Lilane Maria de Moura Chagas (UFAM/USP)
“Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um
inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode
ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”
(Ítalo Calvino)
Introdução
Em seu texto “O Narrador” W. Benjamim destaca
que “Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não
está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva.
Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais [...]. Segundo
o autor, [...] É a experiência de que a arte de narrar está
em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas
que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém
narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”
(BENJAMIM, 1985, p. 197- 221).
Essas palavras nos provocaram construir o presente texto como um relato
de uma experiência singular de leitura que foi possível se
objetivar após a reflexão sobre um caminhar mediado por
encontros e desencontros entre leitor, livro e leitura e nesse processo
perceber como foi constituindo esse leitor a partir de sua história
pessoal.
Recorrer à memória de leitura é como encontrar o
“fio de Ariadne” - cheio de imagens, cheiros, lembranças,
sabores, dissabores, momentos ímpares de uma vida -, e nesse emaranhado
de fios não perder o entrelaçamento da vida e da leitura.
Kramer, também nessa perspectiva enfatizada por Benjamim assume
a leitura e a escrita como experiência, pois entende que para que
essas possam se constituir como formadoras, elas precisam se concretizar
como experiências (vivido que é pensado, narrado). Explica
a autora que “na experiência, a ação é
contada a um outro, compartilhada, se tornando infinita. Esse caráter
histórico, de permanência, de ir além do tempo vivido
e de ser coletiva constitui a experiência” (KRAMER, 2000,
p.106). Assim enfatiza a autora que:
Levar algo da escrita para além do seu tempo significa
compreender a importância da escrita como experiência. Como
se concretiza? Nas situações em que assume caráter
de narrativa da história construída coletivamente, seja
ela uma escrita que registra ações de pessoas ou grupos
que foram acompanhadas ou observadas por aquele que escreve, seja uma
autobiografia, diário, relato ou história de vida, chamo
de experiência se e quando a escrita permite refazer o processo,
sistematizá-lo e melhor compreende-lo, suavizá-lo, vencendo
a dureza da escrita, percebendo as contradições, incoerências
e dificuldades existentes. Escrever significa aqui sempre (re)escrever
texto e histórias; ser leitor de textos escritos e da própria
história pessoal e coletiva, marcando-a, mudando-a, inscrevendo
nela novos sentidos. (KRAMER, 2000, p. 109 e 110).
A partir dessa compreensão foi escrito o texto
que ora apresentamos. O sentido da narração é fundar
novos entendimentos, não somente da própria experiência,
senão também, como um resgate da memória. A leitura
e o contato com os livros, estão no texto como uma forma de compreender
o leitor que está em mim, talvez por duvidar dessa construção,
mas também compreender a narrativa como uma possibilidade de comunicação,
de recuperar a arte de narrar, através de registros orais ou escritos,
pensando o significado da narração nos processos formativos
de leitores.
Memórias de amores e livros
Tenho ficado muito mexida quando as pessoas falam que
desde a infância tiveram contato com histórias. Seja através
de seus pais, tios, professores, livros... Mergulhada em minhas memórias
não consigo lembrar desse tempo. Não lembro de livros circulando
em minha casa. E de nenhum momento em que meus pais contavam-me histórias.
Ao mesmo tempo fui uma criança que não tive avós.
Não tive o privilégio de muitos que guardam até hoje
em suas memórias as imagens de seus avós contando-lhes histórias.
Então comecei a me perguntar: De onde vem essa paixão pelos
livros; pela narração hoje? Talvez por um desejo não
calado em minha infância de querer ter escutado histórias,
de querer ter brincado com livros.
Dizendo isso para uma contadora de histórias , – aliás
para uma verdadeira fada – ela me disse que embora eu não
tenha tido meus avós agora eu tinha “a minha voz” e
que portanto eu poderia contar esta, e muitas outras histórias.
