimento de ser, distinto de todo outro – reside a sensação
de ser valor enquanto pessoa. O sentimento de coerência e permanência
que define aos olhos da pessoa sua própria existência, tende
a coincidir com o sentimento de ser valor enquanto pessoa; e desta vez
se trata do valor, no singular e tomado no sentido absoluto. Isto pode-se
exprimir de modo lapidar por: eu sou valor porque eu sou, eu sou porque
eu sou valor.”(Perron, r., 1991, p.24)
Partindo do pressuposto de que as características
que compões a imagem que a pessoa dá dela mesma são,
todas elas, valorizadas por essa pessoa, Perron investigou sobre quais
modalidades se dá essa valorização. Para essa pesquisa,
solicitou a crianças e suas mães que descrevessem o que
é importante uma criança e em seguida, como ela própria
é (no caso da criança) ou como seu filho é (no caso
das mães) e também o que elas desejariam ser (ou o que a
mãe desejaria que seu filho fosse, no futuro).
Perron observou que as crianças, à medida em que crescem,
tendem a se descrever, cada vez mais, de acordo com o modelo de criança
ideal que elas mesmas deram, o que, por sua vez, tende a coincidir em
muito com o modelo descrito por suas mães, que apresenta as qualidades
prezadas por seu meio social. No entanto, essa aproximação
é mais nítida com relação a alguns valores
e pode haver divergência quanto a outros, havendo espaço,
portanto, para a liberdade individual.
Relato da pesquisa
Partindo dessa fundamentação teórica, o objetivo
da pesquisa que relataremos a seguir foi discutir a relação
entre o fato da leitura ser ou não um valor central, na hierarquia
de valores do sujeito e, com isso, um elemento importante na estruturação
da sua identidade, com o seu desenvolvimento como leitor. A hipótese
que nos guiou foi a de que o fato da leitura ser um valor central pode
mobilizar (ou não) o desenvolvimento de estratégias mais
complexas de leitura.
Foram sujeitos dessa pesquisa 12 crianças de 8 a 10 anos, de 2as,
3as, e 4as séries do Ensino Fundamental, alunas de uma escola pública
da cidade de São Paulo, que participaram da pesquisa voluntariamente
e devidamente autorizadas pelos pais.
Nos momentos que antecederam a entrevista, cada uma das crianças
foi informada do teor da pesquisa da qual participariam – foi-lhes
dito que se tratava de uma pesquisa sobre a leitura e também sobre
as coisas que as crianças gostavam de fazer no seu tempo livre
(uma vez que gostaríamos de saber se elas espontaneamente incluíam
a leitura entre as atividades que faziam por prazer).
Após estes cuidados preliminares, foram realizadas as entrevistas
que se dividiam em três partes:
Inicialmente foi proposta uma tarefa que consistia na leitura do conto
“Pequetito” em voz alta. Em seguida, foi pedido que a criança
realizasse a recontagem oral dessa história. Esses dois procedimentos
tiveram como finalidade averiguar qual o grau de capacidade de leitura
dos sujeitos e as estratégias que utilizam para ler.
Num terceiro momento, as crianças foram entrevistadas sobre a história,
sobre seus hábitos de leitura e de lazer e sobre a leitura em si
a fim de colher as representações de si ligadas à
leitura, bem como avaliar seu nível de envolvimento com a mesma.
Para realizar a análise dos dados assim coletados
procuramos relacionar as representações de si dos sujeitos
com relação à leitura, com diferentes níveis
de envolvimento com ela e também com diferentes níveis de
habilidade de leitura.
Inicialmente foram realizados agrupamentos das respostas tanto para a
leitura quanto para a recontagem e para a entrevista, em termos das regularidades
e ênfases dadas pelas crianças.
A partir dos agrupamentos foram construídas categorias de análise
para a capacidade de leitura e para as representações que
as crianças construíram da leitura e de si mesmos como leitores.
Os sujeitos desta pesquisa se encontravam em diferentes
momentos do seu desenvolvimento como leitores, o que se deve, em parte,
ao fato de cursarem diferentes séries escolares, e, por outra parte,
ao caráter único de seus percursos pessoais com relação
à leitura. Esses diferentes momentos correspondem a diferentes
níveis de habilidade leitora.
