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O
DISCURSO SOBRE A LEITURA E O LEITOR NA MÍDIA ESCRITA BRASILEIRA
Gilberto
de Castro - Universidade Federal do Paraná (UFPR)
O trabalho
tem por finalidade apresentar alguns resultados de um projeto em andamento
sobre a leitura e o leitor na mídia escrita brasileira nos últimos
trinta anos. Por ora, as fontes preferenciais da pesquisa são o
jornal Gazeta do Povo, a revista Veja e o jornal Folha de São Paulo.
Nosso objetivo principal é investigar que referenciais e conceitos
sobre leitura e leitor transparecem e permanecem nesses veículos
ao longo das últimas décadas. A inspiração
teórica do trabalho vem de autores que têm contribuído
para o debate metodológico da Análise do Discurso, como
Pechêux, Foucault e Bakhtin/Voloshinov
A pedido
da Folha de São Paulo (19/Julho/2004), o INEP (Instituto de Estudos
e Pesquisas Educacionais – www.inep.gov.br) cruzou uma série
de dados socioeconômicos dos participantes do ENEM/2003, buscando
compreender a influência da posse de alguns bens materiais nos resultados
gerais da prova. Desse cruzamento, chegou-se à conclusão
de que a quase totalidade (97%) dos estudantes que participaram da prova
possui televisão e que isso implica numa média final maior
em torno de 8% em relação àqueles estudantes que
vivem sem esse bem em casa. Já a possibilidade de ter TV a cabo
gera uma média final superior em termos de 14,1 pontos, a posse
de um computador dá uma média de 15,1 pontos de diferença
pra cima nas médias e o acesso livre à internet se traduz
em uma média final maior em torno de 15,8 pontos.
De maneira geral, creio que o que esses dados mostram é a crueza
da determinação econômica no sucesso ou insucesso
escolar de nossos estudantes, uma vez que parecem não deixar muitas
dúvidas do quanto a posse material e a convivência e educação
com pais bem escolarizados - outro dado interessante do relatório
do ENEM-2003 -, podem se transformar em saber e conhecimento. Mas para
nós, educadores de letras, a mensagem desses dados merece uma atenção
em particular, qual seja: aquela que nos obriga a questionar e relativizar
os nossos discursos em torno da leitura, pois a força do discurso-conceito
sobre a leitura pautado em torno da palavra escrita e do livro é
imensamente preponderante em nosso espaço social e, de certa forma,
contrasta com os dados trazidos pelo ENEM – a manos que aceitemos
a idéia de que essas médias a maior não foram em
si fruto de alguma espécie de leitura! Esse contraste parece estar
expresso com todas as letras na opinião do poeta Nelson Ascher,
no seu artigo Os leitores futuros, publicado em 18 de abril deste ano
na Folha de São Paulo. Para o escritor, “Gente que freqüente
livros não apenas “mata”, digamos, a trama de um “thriller”
antes, mas também arquiva na memória cenas e seqüências
que os menos afeitos à leitura esquecem logo. Já o teatro,
o cinema e a televisão, ao que tudo indica, não inserem
mecanismos semelhantes na mente de seu público. Resulta disso que,
se a leitura prepara alguém para se tornar um bom cinéfilo,
o contrário não se verifica.” Muito embora o tom geral
do texto de Ascher não seja aquele que defenda o senso comum de
que precisamos nos livrar da cangalha da tecnologia (pelo contrário,
ele até admite que hoje quem lê melhor aproveita mais o que
a tecnologia contemporânea nos põe à disposição),
por outro lado ele não consegue se livrar - assim como tantos outros
escritores, educadores e intelectuais - daquele outro senso comum que
tem dificuldade em abandonar a idéia da superioridade semiótica
da palavra escrita. Cumpriria perguntar, portanto, se quem vira cinéfilo,
vê muitos filmes na TV ou peças de teatro também não
adquire bons atributos de leitor e também não poderia se
transformar em um matador de thrillers!