Suas palavras foram como um “pirlimpimpim” e a partir desse
momento passei a pensar que “ter a voz” significa ter a relação
com as palavras enquanto expressão de sentimentos, emoções,
porque mergulhar na história é ter a possibilidade de reconstruir
ausências. Então, entendi que eu poderia contar essa e muitas
outras histórias. E aqui estou, mergulhada nesse baú de
minhas memórias para conseguir achar um pedacinho de muitos fragmentos
que possam ser significativos para contar o “Era uma vez...: encontros
e desencontros entre leitor e livro”. O que isso provocará,
ainda não sei. O que sei é que procurar nas minhas memórias
a intersecção entre a palavra interior e a possível,
a que se exterioriza, fazendo uma coreografia de palavras, é uma
forma de dizer algo, é uma forma de usar a minha voz. E ao mesmo
tempo é uma aproximação de minha história
pessoal possibilitando reconstruir um percurso enquanto leitora.
Dessa forma, parafraseando Michel Certeau, podemos dizer que ler é
estar em outro lugar, em outro mundo, é constituir uma cena secreta,
lugar onde se entra e de onde se sai à vontade. Para ele, o leitor
é o produtor de jardins que miniaturizam e congregam um mundo.
É viajante, circula nas terras alheias, nômade caçando
por conta própria através dos campos que não escreveu
(Certeau, 1994, p.269).
Assim, quero convidá-los a fazer uma viagem de barco comigo. E
peço permissão para conduzir o leme desse barco que vai
subir e descer diversos braços de rios de minhas memórias.
Aparentemente as águas desses rios se movimentam lentamente. No
entanto, elas correm com muita velocidade pra desaguar no mar –
no mar de histórias. E mergulhar nessas águas me faz recordar,
especialmente, meu amor por uma autora de livros infantis. E nesses rios
de sentimentos e memórias, que conduzirei essa viagem.
A paixão por esta autora se deu um tanto quanto tarde. Mas significou
muito! Foi a partir do amor por ela que pude encontrar a criança
que estava adormecida. E com esse olhar de criança pude conhecer
o mundo da literatura. Eu e ela fomos ficando íntimas. E nessa
intimidade, ela me contou seus casos de amor. Ela me disse que teve seis
casos de amor, de envolvimento muito intenso. À medida que me contava
percebi que também esses haviam sido meus amores.
E assim ela conta que aos sete anos ganhou de presente Reinações
de Narizinho. Não o amou imediatamente. Os números de páginas
a assustaram. Ela o guardou e continuou nas histórias em quadrinhos.
Mas seu tio que tinha lhe dado Reinações de Narizinho, chegou
um dia em sua casa e lhe perguntou: “Então minha querida,
você já leu o livro que lhe dei de presente?” E como
ela ainda não tinha lido, fez uma cara meio vaga, pois ficou sem
jeito de dizer que não tinha dado tanta importância assim
àquele presente. Passado um tempo, ele lhe fez a mesma pergunta.
E assim, ela não teve outro jeito: tirou o livro do armário,
se encheu de coragem e começou a ler: “Numa casinha branca,
lá no sítio do Picapau Amarelo...” E quando chegou
ao fim do livro ela começou tudo de novo. E aquela gente toda do
sítio do Picapau Amarelo, começou a virar a sua gente.
Logo ela ganhou uma porção de livros do Monteiro Lobato.
Ela leu e experimentou todos. Mas Reinações de Narizinho
tinha lhe dado um prazer tão intenso, que era para ele que ela
voltava sempre, ao longo da sua infância.
Esse livro sacudiu e acordou a sua imaginação. Com ele a
sua imaginação tinha despertado. Agora ela queria imaginar.
Esse acordar da imaginação começou a mudar tudo.
De repente, já não lhe bastava cantar junto a música
que tocava no rádio só repetindo as palavras e mais nada.
Agora ela cantava querendo imaginar as coisas que falava. Como elas eram.
A forma? As cores? E assim com tudo que fazia, permitia que sua imaginação
imaginasse.
Quanto a mim, eu não sei se aos sete anos eu também não
teria guardado meu Monteiro Lobato no armário! Não tenho
como saber pois conheci os personagens de Lobato através da TV,
com o programa O sítio do Picapau Amarelo. Assim conheci a Lúcia,
o Pedrinho, a Emília... Não tive o prazer de conhecê-los
através do livro. Mas esse mundo compôs de uma forma ou de
outro meu universo infantil. Às vezes, esse meu universo infantil
era povoado por príncipes, princesas, Lobo Mau, Chapeuzinho Vermelho,
Branca de Neve, Patinho Feio..., que somente mais tarde pude compreender
que eram personagens do mundo de Andersen , Grimm , Perrault.