Hierarquizamos esses níveis em três grandes categorias, para
efeito de análise dos dados, embora dentro de cada nível
exista uma gradação diferenciando um sujeito do outro.
Os sujeitos que se encontram ainda no início do desenvolvimento
de suas habilidades de leitura, que lêem de forma lenta, com uma
pausa marcada entre as palavras e recorrendo, constantemente, à
leitura sílaba à sílaba, estãoreunidos na
categoria I. Por exemplo, B.(8), apresenta essas características
de forma marcante: “Lá no es-tá-ma-go do a-gro Pequetito
o es-pe-tou tanto com sua a-gu-lha que o mal-vado pa-pão o cus-piu
fora” , R.(8) recorre à leitura sílaba à sílaba
num número menor de palavras, mas ainda significativo: “Quando
che-gou a hora de man-dá-lo conhecer o mundo seus pais lhe deram
uma a-gu-lha para servir de es-espada e um... uma cu... uma cu-i-a de
co-mer arroz para ser su... su... seu bar-co e um par de pa-li-tos para
servir de re-mos.”
Os sujeitos que lêem num ritmo mediano, recorrendo muito raramente
à leitura sílaba à sílaba, mas que ainda não
conseguem ler respeitando todas as características do texto –
como seus sinais de pontuação e sua organização
em frases e parágrafos – apresentando uma leitura de aparência
um pouco “truncada” para quem a escuta, estão reunidos
na categoria II. É o caso de H.(8,11): “Quando chegou a hora
de mantê-lo... mandá-lo conhecer o mundo, seus pais lhe deram
uma agulha para servir de es-pada e uma cuia de comer arroz para ser seu
barco”.
Num caso extremo, como o de A.(10,3), essa forma de ler causou erros de
compreensão, pois, ao ler a frase “ ‘É um martelo
que realiza desejos’, a jovem explicou. ‘Então, me
dê uma martelada para ver se me faz crescer’, o rapaz falou.”,
a desconsideração do ponto final entre ‘explicou’
e ‘então’, fez parecer que a moça é quem
estava solicitando uma martelada. Esse sujeito teve muita dificuldade
em realizar a recontagem oral, que não conseguiu finalizar, indicando,
possivelmente, que a forma como leu o levou a fazer inferências
equivocadas sobre o texto, tornando dificílima a reconstrução
do seu sentido.
E os sujeitos que lêem com fluência , estão reunidos
na categoria III. Os sujeitos que se encaixam nessa categoria apresentam
um bom ritmo de leitura, conseguindo transpor para o oral todas as características
do texto com uma entonação adequada. Na leitura do texto
não recorreram em nenhum momento à leitura sílaba
à sílaba, apenas, em alguns momentos da leitura, repetiam
a leitura de uma palavra para retomar a leitura, como é o caso
de B.(9, 6) “’Primeiro vai ter que lutar comigo!’, o
corajoso... o corajoso rapaz exclamou.” É provável
que a palavra repetida tivesse sido a última palavra a ser identificada
na fixação de olhar anterior.
Nesse nível de habilidade de leitura é necessário
que a cada fixação dos olhos no texto, o leitor identifique
várias palavras e sinais de pontuação a fim de que
possa, no momento de oralizá-los, dar o tom adequado a cada situação
expressa pelo texto.
Tabela 1 – Níveis de Habilidade de Leitura
Demonstrados pelos Sujeitos
Categoria/
Série |
Categoria
I
(leitura iniciante, com recorrência à leitura sílaba à sílaba) |
Categoria
II
(leitura mediana, por vezes, ’truncada’) |
Categoria III
(leitura fluente) |
Total |
2ª
Série
(4
sujeitos) |
100%
(4) |
_ |
_ |
100%
(4) |
3ª
Série
(4sujeitos) |
_ |
50%
(2) |
50%
(2) |
100%
(4) |
4ª
Série
(4
sujeitos) |
_
|
75%
(3) |
25%
(1) |
100%
(4) |
Total
(12
sujeitos) |
33,33%
(4) |
41,66%
(5) |
25%
(3) |
100%
(12) |
Estes resultados
indicam que a variável “série”, só tem
influência em crianças que estão bem no início
da escolarização, pois a partir da 3ª e da 4ª
série, as características pessoais (como o valor que cada
uma delas delega à leitura) e as experiências vivenciadas
com a leitura parecem ser determinantes para o desenvolvimento das habilidades
de leitura.