Essa idéia do centralismo no livro e no escrito está entranhada
na cabeça das pessoas, leitoras ou não, e inunda o nosso
imaginário social sobre leitura. Pra se ter uma idéia da
força desse imaginário sobre leitor e leitura centrados
na palavra escrita e na figura do livro, que transforma o livro –
normalmente o literário e clássico – na própria
metonímia da leitura, vale lembrar aqui da campanha que a rede
Globo de Televisão realizava durante os jogos do Campeonato Brasileiro
de 2003. Naquele campeonato, no meio dos intervalos, sob o slogan que
dizia que “ler também é um exercício”
sempre aparecia um jogador falando de suas experiências de leitura
fora e dentro das concentrações dos jogos. A grande maioria
dos jogadores eram focalizados lendo livros de literatura, eventualmente
aparecia um ou outro com um livro de auto-ajuda ou com a Bíblia.
E, durante a entrevista, que sempre acontecia, nenhum deles se dizia leitor
de jornal, revista, ou desses mesmos veículos via Internet; ao
contrário, apenas ajudavam a desfiar e repetir os chavões
sobre a importância do hábito da leitura nas suas vidas e
na vida de todo mundo.
Mas talvez o exemplo hoje mais radical desse culto metonímico do
livro como objeto único de leitura esteja representado pela propaganda
do canal MTV em rede aberta. Há meses esse canal, antigo e reconhecido
canal de divulgação musical – normalmente de grupos
e bandas estrangeiras - e de variedades relacionadas à música,
vem fazendo uma campanha curiosa sobre leitura. Em meio aos intervalos
comerciais, de repente ouvimos tocar um ruído estranho, como uma
sineta, e em seguida vemos a tela toda escurecer, riscada no centro, em
sentido horizontal, em letras brancas, com a seguinte mensagem: desligue
a televisão e vá ler um livro !
Creio que esse exemplo da MTV seja mesmo exemplar. Afinal, o que dizer
de uma campanha sobre leitura de livros veiculada por um canal de música
que absolutamente nunca se pautou por outra coisa senão a promoção
quase que exclusiva da música americana? É claro que o fato
de a campanha do canal estar voltado para o tema da leitura de livros
tem lá seu lado interessante, porém talvez mais efetivo
que a propaganda - que chega a ser chata e que provavelmente só
estimula o pessoal a mudar de canal -, fosse o estímulo a programas
que levassem o debate sobre os temas e problemas envolvidos com a leitura.
A começar pelo questionamento do foco da leitura estar, ainda hoje,
apesar de toda a tecnologia da imagem e do som, pautado exclusivamente
sobre o escrito e o livro.
O que os exemplos do escritor, da Rede Globo e da MTV demonstram é
a força e a orientação dos discursos sobre a leitura
e o leitor focados no figura do livro. O livro é, como já
dissemos acima, elevado à condição de metonímia
da leitura.
Essa idéia, de tanto ser martelada, acaba por criar nas pessoas
uma certa sensação de culpa e confusão em relação
à leitura. Em primeiro lugar aparecem os reféns totais desse
discurso, aqueles que passarão a vida toda tentando ler o mundo
de trás para frente, engolindo literatura, livro após livro,
como se essa atividade mecânica e quantitativa por si fosse capaz
de descortinar as verdades do mundo. A angústia desses leitores
vai ser, assim como o número de livros, igualmente interminável,
evidentemente. Também vão existir os que até gostam
de ler um livro eventualmente, mas que se condenam por não fazê-lo
com freqüência, ou porque às vezes só lêem
best-sellers, normalmente considerados como leitura menos importante.