O segundo e o terceiro casos de amor aconteceram quando ela tinha dezessete
anos. Foi uma história de amor por dois ao mesmo tempo. Uma típica
adolescente. Não sabia qual escolher. Eles vinham de lugares opostos.
Um norte americano de Boston (Edgar Allan Poe) e o outro russo de Moscou
(Dostoievski) . Ela não os podia escolher e eu sequer os conhecia.
Esse mundo literário, nos meus belos dezessete anos, estava à
margem de minhas histórias. Também eu, como uma típica
adolescente, namorei muito e borboleteava na periferia dos acontecimentos
mais profundos. Isso me desesperava. Desespero era a palavra que sintetizava
a descrição do ar que ela respirava das obras de Dostoievski.
Ela gostava de tudo que lia. Mas a obra que ela amava era Crime e Castigo,
simplesmente por sua paixão pelo personagem principal: Raskolnikov.
Ela saia desse encontro e ia se encontrar com Poe com sua coletânea
de contos. E nesse encontro, sua imaginação não parava
de se beneficiar do convívio com ele.
Foram muitos os anos que separaram os seus três primeiros casos
de amor dos outros três. Nesse ínterim, ela conheceu diversos
outros autores, inclusive mulheres. Ficou também fascinada por
elas. Mas nada que lhe provocasse a química necessária para
transformar-se em um caso de amor.
Assim, o seu quarto caso de amor é um daqueles que ela tem vergonha
de falar. E para ser fiel a ela, vou contar o milagre, mas não
vou dizer o nome do santo. Ele estava na moda e todo mundo estava lendo.
Uma de suas melhores amigas, a Ana Lúcia, já havia lhe alertado
que esse autor era ruim demais. Que ele não tinha criatividade
e nem originalidade. Escrevia como receita e blábláblá...
E disse mais... que ela deveria prestar atenção no que estava
acontecendo em sua vida de leitora, pois ela poderia estar doente... E
ela não lhe deu ouvidos. Continuou procurando desesperadamente
o tal do autor, para ler tudo que ele escrevia. E deu pra ler o fulano
escondido. Pra nunca mais a sua amiga e nem ninguém lhe pegar com
ele. E só aí percebeu que ela estava em pleno caso. Desses
que a gente fica pensando, nossa! Como é que isso foi acontecer
comigo?
E lá um dia, anunciaram o último lançamento dele.
Como de costume ela correu, comprou e foi lendo, com a mesma avidez, com
a mesma escondidez de sempre. Mas, à medida que ia lendo, ia ficando,
primeiro, perplexa, depois indignada. E quando ela chegou ao fim do livro,
ela estava se sentindo traída. Cadê a receita? Os ingredientes
todos? Nada! Nada! O fulano tinha feito uma viagem à Índia,
e agora ele mudava todos os ingredientes e lhe dava em troca somente uma
descrição das coisas. Decepcionada, ela jogou fora o livro
na hora, telefonou para a Ana Lúcia e desabafou. Sua amiga achou
graça. E ela ficou danada da vida; jurou que nunca mais ia ler
nada daquele fulano. E no meio dessa explosão emocional, de repente,
ela se deu conta de como é forte a transa livro-e-a-gente. E assim
esse caso negativo também se tornou positivo na medida em que ela
pôde refletir sobre o que significa ser leitora.
Assim como ela, também não escapei desses casos vergonhosos.
Mas diferente dela, que teve apenas um caso vergonhoso, eu tive vários!
Li diversos livros: tipo auto-ajuda, religiosos... Esses que enchem as
prateleiras das livrarias e não possibilitam o alimento necessário
à imaginação. Foram mais desamor do que amor. Por
sorte, essa fase ruim passou. É melhor mudarmos de conversa.
