Introdução
O debate atual sobre como encaminhar o processo de alfabetização
qual método utilizar e como utilizá-lo em sala de aula,
se introduz de forma polêmica, pois os especialistas da área
defendem diferentes posições: uns são favoráveis
à adoção de métodos diversos, outros defendem
a adoção de um único método. Essa discussão
polêmica sobre metodologias de alfabetização circula
nas diversas esferas da sociedade: nos meios acadêmicos, nas escolas,
em conversas informais e na mídia. Periódicos ou revistas
especializadas, como, por exemplo, as revistas Nova Escola, Pátio
e Presença Pedagógica são um meio comum de produção
e circulação desse debate. Essas revistas disponibilizam
teorias produzidas nos meios acadêmicos para professores atuantes
nas salas de aula de escolas públicas e particulares. Hoje em dia,
duas dessas revistas são distribuídas pelo Ministério
da Educação às escolas do Ensino Fundamental. Diante
desse quadro, entendemos que seria relevante examinar como a questão
da alfabetização tem sido abordada nesses periódicos.
Afinal, que posição sobre metodologias de alfabetização
tem sido adotada e divulgada nessas revistas? Neste artigo apresentamos
algumas reflexões resultantes de análise de conteúdo
(Bardin, 2002) de artigos publicados em periódicos sobre esse tema.
Na primeira seção descrevemos brevemente o processo analítico
desenvolvido, e nas seções seguintes, tecemos algumas reflexões
acerca das questões que buscamos investigar.
O processo analítico: decisões teórico
metodológicas e organização do corpus
Tendo como ponto de referência controvérsias
em torno do processo de alfabetização, realizamos um levantamento
bibliográfico em doze periódicos (acadêmicos e não
acadêmicos ) buscando identificar textos sobre o tema metodologia
de ensino da escrita. Desse levantamento inicial foram selecionados 77
artigos, publicados entre 1985 e 2003, dos quais quarenta e oito haviam
sido publicados na revista Nova Escola.
A Nova Escola é uma revista escrita por jornalistas, destinada
a professores do Ensino Fundamental. O objetivo da revista, conforme apresentado
em seu editorial, é o de formar um professor atualizado com o que
há de mais novo na educação e capaz de concretizar
uma “Nova Escola”. Assim, a revista se apresenta como uma
aliada, como uma amiga, uma interlocutora disposta a dar apoio ao professor
que deseja modificar e aperfeiçoar sua prática de trabalho.
Desde o seu lançamento, em 1986, a revista teve grande repercussão
entre os educadores e, recente, foi incluída no portal da CAPES.
O número significativo de artigos publicados pela Nova Escola sobre
o tema alfabetização e a importância que a revista
parece ter alcançado ao longo das últimas décadas
levou-nos a optar por tomá-la como objeto de estudo. Dessa forma,
selecionamos 34 textos tema metodologia de ensino da escrita nela publicados
para realização de análise de conteúdo (Bardin,
2002). Essa análise foi realizada com o objetivo de conhecer como
essa temática foi tratada ao longo do tempo por essa revista.
Inicialmente, realizou-se o que foi denominado de leitura “flutuante”
(Bardin, 2002). Essa leitura levou a identificação de tópicos
a serem detidamente re-examinados em cada artigo para que, posteriormente,
pudessem ser comparados e contrapostos ao conjunto restante de artigos.
Dentre esses tópicos, destacamos: concepções de alfabetização
e aprendizagem, métodos de alfabetização defendidos,
autores citados, tipo de atividades sugeridas ou relatadas, características
discursivo-textuais das matérias. A partir dessa análise
foi possível identificar três grandes conjuntos nessa produção:
o primeiro é constituído por dez textos publicados entre
1986-1988. O segundo grupo é composto por 12 textos publicados
entre 1989-1994. O terceiro grupo é uma coleção de
12 textos mais recentes, publicados entre os anos de 1995-2003. Apresentamos
a seguir nossas conclusões sobre como tema focalizado foi abordado
nas matérias analisadas.
As publicações feitas entre 1986-1988: a
ruptura com tradições passadas e a instauração
do novo.
Nos artigos publicados na revista Nova Escola entre 1986-1988 sobre o
tema metodologia de ensino da escrita a proposição de ruptura
com tradições de ensino da escrita é feita por meio
da ênfase aos seguintes aspectos: críticas às cartilhas
tradicionais de alfabetização feitas com base nas idéias
de Paulo Freire, divulgação das idéias de Emília
Ferreiro quanto à criação de um ambiente propício
para a alfabetização e a concepção de aprendizagem
adotada por essa autora.