Mas há também aqueles que, por uma conjunção
de fatores escolares e experiências familiares, se transformam em
bons leitores de jornais e revistas, passando só muito raramente
pelo livro. Para o discurso oficial sobre a leitura, esses não
são leitores de fato e, curiosamente, não raro vamos perceber
que esses mesmos leitores também alimentam um certo sentimento
de culpa por não lerem o que a tradição nos legou
como a boa leitura, ou seja: o livro. Por último, ainda dá
para listar também aqueles que dizem que não gostam de ler
porque ficaram traumatizados com alguma insólita experiência
escolar. Mas, mesmo esses, deixam escapar e acabam revelando o seu complexo
de leitor: também reconhecem que ler é importante, que precisavam
se esforçar mais e superar o sono profundo que têm quando
precisam ler um livro. Em suma, de uma forma ou de outra, todos somos
constituídos pelo imaginário da leitura em torno do livro,
principalmente do clássico, do hábito e da quantidade em
torno dele.
Mas esse imaginário sobre a leitura não foi a escola sozinha
que colocou na nossa cabeça. Na verdade, o discurso sobre a centralidade
do livro como fonte única da leitura começa na família
– até pais não-leitores cobram que os filhos leiam
livros! Fora dela, o discurso vai se aprofundar na escola e estará
também sendo reiterado constantemente nos jornais, nas revistas
e na televisão. Podemos ler e ouvir nesses veículos da parte
de intelectuais e educadores que o brasileiro não lê, que
os jovens não lêem mais como antes, que é urgente
que se recupere o hábito da leitura para nos salvar da barbárie
intelectual, como se algum dia, nesse país de escolarização
tão recente e ainda tão precária, afundado que está
num número infindável de analfabetos funcionais, tivesse
havido alguma situação ideal em que as pessoas vivessem
debatendo os problemas da nação e devorando livros!
E parece que era exatamente contra isso que há mais de 20 anos
protestava Paulo Freire. Em entrevista concedida a Ezequiel Theodoro da
Silva, em 1982, o educador, ao falar sobre as suas experiências
sobre leitura, revela que muitas vezes, segundo o seu ponto de vista,
era mal compreendido quando avaliava os problemas relativos à leitura.
Segundo ele, vivíamos (e vivemos) sob o domínio de uma “compreensão
mágica da palavra escrita“ (BARZOTTO,1999) que tem sua expressão
mais forte nas nossas atitudes em relação ao livro. Ele
vai dizer, por exemplo, que “o aspecto mágico da palavra
se expressa na leitura quantitativa: quanto mais livro eu compro, quanto
mais livro eu olho, quando mais livro eu penso que estou lendo, tanto
mais eu estou sabendo” (BARZOTTO,1999)
Apesar de ser já uma consideração relativamente distante
de nós, essa fala de Paulo Freire, quando prestamos atenção
na forma como a leitura é tratada de uma maneira geral na mídia,
seja ela escrita ou televisa, ainda é muito procedente, já
que a idéia do quantitativo relativo à leitura, aparece
recorrentemente num certo modo de expressar a leitura e o leitor, que
vai associar a importância da leitura e da formação
do leitor à construção do hábito. Essa idéia
do hábito (do quantitativo, indiretamente) parece ocupar o nosso
imaginário e talvez seja a principal responsável, de uma
forma indireta, por grande parte dos mitos e crenças que temos
e reproduzimos sobre o tema da leitura, do livro e do leitor.
Assim, a fim de problematizar tudo isso e de poder verificar nossa hipótese
em torno do livro e da leitura é que temos nos aproximado dos jornais
Gazeta do Povo, Folha de São Paulo e da revista Veja, buscando
confrontar aquilo que temos teorizado nos horizontes da academia nos últimos
anos, a partir das inúmeras referências teóricas existentes,
com o que temos dito e registrado (nós, os sujeitos falados pela
leitura: os teóricos, intelectuais, educadores, leitores, publicitários,
etc ) de forma efetiva na mídia escrita a respeito de nossa crença
e dos reais valores que prezamos quando falamos de leitura e de leitor.