Seu quinto caso de amor foi maravilhoso. Esse amor eu também vivi
com muita intensidade. Ele era genial. Ele se chamou Rainer Maria Rilke.
O Rilke, como ela o chamava com intimidade. O seu caso foi com um determinado
livro dele - Cartas a um jovem poeta- que ela levava para todos os lugares
e em todos os momentos. De tanto ir para cá e para lá, de
tanto cair no chão, o livro foi despencando todo. Mas mesmo com
o livro naquele estado, não tinha sociedade de consumo que lhe
convencesse a jogá-lo fora, e comprar um outro novo. Não!
Ela queria aquele daquele jeito: vivido com ela. Então, quando
o livro ficou naquele estado de despencamento, Ela não teve outro
jeito: levou ele pro hospital. E o tal médico de livros era um
leitor também. Só que ele não comprava livros; só
lia livro que ia se tratar com ele. E lá um dia ele telefonou dizendo-lhe
que o livro tinha tido alta. Ela foi buscá-lo, e foi muito gostoso
o retorno pra casa. Juntinhos. Ela repassou carta por carta. Foi um reencontro
belíssimo. No princípio, novamente eles não se largavam.
Depois, a coisa foi serenando, e então, ele foi morar na estante.
E ficou lá. Com aquela dignidade, com aquela postura que os livros
ficam na estante esperando pela gente. E no dia que ela tirou o Rilke
da estante pra ler uma carta dele pra uma pessoa muito querida, aconteceu
uma coisa horrível!
Mas antes eu preciso contar pra vocês como foi o meu encontro com
Rilke. Foi também intenso, mas diferente do dela. Eu o conheci
através de um grande amor argentino. Desses amores que entram em
nossa vida e jamais se vão. São profundos! Permiti-me viver
um amor sem fronteiras. Seu amor generoso e sensível casava perfeitamente
com tudo que o Rilke me falava através de suas cartas. E cada vez
mais, minha relação com o Rilke se intensificava. Ele também
foi comigo para muitos lugares... E principalmente habitou meu coração.
Ele falava de solidão, mas preenchia todo meu ser. Ele me acalmava
e me ensinava que valia a pena viver bem a vida. Eu não parava
de lê-lo.
Não lembro o porquê, mas por alguma circunstância ele
também foi morar na estante. E sempre que quero matar a saudade,
leio e releio uma de suas cartas. Agora vocês devem estar se perguntando:
E o que aconteceu de tão horrível na história dela?
O Rilke morreu afogado. Sim, afogado! Ela tinha começado a namorar
essa pessoa pra quem ela ia ler uma carta do Rilke. Eles estavam sentados
na pedra do Arpoador (um lugar lindo no Rio de Janeiro) pois é
muito legal ficar lá, conversando bem de cara pro mar. Era um fim
de tarde cinzento e com cara de chuva; um ventinho muito frio; o mar super
de ressaca. E lá pelas tantas, num movimento que ela fez com a
perna, sem querer ela deu um chute no Rilke, que estava sentado do lado
deles, e ele se despencou no mar. Ela gritou desesperada: “O Rilke
caiu n’água! O Rilke caiu n’água!” Ela
queria se jogar também. Obviamente que seu namorado a impediu.
Mas ela, num desespero, só ficava olhando para o mar dizendo: Olha
ele lá se afogando, olha ele lá se afogando! E na tentativa
de acalmá-la seu namorado mencionou que eles poderiam comprar um
outro Rilke. E cada vez mais ela chorava e chorava dizendo que ela não
queria outro, ela queria aquele que estava lá mergulhado no mar.
E naquela confusão toda seu namorado, enfaticamente, lhe disse
que o Rilke não era o único poeta, que tinha outros poetas!
E dizendo essas duras palavras para ela, seu namorado fez ela se sentar
e sem nenhuma explicação, sem nenhuma preparação,
tirou um livro do bolso e leu um poema pra ela. Quando ele fechou o livro,
ela, já mais calma espiou: Poemas de Alberto Caeiro . Acontece
que o seu namorado amava o Fernando Pessoa. Acontece que ela amava o seu
namorado. E acontece ainda que ela era bastante moça e então
ela achava que se ela amava o seu namorado, ela devia amar tudo o que
ele amava. Então foi assim que, naquele dia cinzento, quando o
Rilke morreu afogado, ela começou o seu último caso de amor.