As cartilhas tradicionais de alfabetização são criticadas
em razão daquilo que se denomina como valorização
exclusiva dos processos de codificação e decodificação
da escrita. As críticas às cartilhas podem ser vistas, por
exemplo, no texto “Bê-á-bá, para tudo ficar
como está” (NE n.12, p.38-42, 1987) que apresenta o resultado
de análise de seis cartilhas de alfabetização, publicadas
pela Secretaria de Educação e destinada ao programa Nacional
de Ações Sócio-Educacionais para o meio rural (Pronasec),
realizada pela especialista, Marlene Rodrigues. De acordo com a matéria,
a pesquisadora argumenta que as cartilhas apresentam um contexto de vida
irreal, distorcem as reais condições de vida dos indivíduos,
enfatizam o conteúdo com um propósito puramente fonético
e, acabam transformando a alfabetização num processo mecânico.
Como alternativa a essa perspectiva de trabalho, apresenta-se a abordagem
proposta por Paulo Freire que ampliaria o conceito de alfabetização
em vigência na época, ao evidenciar a dimensão política
desse processo. Enfatiza-se, assim, a necessidade de que o processo de
ensino possibilite ao aluno refletir sobre o contexto no qual está
inserido, por meio da leitura de textos ligados à sua realidade.
A alfabetização passa, portanto, a ser vista como instrumento
de reflexão do aprendiz sobre o mundo e deixa de ser mera aquisição
das habilidades de codificação e decodificação
da escrita.
É interessante notar como a revista Nova Escola caracteriza o “método
Paulo Freire” destinado à alfabetização. Vejamos
um trecho extraído de outra matéria :
“... tem a particularidade de estimular a criança
a pensar sobre as palavras que está começando a conhecer,
fazendo com que ela desenvolva uma consciência crítica. Esse
processo é iniciado a partir das palavras geradoras, compostas
de fonemas que se desdobram para formação de outras palavras”.
“A primeira dessas palavras é vida. Através, dela,
os alunos já aprendem as duas famílias fonéticas
de cada sílaba, jogando cada fonema de modo a criar novas palavras”.
(NE nº 1.p.58, 1986).
A proposta metodológica de Paulo Freire é
apresentada como uma alternativa para a significação do
processo de aprendizagem por meio da ênfase dada ao significado
e a recusa do caráter irreal dos textos que não leva em
consideração o contexto regional no qual o aluno vive para
organizar as experiências de ensino. A orientação
adotada pelas matérias é de que se parta de um contexto
significativo para o trabalho com grafemas e fonemas, famílias
fonéticas; sílabas que formarão palavras e frases.
Para compreendermos o que estava sendo criticado na época é
necessário reler o que Paulo Freire afirma:
“De um lado, é verdade, não se pode
dispensar estes sons no trabalho de alfabetização. Mas,
de outro, só se pode procurar estes sons em palavras que tenham
ligação com a vida dos educandos, com a região em
que eles moram e até mesmo com a classe social a que pertencem”
(NE nº 3, p.49, 1986).
Freire afirma que é importante trabalhar com os
sons e realça que isso deve ser feito a partir de palavras que
tenham significado para o sujeito. Sendo assim, ele lembra que o processo
de codificação e decodificação tem importância
fundamental na alfabetização. Em momento algum, o autor
afirma que o processo de codificação e decodificação
deve ser excluído da alfabetização, apesar de ter
criticado o conteúdo puramente fonético das cartilhas. Veremos,
entretanto, no próximo grupo de textos que a teoria de Paulo Freire,
especificamente, no que diz respeito à percepção
das relações entre letras e sons, foi alvo de leituras equivocadas.
A negação do uso das cartilhas e dos métodos tradicionais
de alfabetização implicou na rejeição dos
trabalhos com os processos de codificação e decodificação.
A divulgação da concepção
de aprendizagem proposta por Emília Ferreiro
O segundo e o terceiro temas predominantes nos artigos
da Nova Escola, publicados entre 1986-1988, sobre a metodologia de ensino
da escrita referem-se às idéias de Emília Ferreiro
sobre a teoria da psicogênese da escrita e a criação
de um ambiente alfabetizador. A revista dará destaque, nesse período,
às postulações dessa pesquisadora sobre o processo
de alfabetização como resultante da interação
do aprendiz com a escrita, caracterizado como um processo em que o sujeito
aprende a escrever interagindo com a língua escrita, fazendo uso
de seus conhecimentos prévios e testando suas hipóteses
sobre o funcionamento da mesma.