Um dos aspectos
fundamentais deste trabalho consiste em procurar determinar que lugar
a leitura ocupa na hierarquia de valores dos sujeitos estudados. Para
isso, formulamos algumas questões que tiveram lugar na entrevista
com cada sujeito, ao final da leitura e recontagem oral. Essas questões
tinham como objetivo colher representações dos sujeitos
sobre a leitura e suas representações de si como leitores.
Para procurar determinar o modo como cada um dos sujeitos vê a leitura,
lhes perguntamos “para quê serve a leitura?” e “por
quê você tinha vontade de aprender a ler quando entrou na
escola?”, as respostas que obtivemos podem ser agrupadas em três
categorias:
Na primeira categoria reunimos as respostas das crianças que vêem
a leitura como um elemento importante para o sucesso escolar, para a aprendizagem
e, em alguns casos, para o futuro profissional, essas crianças,
na sua grande maioria, queriam aprender a ler para progredir na escola.
Como exemplo dessa categoria temos A.(10,3) segundo o qual a leitura serve
“Para estudar e quando crescer ser inteligente (...) conseguir um
trabalho melhor”, ou A.C. (10, 10), que queria aprender a ler “Porque
tem aluno que quando a professora ia dar um texto para ler e a gente não
sabia ler (...) falava assim: Oh, professora, eu não sei ler’
e ela ia colocar no meio de todo mundo que não sabia ler para ir
aprendendo” e Le.(9,1) que desejava aprender a ler “Porque
eu não ia conseguir trabalhar nem ir para a escola quando eu crescer”.
Ainda que estas colocações possam parecer, num primeiro
momento, portadoras de uma visão utilitarista da leitura, precisamos
considerar a importância que o sucesso ou insucesso escolar tem
para as representações de si da criança, para suas
opiniões sobre ela mesma. Yves Compas (1991), no seu trabalho sobre
representações de si e êxito escolar, discute de forma
muito interessante essa questão, apontando que a maioria das pesquisas
nesse campo considera o êxito escolar como um dos grandes determinantes
da natureza dessas representações.
Na segunda categoria englobamos as respostas das crianças que consideram
que “a leitura serve para nos ensinar a ler melhor”. É
interessante notar como a opinião desses pequenos coincide com
a de uma autora especializada em leitura, Tereza Colomer (2002), que traduz
essa opinião das crianças dizendo que da mesma forma que
um piloto tem que ter muitas horas de vôo para tirar seu brevê,
um leitor tem que ler muito para efetivamente tornar-se um leitor. Podemos
citar como exemplo dessa categoria F.(7) e H.(8,11) para os quais a leitura
serve, respectivamente, “Para ler. Para aprender a ler melhor.”
e “Para ajudar a gente a ler melhor”. Apesar de ser a categoria
mais citada para explicar a finalidade da leitura, nenhuma criança
se valeu dessa categoria para justificar porquê queria aprender
a ler, talvez porque essa segunda questão se remeta ao interesse,
à vontade, que se refletem melhor nas duas outras categorias.
E na terceira categoria reunimos as respostas das crianças que
aliam a leitura ao interesse e ao prazer. De forma geral são crianças
que já lêem bem e que lêem muito, citando a leitura,
na maior parte dos casos, dentre duas atividades de lazer favoritas. Exemplos
dessa categoria são B. (7), para quem a leitura serve “Para
a gente entender um pouco da história, não é? Saber
o que acontece na história, ter idéias, usar a imaginação
(...)Então livro é legal porque a gente pensa do jeito que
a gente quiser. Que nem Harry Potter, é só um nome, a gente
vê do jeito que a gente quiser, livro serve para isso, também.”
e J.(8) que queira aprender porque “gostava de ler” .
Tabela 2 .1– Representações sobre a Leitura I (“Para
quê serve a leitura?”)