Pela natureza dos veículos pesquisados e pelas inúmeras
possibilidades textuais e visuais em que é possível aparecer
o tema do livro, da leitura e do leitor – entrevistas, reportagens,
fotos, ilustrações, charges, tiras, crônicas, propagandas,
etc – temos buscado inspiração nas reflexões
teóricas sobre semiótica de Bakhtin/Voloshinov, cujos idéias
sobre signo estão colocadas de forma bastante abrangente nos capítulos
iniciais da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, demonstrando a intrínseca
relação entre a diversidade de signos sociais e a sua relação
com o mundo valorativo. Segundo os autores,
Cada signo
ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da
realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo
fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação
material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento
do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a realidade do signo
é totalmente objetiva e, portanto, passível de um estudo
metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é um fenômeno
do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas
as ações, reações e novos signos que ele gera
no meio circundante) aparecem na experiência exterior. (BAKHTIN/VOLOSHINOV,
1986, P. 33)
Outra inspiração
teórica vem do pensamento de Michel Foucault, particularmente das
obras A arqueologia do Saber e a Ordem do discurso, em que o autor –
ainda que negue isso – deixa um legado sistemático de pensamento
em torno das nossas relações com os discursos. Para não
tomar muito do espaço aqui com aquilo que imagino deve já
estar posto implicitamente a partir do viés em que estamos colocando
as coisas, e entendendo que o conceito de enunciado de Foucault é
central para a sua compreensão do que seja discurso e sua relação
com as posições que podem ocupar o sujeito, balizo as minhas
posições e interpretações sobre o tema que
analiso em apenas algumas de suas palavras. Me refiro basicamente à
sua descrição do que seriam enunciados:
(...) voltando
atrás, apercebi-me de que não podia definir o enunciado
como uma unidade do tipo lingüístico (superior ao fenômeno
e à palavra, inferior ao texto); mas que tinha que me ocupar de
uma função enunciativa, pondo em jogo unidades diversas
(elas podem coincidir às vezes com frases, às vezes com
proposições; mas são feitas às vezes de fragmentos
de frases, séries ou quadros de signos, jogo de proposições
ou formulações equivalentes); e essa função
, em vez de dar um “sentido”, a essas unidades, coloca-as
em relação com um campo de objetos; em vez de lhes conferir
um sujeito, abre-lhes um conjunto de posições subjetivas
possíveis; em vez de lhe dar limites, coloca-as em um domínio
de coordenação e de coexistência; em vez de lhes determinar
a identidade, aloja-as em um espaço em que são consideradas,
utilizadas e repetidas. Em suma, o que se descobriu não foi o enunciado
atômico – com seu efeito de sentido, sua origem, seus limites
e sua individualidade – mas sim o campo de exercício de uma
função enunciativa e as condições segundo
as quais ela faz aparecerem unidades diversas (que podem ser, mas não
necessariamente, de ordem gramatical ou lógica). (FOUCAULT, 1995,
p.122)
Ou seja,
o dizer teórico de Foucault nos alerta para o fato de que um enunciado
possui uma textura bastante particular que o diferencia das noções
tradicionais de palavra, frase/oração ou texto (embora as
leve em consideração também), comumente utilizadas
para nos referirmos as nossas atitudes interpretativas. A grande novidade
do autor consiste em mostrar que, mais que o caráter verbal ou
lógico dos enunciados, o que mais importa neles não é
a sua semelhança ou a textura do material significante utilizado
na sua construção, mas antes a unidade discursiva que eles
acabam por compor, na medida que agregam uma ordem de verdade conceitual
sobre um determinado objeto/tema, através da repetição
simbólica variada que pode emanar de diferentes sujeitos em diferentes
lugares do tempo e do espaço. Em suma, a noção de
enunciado e de discurso de Foucault parece congregar muitos dos ares semióticos
que o século XX ajudou a revelar e, nesse sentido, creio que essa
noção pode ser compatível e complementar à
idéia abrangente sobre signo colocada por Bakhtin/Voloshinov.