Um caso que teve duas particularidades: a primeira é que foi um
caso acontecido em dois tempos: naquela época com seu namorado
(uma espécie de triângulo amoroso) e em outro momento quando
estava sozinha.
É difícil silenciar encontros que se pode ter com Fernando
Pessoa. Eu estava na universidade e uma amiga da minha irmã falava
sobre poetas, e ela disse:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente .
Essas palavras foram um solavanco em meu estômago.
E pensei: como ela poderia dizer isso. Não entendia nada! Ignorância
minha! Criei coragem e lhe perguntei. Quem disse isso? Você não
sabe? Disse com um ar de superioridade. Foi Fernando Pessoa. Silenciei.
Pensei: não tinha nenhuma intimidade com ele. Era um nome conhecido
para mim. Mas seus poemas não!
Eu vivia num mundo diferente daquele da amiga de minha irmã. Nesse
momento, tinha uma veia revolucionária/ queria mudar o mundo/ cursava
Pedagogia. E lá não tinha espaço para a poesia. E
minha irmã e suas amigas viviam no universo das letras, viviam
falando de Pessoa, Clarice, Walt Withimam....Eu as invejava...
Naquele dia, aquelas palavras me provocaram, e timidamente fui buscar
a poesia de Fernando Pessoa. Nessa busca eu encontrei o Fernando mas não
o Pessoa – ele vinha do mundo das artes. Ele me virou do avesso.
Foi um amor fulminante. E com ele vivi muitas outras histórias
por esse Brasil de norte a sul. E...nos despedimos de braços abertos....Mas...
Essa história é muito longa e eu não posso contá-la
nesse momento.
Confesso que até hoje, eu e o Fernando Pessoa não somos
íntimos. Abro um de seus livros e é como se fosse a primeira
vez. E aos poucos vamos dando saltos em nossa intimidade de amor.
O namoro dela foi indo, foi dando umas cabeçadas de sono, meio
que fechando o olho, e lá um belo dia caiu num sono profundo e
nunca mais acordou. Nunca mais ela se lembrou de ler um poema sequer do
Pessoa. E se passaram dezessete anos.
Um dia, a Ana Lúcia (sua amiga) telefonou, chamando-a pra jantar
num restaurante que elas curtiam muito. Era uma segunda-feira de noite.
Um toró medonho batendo lá fora.
Mas assim mesmo ela foi. E quando ela chegou a sua amiga Ana Lúcia
já estava lá. Só que a Ana Lúcia estava agitada,
e foi logo explicando que tinha acontecido um imprevisto e que não
podia ficar. Precisava sair correndo, encontrar não sei quem, mas
que ela ia fazer o possível pra não demorar. E aí
abriu a bolsa, tirou um livrão lá de dentro, botou ele em
cima da mesa e disse: “olha, eu te deixo em ótima companhia”.
E saiu correndo. Ela lamentou muito a saída da amiga, mas logo
compreendeu. E quando ela deu de cara com o livro se espantou. Vocês
não podem imaginar quem era. Era ele, Fernando Pessoa: Obra Poética.
Eles ficaram se olhando um tempão. Depois, ela abriu o livro, e
foi folheando. Alguns poemas lhe pareceram familiares. E começou
a ler. Assim, ao acaso. E se encantava.
A Ana Lúcia não voltou naquela noite. Pela primeira vez
ela e Fernando Pessoa ficaram a sós. Que redescoberta! Ela sabia
que, agora sim, ia começar um verdadeiro caso de amor entre eles
dois. A cada poema lido voltava todo o mundo, todo o espaço onde
ela se movia naquela época. Mil lugares. Mil cheiros. Mil sensações
esquecidas de dezessete anos atrás voltaram pra ela naquela noite.
Ela nem havia percebido, mas o restaurante já estava fechando...
E teve que ir embora. Ela tinha ido sozinha, mas saiu tão de mãos
dadas com o Fernando Pessoa... e tão encantada de ver a outra cara
bonita que o livro lhe mostrava naquela noite: a cara da paciência.