Categoria/
Série |
Leitura ligada ao interesse, fonte de prazer |
Leitura como um fim em si mesma – ler para aprender a ler e vice-versa |
Leitura para o sucesso escolar e para a aprendizagem |
Total |
2ª
Série
(4
sujeitos) |
- |
100%
(4) |
- |
100%
(4) |
3ª
Série
(4sujeitos) |
25%
(1) |
25%
(1) |
50%
(2) |
100%
(4) |
4ª
Série
(4
sujeitos) |
25%
(1) |
25%
(1) |
50%
(2) |
100%
(4) |
Total
(12
sujeitos) |
16,66%
(2) |
50%
(6) |
33,33%
(4) |
100%
(12) |
Tabela 2 .2– Representações sobre a Leitura I (“Por quê queria aprender
a ler?”)
Categoria/
Série |
Leitura ligada ao interesse, fonte de prazer (para ler com autonomia
o que desejasse) |
Leitura para o sucesso escolar e para a aprendizagem (ler para estudar) |
Total |
2ª
Série
(4
sujeitos) |
50%
(2) |
50%
(2) |
100%
(4) |
3ª
Série
(4sujeitos) |
75%
(3) |
25%
(1) |
100%
(4) |
4ª
Série
(4
sujeitos) |
25%
(1) |
75%
(3) |
100%
(4) |
Total
(12
sujeitos) |
50%
(6) |
50%
(6) |
100%
(12) |
Ao se depararem
com a pergunta “para quê serve a leitura”, metade das
crianças procedeu a uma reflexão sobre sua finalidade e
sobre o que ela causa em quem lê, então a maior porcentagem
entre as respostas foi a dos sujeitos que apontaram que ler, como o exercício
de qualquer habilidade, contribui para a melhoria da habilidade de ler;
em segundo lugar (33%), também de forma coerente com a natureza
da pergunta, aparece o uso da leitura como instrumento para a aprendizagem
escolar. Já a questão sobre porque os sujeitos desejavam
aprender a ler, remete ao interesse, às valorizações
pessoais de cada sujeito. Nessa questão as respostas se dividem
entre os que queriam aprender a ler pelo interesse que tinham pela leitura
e aqueles para quem dominar a leitura e a escrita é o caminho para
se tornarem bons alunos.
Para coletar
as representações de si ligadas à leitura, foi pedido
que os sujeitos descrevessem a si próprios. De acordo com Perron,
todas as características com as quais o sujeito pode se definir
(suas representações de si) são construídas
como um conjunto de valores (a hierarquia de valores da teoria piagetiana).
Assim, considerou-se que as crianças que citavam a leitura ao se
descrever (dizendo que eram boas leitoras ou que gostavam de ler) e/ou
a incluíam no seu conjunto de atividades favoritas, apresentavam
representações de si positivas ligadas à leitura
e, consequentemente, a leitura ocupava uma posição destacada
na sua hierarquia de valores pessoais.
Tabela 3
– Representações de Si ligadas à Leitura
Categoria/
Série |
Cita o fato de gostar de ler ao se descrever e/ou ao enumerar suas atividades
favoritas? |
Não cita |
Total |
2ª
Série
(4
sujeitos) |
50%
(2) |
50%
(2) |
100%
(4) |
3ª
Série
(4sujeitos) |
75%
(3) |
25%
(1) |
100%
(4) |
4ª
Série
(4
sujeitos) |
50%
(2) |
50%
(2) |
100%
(4) |
Total
(12
sujeitos) |
58,33%
(7) |
41,77%
(5) |
100%
(12) |
Como podemos
observar, pouco mais da metade das crianças incluem a leitura nas
suas descrições de si ou nas suas atividades favoritas.
O interessante é que, se relacionarmos essas respostas aos resultados
encontrados quanto à leitura da história, veremos que são
essas mesmas crianças as que melhor lêem.
Considerações
finais
Os resultados dessa coleta de dados preliminar parecem demonstrar que
a presença da leitura nessa hierarquia de valores pessoais, ou
seja, o fato do sujeito possuir representações de si ligadas
à leitura, atua como mobilizador do desenvolvimento de habilidades
cognitivas de leitura, pois, após a segunda série onde todos
os sujeitos , independente de apresentarem ou não representações
de si ligadas à leitura, apresentam um mesmo nível de habilidade
leitura – muito provavelmente porque nessa fase da escolarização
a alfabetização está sendo concluída - , os
sujeitos que se diferenciam dos demais por seu melhor nível de
habilidade de leitura oral coincidem com aqueles que se descrevem como
leitores ou que citam a leitura entre as coisas que mais gostam de fazer.
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