À luz desses princípios advindos da Psicologia genética,
a discussão sobre métodos de alfabetização
e a crítica às cartilhas tornam-se temas periféricos
nas matérias publicadas entre 1983 e 1986 e são substituídos
pelas propostas didáticas fundadas nas idéias de Ferreiro.
Nesse sentido, a revista prioriza a publicação de propostas
didáticas fundadas nas idéias de Emília Ferreiro
e enfoca, principalmente, a criação de um ambiente alfabetizador
e dos materiais de leitura e de escrita que devem ser trabalhados no referido
ambiente.
A criação do ambiente alfabetizador
A Nova Escola orienta o professor disposto a criar o ambiente
alfabetizador, disposto a transformar e a organizar o espaço da
sala de aula, com o propósito de motivar à aprendizagem
da leitura e da escrita. Os textos “Alfabetizar crianças
pobres” (NE nº6, p.40-44, 1986) e “Há um novo
caminho para ensinar a ler e a escrever” (NE nº15, p.10-15,
1987) apontam os materiais que compõem o ambiente alfabetizador
e sugerem as atividades podem ser realizadas a partir dos diversos gêneros
textuais e de materiais de leitura e de escrita ligados ao cotidiano dos
alunos. Segundo os autores das matérias publicadas, o objetivo
dessa prática é o de promover o ensino da língua
na sua perspectiva funcional, ou seja, situada nas práticas sociais
de leitura e de escrita. Essa mudança na concepção
do ensino da língua sinaliza que outras habilidades precisam ser
avaliadas, além do saber ler e escrever. Passa-se, então,
a enfatizar que o sujeito precisa aprender a decodificar e também
se apropriar dos seus significados e das práticas sociais a esses
vinculadas, utilizando assim suas habilidades de forma funcional.
A revista Nova Escola passa a direcionar suas publicações
referentes à metodologia de ensino para alfabetização
priorizando a função social da escrita. Se num primeiro
momento a alfabetização fora tratada como a aquisição
das habilidades de codificação e decodificação,
num momento posterior, o trabalho volta-se totalmente para a compreensão
dos usos sociais da leitura e da escrita.
As publicações feitas entre 1989-1994: idéias que
configuram o Construtivismo na revista Nova Escola e a concepção
de alfabetização
A partir da leitura dos textos referentes à metodologia
para alfabetização, publicados na revista Nova Escola, no
período de 1989-1994, verificamos que o tema predominante é
a divulgação do Construtivismo no Brasil. Neste momento,
temos dois objetivos: descrever as principais idéias divulgadas
sobre essa teoria, verificando como ela é compreendida a partir
da ótica da revista, e mostrar a concepção de alfabetização
da época. Identificaremos, também, nos artigos publicados,
alguns possíveis equívocos de interpretação
da teoria que, inevitavelmente, têm suas implicações
na prática pedagógica.
A desmitificação de algumas justificativas
para fracasso escolar
A revista Nova Escola faz uma crítica aos professores
que identificam no aluno ou no seu meio as causas para fracasso escolar.
Geralmente, a revista, recusa dois argumentos que tradicionalmente são
usados para justificar a não aprendizagem do estudante: a inteligência
como um dom e a visão de que a criança, advinda das camadas
populares, tem uma cultura pobre, o seu dialeto é deficiente, quando
comparado com aquele que é usado pelas elites econômicas.
Podemos inferir, a partir dessas considerações, que sobre
o fracasso escolar, a Nova Escola posiciona-se contra as teorias do dom
e do déficit cultural e lingüístico da criança.
A Nova Escola nos textos (NE nº 36, 1989 e NE nº 56, 1992) adverte
para o fato de que as crianças advindas das classes populares têm,
também, um conhecimento lingüístico e que o dialeto
destes alunos é diferente, mas não deficiente e nem inferior,
como postula a teoria do déficit lingüístico.
O conhecimento prévio da criança sobre a
escrita e a concepção de aprendizagem segundo Emília
Ferreiro
Nos textos analisados, referentes ao período de
1989 a 1994, encontramos trechos que tratam do conhecimento prévio
do aluno em relação à escrita.
É interessante notar que a Nova Escola publica depoimentos que
fazem referência a teoria da psicogênese da escrita, de Emília
Ferreiro mas não explica as contribuições dessa teoria.