É com essa perspectiva de discurso, portanto, que tenho tentado
ler as fontes visuais e escritas que tenho encontrado comumente na mídia
impressa. Com a finalidade de ensaiar um pouco de minha análise,
gostaria de apresentar e comentar brevemente algumas das fontes até
agora selecionadas. Creio que elas devem servir para dar uma idéia
do que tem me preocupado e que quero descrever e discutir.
Em primeiro lugar, trago um exemplo retirado de uma matéria publicada
na Folha de São Paulo – caderno de informática –
de 10/06/1992, que se intitula Tv vira sala de aula eletrônica.
Embora o texto aborde as características positivas da TV como veículo
de ensino à distância, informando que nos Estados Unidos,
cada vez mais os que não podem fazer cursos presenciais têm
recorrido à mediação da televisão, ele se
inicia com o relato de uma estatística perversa a respeito da leitura.
O texto vai dizer que as crianças norte-americanas lêem menos
de 11 páginas por semana e que, ao mesmo tempo, passam pelo menos
três horas diárias diante da televisão.
Apesar da matéria se referir aos Estados Unidos, é curioso
reparar na ilustração que acompanha e ladeia o texto, feita
por um chargista brasileiro que resume o conteúdo do texto num
único desenho. Pra isso, ele desenhou uma TV e, de dentro dela,
está saindo, com mais de meio corpo pra fora, um homem com vestes
de acadêmico e com uma sizuda silhueta facial. Ele tem um de seus
braços esticados e está fazendo um movimento em direção
a um menininho que, sorridente, está entre um livro e uma torrezinha
com a qual está brincando. Ao lado desse, mais próximo da
televisão, está outro menininho, igualmente sorridente,
que empunha um livro sobre as pernas num gesto nítido de que está
lendo. Mesmo que se considere que o chargista quis agregar os conteúdos
referidos no texto (televisão/criança/leitura – educação
à distância/televisão), é de se indagar por
que a situação foi representada da forma que foi. Ou seja,
o artista parece querer passar a idéia de que a TV, representada
pela figura nada leve do acadêmico, é responsável
pelo furto da alegria infantil das brincadeiras, bem como por distanciar
as crianças do livro (existem dois livros no espaço da sala
representada!), muito embora a temática fundamental da matéria
seja sobre os cursos à distância. Enfim, por que esta representação
figurativa e não outra? Por que são livros que estão
diante dos meninos e não outros objetos de leitura escrita –
jornal, gibi? Por que, por fim, aceitar tão tacitamente que a televisão
não se presta a nenhuma forma de leitura e representar as coisas
dessa maneira? Ao menos, me parece que é isso que faz a enviada
especial da Folha ao iniciar o texto com essa questão, sem todavia
problematizá-la, mesmo que de forma rápida. Creio que questões
como essa – e a outras parecidas com ela – só podem
ser respondidas via uma análise discursiva sobre o tema, cuja aproximação
ao material empírico se dá com uma outra espécie
de positividade e perspectiva de leitura, não aquela do reflexo
transparente do sentido dos signos – verbais e não verbais
-, mas sim daquela que almeja alcançar os estratos mais escondidos,
à vezes quase apagados, que utilizamos para representar os saberes
e as crenças que nos cercam e nos constituem.
No mesmo jornal, em 08/04/97 e 19/04/97, respectivamente, também
encontramos outros dois bons exemplos de enunciados nessa linha fetichista
do livro e da literatura. São duas tirinhas de Galhardo que reproduzem
de forma exemplar os discursos sociais em torno do livro, da leitura e
da literatura. Os exemplos falam por si.
Passemos
agora para alguns exemplos retirados da Gazeta do Povo. Embora com objetivos
jornalísticos diferentes, os dois exemplos apontam para aquele
lado mecânico de se encarar a leitura livresca de que reclamava
Paulo Freire. O primeiro deles é de 21/03/77, 3ª. página,
e revela a que veio já no próprio título, onde vemos
reproduzido diretamente o discurso da diretora da Biblioteca Pública
de Curitiba: Diminui o hábito da leitura, diz diretora da Biblioteca.