É, os livros e as histórias esperam pela gente. Feito coisa
que parece saber que o caso com a nossa imaginação vai ser
tão mágico, tão sem limite, que vale a pena mesmo
esperar.
Esta mulher me permitiu que eu me apaixonasse por ela e me possibilitou
reconhecer que os seus amores eram também os meus casos de amor,
me ensinou a encontrar formas, estrelas, canções emprestadas,
luzes alheias, até conseguir iluminar meu caminho com luzes próprias,
com cheiros, e ritmos próprios.
Essa mulher se chama Lygia Bojunga, ela me faz sentir criança quando
leio suas obras e ao mesmo tempo mais humana por falar baixinho de tantos
sentimentos fortes. Brasileira, nascida em Pelotas, e criada no Rio de
Janeiro, escreveu diversos livros . Seus amores foram um paralelo para
eu falar do amor que sinto por ela e me reconhecer como uma leitora, como
uma contadora de história em formação.
Hoje penso que as pessoas são pontes que nos levam a amar a literatura
e as histórias. E a literatura é o conjunto de extremidades
e de rios, de faróis e de mares, desse espaço indescritível
que fica entre o céu e a terra. Muitos livros contêm palavras
que nos possibilitam voar, saltar, visitar mundos inexistentes. Parafraseando
Tolstoi, as palavras são pontes de arco-irís que ligam coisas
eternamente separadas.
Finalizo esta narrativa com a voz dela, embora a minha voz e a dela estejam
misturadas nessa história. Mas foi ela que simplesmente me emprestou
os braços e o sopro de sua voz para embarcar em minha memória
e contar esta história a vocês. Sendo assim, chegamos ao
final dessa viagem aportando o nosso barco em nas palavras de Lygia:
A gente bota essas experiências fortes de lado,
mas elas ficam acontecidas dentro da gente; e os fragmentos delas formam
um novo desenho lá no fundo do nosso caleidoscópio. Um caleidoscópio
que o Tempo vai virando. Só que no nosso caleidoscópio as
imagens viradas – mesmo parecendo que nunca mais vão voltar,
acabam aparecendo de novo – porque a gente não deixa de ser
cada desenho que criou (Bojunga, 1998, p. 9)
Considerações Finais
Comunicar essa experiência e ao mesmo tempo refletir
sobre esta prática singular me possibilitou perceber que a formação
de um leitor não é um caminho de mão única,
senão mediado por muitas ausências e desejos que se ressignificam
em muitas outras histórias. Assim, retomando a idéia defendida
por Kramer sobre a leitura e escrita como experiência, foi vivenciar,
nas palavras da autora, “uma dimensão para além do
finito, contando-se no texto. O que faz de uma escrita uma experiência
é o fato de que tanto quem escreve quanto quem lê enraízam-se
numa corrente, constituindo-se com ela, aprendendo com o ato mesmo de
escrever ou com a escrita do outro, formando-se” (Kramer, 2000,
p. 110).
Esta historia, que já é uma nova objetividade, tem a potencialidade
de andar e desandar muitas vezes. Os autores que foram citados no texto
marcaram e marcarão esta narradora, mas também abrirão
múltiplas passagens para aqueles outros “narradores da escuta”,
porque afinal, sempre podemos ser Scherazade ao imaginarmos uma nova historia
em cada passagem da historia que se está contando.
Referências
BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Magia e Técnica,
Arte e Política. Obras Escolhidas Trad. Sergio Paulo Rouanet: São
Paulo. Brasiliense, 1985. p. 197-221.
BOJUNGA, Lygia. Livro: um encontro com Lygia Bojunga. 4.ed. Rio de Janeiro:
Agir. 1998.
KRAMER, Sônia. Leitura e escrita como experiência –
notas sobre seu papel na formação. In: A Magia da Linguagem.
Edwiges Zaccur (org.). Rio de Janeiro: DP&A: SEPE, 1999. p.101-121.
CERTAU, Michel de. Ler: uma operação de caça. In:
A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1994.
p.259-272.