O depoimento de uma professora evidencia esse fato: “Muda toda a
relação da professora com a alfabetização,
com o objeto da escrita e com a criança. Ao entrar em contato com
a teoria da psicogênese da língua escrita, de Emília
Ferreiro, a alfabetizadora encontra um instrumento que lhe permite entender
o processo de aquisição do conhecimento” (NE nº65,
p.8, 1993).
Notamos que os fundamentos da teoria não são explicitados
e não há orientação para trabalhar com o conhecimento
prévio da escrita ou uma explicação sobre as hipóteses
que a criança formula a respeito da língua. Desta forma,
a revista afirma determinados princípios, mas não apresenta
fundamentos teóricos das mesmas.
A permanência das cartilhas de alfabetização
e a negação do livro didático nas escolas
Alguns materiais didáticos utilizados para alfabetizar,
como os cartilhas e os livros didáticos foram recusados com a divulgação
do Construtivismo. Esses materiais não poderiam fazer parte de
uma prática pedagógica construtivista como mostra o depoimento
a seguir: “Além disso, numa proposta construtivista de ensino,
não entram cartilhas ou livros didáticos, embora a sala
de aula se transforme totalmente, criando-se o que se chama ambiente alfabetizador.”
(NE nº48, p.10-18, 1991)
O uso do livro didático na sala de aula é muito significativo;
ele funciona como um orientador porque fornece para o professor, geralmente
despreparado, um caminho metodológico a ser seguido. Recusar o
uso desse material didático exige, da parte do professor, o domínio
de certos princípios teóricos que fundamentem o ensino da
leitura e da escrita. A ausência de princípios teóricos
somada a ausência do livro pode conduzir a uma prática baseada
no improviso.
As cartilhas tradicionais de alfabetização também
foram condenadas, mas o que se observa é que elas permaneceram,
apesar das críticas. No texto “Cartilhas fecham as portas
da criatividade ao professor” uma pesquisadora informa que as cartilhas
estiveram durante alguns anos na lista dos dez livros didáticos
mais vendidos no país, e a causa de seu sucesso deve-se, segundo
a pesquisadora, à insegurança dos professores para ensinar;
os cursos de magistério enfocam o conhecimento de métodos,
técnicas, cartilhas; os futuros professores desconhecem, assim,
como a criança aprende. Portanto, a insegurança e o desconhecimento
da teoria de Ferreiro justificaria a adoção das cartilhas.
A ênfase na função social da escrita
e a sua implicação na alfabetização
Tendo como objetivo formar um novo professor que trabalhe
na perspectiva construtivista, a Nova Escola enfatiza, nos textos publicados
entre 1989-1994, o trabalho de alfabetização no qual a escrita
e a leitura devem ser aprendidas em sua dimensão social. Ao conceber
a aprendizagem da língua dessa forma, a revista sugere algumas
práticas e segue as idéias de Ferreiro (1997) chamando atenção
para a importância da seleção dos materiais que devem
ser utilizados na alfabetização como textos que circulam
socialmente e não aqueles que aparecem nas cartilhas, pois esses
últimos, geralmente, enfatizam os mecanismos de decodificação
da escrita e não levam em conta a função comunicativa
da língua.
No texto “O que está dando certo no trabalho com adultos”
(NE nº23, p.44) uma das especialistas dirige-se ao professor e o
(...) “aconselha invadir a classe com um mundo gráfico: cartazes,
revistas, jornais, embalagens...”.
Em sua dissertação, Martha L. Vieira destaca os seguintes
trechos da Nova Escola: “Se ele oferecer o contato com a leitura
e a escrita, a criança vai desenvolver espontaneamente o seu processo”
(NE nº28 p.35, 1989 apud Vieira, 1995). “Não forçamos
nada, o crescimento depende exclusivamente do aluno e o objetivo do professor
é coordenar, sem qualquer espécie de participação
impositiva. Priorizamos a autonomia do indivíduo” (NE nº45
p.34 apud Vieira 1995)
A partir dos trechos citados, é possível verificar a pertinência
das considerações de Magda Soares (Batista, et al 2004,
v.1, p.31) quando afirma que a perspectiva construtivista e os estudos
baseados no letramento conduziram a diferentes equívocos. De acordo
com a autora, “... dirigindo-se o foco para o processo de construção
do sistema de escrita pela criança, passou-se a subestimar a natureza
do objeto de conhecimento em construção, que é fundamentalmente
um objeto lingüístico...”.