Dois parágrafos mais adiante é que vamos encontrar o discurso
direto da diretora que serviu pra encetar a matéria. Encimado pela
palavra Estado em caixa alta, o texto diz em seu terceiro parágrafo,
que “Danúbia[a diretora] disse que o Estado não se
descuida de promover a boa leitura. Afirma que todos os departamentos
culturais se movimentam promovendo campanhas a fim de estimular a criança
e o jovem, criando o hábito e incentivando o adulto a retomá-lo
já que está esquecido há longo tempo”.
Alguns anos mais pra frente, no dia 22/04/84, na 12ª. página,
também vamos encontrar a reprodução da mesma expressão
lugar-comum sobre a leitura já estampada no título do texto,
que diz que Encontro de escritores vai debater o hábito de leitura.
E assim como a matéria anterior, também vamos encontrar
a utilização da expressão reportada indiretamente
a um escritor e professor da Universidade Federal do Paraná para
quem “é na infância que a leitura deve ser estimulada
para que, automaticamente, o hábito se forme e se desenvolva na
adolescência e na vida adulta.” Creio que a associação
da palavra hábito com a palavra automaticamente é exemplar
para demonstrar grande parte do teor mecanicista que perpassa já
há muito nossos debates sobre a questão da leitura.
Exemplos desse tipo também encontramos em matérias bem maiores
na revista Veja. Em 14/03/73, em texto encabeçado por uma foto
com inúmeros livros de capa dura, podemos ler em A leitura multiplicada,
já no segundo parágrafo, os objetivos do empreendimento
almejado pelo Círculo do Livro na época. O parágrafo
se inicia dizendo que “Criar o hábito de maior e melhor leitura
segundo ensinou a experiência de outros países, pode começar
de diversas maneiras, mas a mais sensata delas parece ser a que visita
o leitor em casa.” Embora a expressão maior e melhor leitura
não seja desenvolvida, pela foto dos livros tudo indica que o pressuposto
de qualidade de leitura só pode mesmo desaguar na leitura livresca
de autores literários e/ou clássicos. Isso fica mais claro
quando, ao final do texto, o diretor–gerente comercial do Círculo
do livro – Raymond Cohen -, embora admita que não tem por
objetivo fazer com que o cliente estoque livros, mas apenas “estimular-lhe
o hábito da leitura” termina afirmando que a intenção
de sua empresa é “aumentar o gosto pela literatura”
nos clientes.
Em outro texto da revista, agora de 12/11/75, na reportagem O nosso pobre
português, que vai decretar a falência da língua, abordando
a velha ladainha de que vários segmentos da sociedade estão
se descuidando da verdadeira língua portuguesa – principalmente
a nossa juventude alienada –, encontramos a falta do hábito
da leitura como a causa principal do males da língua. Associação,
aliás, que muito intelectual e escritor escolado ainda fazem hoje,
infelizmente, apesar de já algumas décadas de Lingüística
em nosso país. O parágrafo onde está a pérola,
põe todo mundo no imbróglio, juventude, escola, tv, literatura,
e vai dizer que “A língua estaria morrendo, à míngua,
condenada pelo descaso da juventude e pela omissão da escola secundária
e superior. Diariamente ela é assaltada por modismos lingüísticos
d’além-mar ou pela insubordinação da literatura
de vanguarda. Diagnosticam-se insuficiências em seu metabolismo
vocabular, além de traumatismos em sua vértebra gramatical.
E lamenta-se o domínio massificante da televisão, diante
da qual, em média, um brasileiro, já passa hoje duas horas
diárias, esquecendo o hábito da leitura. (grifo nosso)
É evidente que quem lê leva muita coisa pra casa em termos
de domínio de linguagem, mas também parece óbvio
que a operação com a escrita é demanda de uma prática
constante com ela que não se transfere passivamente e de forma
mecânica com a simples leitura – principalmente se essa leitura
se tratar apenas de leitura literária.