Essa faceta lingüística foi suprimida da alfabetização
quando se acreditou que as crianças, por meio do contato com o
texto e o seu uso, são capazes de fazer descobertas espontâneas
sobre as relações entre a oralidade e a escrita, entre os
fonemas e os grafemas. Alguns interpretaram que o ambiente alfabetizador
por si só, promove a aquisição da escrita e da leitura.
A adoção dessa idéia faz com que o professor não
interfira na aprendizagem, deixando que o processo ocorra de forma espontânea.
É evidente nos textos anteriormente citados que a Nova Escola orienta
o modo como o professor deve fazer as atividades, o que utilizar para
que o trabalho esteja adequado a uma perspectiva construtivista. No entanto,
não há explicações nos textos que justifiquem
o uso de determinados materiais de leitura. Entre os anos de 1989 até
1994, a ênfase dada ao contexto social do uso da língua faz
com que a dimensão lingüística do ensino da escrita
seja rejeitada fazendo com que a alfabetização perdesse
a sua especificidade. Os exemplos a seguir, retirados do texto “Dez
anos de Construtivismo no Brasil, evidenciam a negação do
trabalho com as relações entre fonemas e grafemas : (...)
“professores que se dizem construtivistas” (...) mas continuam
“ensinando silabação, montando e desmontando palavras,
num mero exercício de memorização” (NE nº48,
p.17, 1991). O 2º exemplo evidencia-se no depoimento de Aparecida
Mantovani . Ela afirma que, em São Paulo, os professores (...)
“tem uma tendência obsessiva pela silabação.
E eu fico sem saber como agir quando o professor, ao perceber a dificuldade
das crianças com uma determinada palavra, passa a dividi-la em
sílabas. Eles dizem que isso ajuda a fixação. E eu
tenho dúvida se devo continuar censurando essa atitude” (ibid
p.17)
Percebemos, a partir dos fragmentos extraídos da revista, que o
trabalho com sílabas é visto como algo tradicional e, portanto,
não é legítimo e não deve fazer parte de uma
prática construtivista. A negação de atividades com
as sílabas e com as letras inviabiliza o processo de alfabetização;
o conhecimento das relações entre grafemas e fonemas é
uma condição para alfabetização. A dúvida
apresentada pela coordenadora evidencia o equívoco de se negar
o trabalho com as sílabas. Sabemos que os docentes experimentam
um conflito teórico-metodológico ao discutirem a possibilidade
de trabalhar ou não com sílabas, ainda que saibam, na prática,
que tais atividades têm resultado positivo. Quando essa prática
é negada a confusão se instala; também quando os
professores não têm, de forma clara, os conhecimentos fundamentais
para tratarem do processo de alfabetização como, por exemplo,
o processo de codificação e a decodificação.
Afirmamos anteriormente que um dos equívocos gerados a partir da
má interpretação das idéias de Paulo Freire
fora o não entendimento de que o autor questionava o conteúdo
das cartilhas que valorizavam exclusivamente o processo mecânico
da língua. Notamos que esse equívoco permanece no período
em que a Nova Escola divulga o Construtivismo e o processo de codificação
e de decodificação passa a ser negado também na perspectiva
construtivista da revista. A Nova Escola não diz que a proposta
das cartilhas de alfabetização contempla o processo de codificação
e de decodificação da escrita e sem passar por esse processo,
o sujeito não é alfabetizado. Nesse sentido, o equívoco
que marca o período pode ser resumido no depoimento de uma professora:
“Ao fazer a opção pelo construtivismo nega-se tudo
o que se fazia antes”, (NE nº65, p.9, 1993).
Os professores ficam perdidos sem saber o que é, ainda, válido
daquela antiga prática. É interessante notar a declaração
da referida professora: “E você não sabe nem reutilizar
o que já sabia”.(NE 65, p.9). Constatamos, mais uma vez,
a falta de conhecimentos do professor sobre os fundamentos essenciais
da alfabetização. Esses equívocos são, provavelmente,
resultantes do não discernimento das práticas e dos princípios
que sofreram rupturas ou que permaneceram, a partir da divulgação
da teoria da psicogênese da escrita no Brasil.
A ortografia
A Nova Escola utiliza-se da voz de Ferreiro para alertar
que o trabalho com a ortografia não deve ocorrer nas primeiras
etapas da alfabetização, pois a criança precisa compreender
o que é a escrita e como representá-la. A ortografia só
será adquirida nas últimas etapas do processo de alfabetização.