E, para encerrar essa exposição de exemplos, vale registrar
aqui o aparecimento do mesmo chavão em um outro tipo de enunciado:
agora numa singela propaganda de dicionário infantil, publicada
também na Veja em 30/04/75. A propaganda tem como título
em letras grandes o seguinte dizer: Meu primeiro dicionário e,
logo abaixo, em letras um pouco menores, a informação de
que o dicionário possui 200 desenhos e 200 palavras tiradas do
mundo do seu filho. Embora não se trate de livro de literatura,
a propaganda não abre mão da expressão hábito
associada a ela. Logo no primeiro subtítulo, de um total de quatro
no texto, que fica acima da foto de um garoto com o dicionário
na mão, do lado do seu cachorro, lemos em Mesmo que ele ainda não
saiba ler, no primeiro parágrafo do texto que “O hábito
de ler surge na medida em que seu filho é estimulado e que recebe
de você os materiais adequados”.
Depois dessa exposição de exemplos, e de tudo que já
disse ao longo do texto, cumpre relembrar algumas coisas a fim de evitar
mal-entendidos. Em primeiro lugar, dizer que a pesquisa visa basicamente
descrever os discursos hegemônicos sobre a leitura de uma maneira
geral. Nesse sentido, um dos discursos já identificados –
que goza de indiscutível hegemonia - é aquele que centraliza
tudo o que pode ser compreendido como de qualidade de leitura ao universo
semiótico exclusivo da palavra escrita, livresca e, na maioria
dos casos, naquele livresco já considerado clássico, como
bem demonstraram as tiras exemplificadas acima. E, em segundo lugar, dizer
que quando encontramos as pessoas repetindo acriticamente a lenga-lenga
de que temos que desenvolver o hábito da leitura a qualquer preço,
o que observamos é que essa expressão mecânica na
forma e no uso já está esvaziada de qualquer capacidade
heurística em relação ao saber e à complexidade
simbólica da leitura no tempo presente. Ora, o que se quer não
é questionar a validade estética e ética-valorativa
da literatura, como bem gostava de afirmar o filósofo Mikhail Bakhtin
em seus escritos sobre estética, mas simplesmente tentar por a
nu a vagueza e a pobreza desse discurso que acabou por transformar o livro
em metonímia da leitura. E, mais que isso, o quanto talvez esse
mesmo discurso que tem impedido de nossa parte uma reflexão mais
ampla e generosa sobre as possibilidades de leitura do rico universo simbólico
hoje representado pela TV (a ainda hoje mais criticada de todas as mídias!),
pelo cinema, pelo computador e pela internet. Creio que seja justíssimo
que continuemos lutando pela expansão do acesso ao livro e à
literatura – principalmente se nos desamarrarmos mais dos preconceitos
com relação à literatura de massa. Creio, também,
que seja justíssimo continuar lutando pelo barateamento do livro,
pela criação de novas livrarias e bibliotecas, por metodologias
alternativas que melhor saibam abordar a especificidade e riqueza do discurso
literário sem banalizá-lo, etc.; mas creio, por fim, que
é imperioso, hoje mais do que nunca, que destrocemos a metonímia
cultural sobre o livro, que criamos por razões históricas
que não cabem aqui desenvolver mas que têm, infelizmente,
embotado nosso olhar e nossa reflexão para uma visada mais larga
de leitura, aquela que já não suporta mais conviver com
a idéia batida de que ficamos passivos diante da imagem! A idéia
de que o cinema, a TV e adjacências são tudo mesmo uma grande
uma porcaria!
O discurso sobre o livro e a educação da leitura parecem
precisar um pouco daquilo que o escritor Júlio Cortazar, na entrevista
É difícil entender Godard, disse à revista Veja,
em 07/02/73, ao afirmar que “o livro precisa de uma daquelas sacudidelas
que fazem sair voando as traças. Então entrará em
uma nova dinâmica e em vez de cair de nossas mãos o veremos
brincar como um gato com uma bola, cheio de vida e de exigência
e de desafio”.
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