É interessante notar as interpretações equivocadas
quanto à intervenção do professor no trabalho com
as variações ortográficas. Um exemplo disso é
evidenciado no relato de uma professora que diz: (...)“na classe
não se diz mais está errado”, (...)“deixo que
os próprios alunos percebam que trocaram de posição
ou se esqueceram de colocar uma letra” (NE nº28, p.12-18).
“Crianças aprendem errando e descobrindo por si mesmas”
que afirma o seguinte: “o professor nunca deve corrigir os erros”
(NE nº33 p.27, 1989).A interpretação equivocada, no
caso, é que não se podem fazer qualquer tipo de intervenção
e que os alunos construirão sozinhos regras para que eles dominem
as variações ortográficas.
O que é alfabetizar
O texto “O que é alfabetizar?”, publicado
em 1990 apresenta a definição de autores de cartilhas, professores
universitários, Secretário de Educação sobre
a pergunta: “O que é alfabetizar?” (NE nº41, p.12-17,
1990).
Identificamos autores que concebem a alfabetização como
“... um processo lento, demorado e contínuo, que envolve
várias fases que vão do simples aprendizado de letras, sílabas,
palavras e frases, ao domínio perfeito de textos”.
Contrária a essa perspectiva que concebe alfabetização
como um processo que engloba a aquisição do código
lingüístico e o uso nas práticas sociais, Eloísa
Meireles, autora da cartilha “A casinha feliz” afirma que
a alfabetização restringe-se ao domínio da aquisição
mecânica da codificação e decodificação.
Já, Magda Soares, na época (1990), afirmou que a alfabetização
compreende não só a habilidade do sujeito saber codificar
e decodificar escrita mas, que ele seja capaz de usar essas habilidades
nas práticas sociais de leitura e escrita. Soares aponta dois eixos
que constituem o processo de alfabetização: a habilidade
de codificação e decodificação e o uso destas
duas habilidades em práticas sociais da leitura e da escrita.
Nesse texto “O que é alfabetizar”, publicado pela Nova
Escola em 1990 percebemos o início de um debate sobre o conceito
de alfabetização, a partir das divergentes concepções
de alguns autores. Veremos a seguir, que essa discussão é
retomada em publicações mais recentes da revista e geram
muita polêmica.
As publicações feitas entre 1995-2003: questões
conceituais sobre a alfabetização na revista Nova Escola
A característica predominante dos dez textos publicados
entre 1995 até 2003, na revista Nova Escola é a presença
de questões conceituais sobre alfabetização e a discussão
sobre o referido tema entre alguns autores. Para efeito de estudo, os
dez textos foram organizados em três subgrupos. O 1º subgrupo
esclarece questões conceituais sobre o Construtivismo, a teoria
da psicogênese da escrita. O 2º subgrupo reúne textos
que apresentam atividades de alfabetização que propõem
a exploração silábica e fonológica, usando
diversos gêneros textuais. No 3º subgrupo temos uma discussão
explícita de questões como, o que é alfabetizar?
O que é letramento? É possível distinguir o processo
de alfabetização do processo de letramento? O que é
consciência fonológica?
Nessa parte, direcionaremos nossa análise para o segundo e o terceiro
subgrupo, pois eles nos dão elementos para esclarecer alguns pontos
que orientam as discussões atuais que vêm ocorrendo nos meios
acadêmicos e aparecem nos grandes veículos de comunicação.
As diferentes posições dos autores em relação
às questões teóricas mencionadas permitem esclarecer
uma questão inicial desta pesquisa: quais as posições
que têm sido ditas e defendidas sobre a metodologia de ensino da
escrita e da leitura? Para responder a pergunta é necessário
entender a concepção de alfabetização dos
autores que orientam suas propostas metodológicas.
A apresentação de propostas para alfabetizar
letrando
O segundo subgrupo reúne textos publicados nos
anos de 1996, 1997 e 1998. São relatadas práticas em alfabetização
voltadas para o desenvolvimento de uma consciência de que as palavras
são constituídas por partes menores (sílabas e letras).
Citamos a seguir, um trecho da revista que evidencia isso: “Sheila
usava recortes de jornais, letras de músicas, gibis e textos dos
seus alunos de alfabetização” (NE nº 101 p.38,1997).
“Trouxe parlenda, quadrinhos infantis com versos e rimas que as
crianças adoraram. Usou embalagens e rótulos para recortar
sílabas e montar palavras” (NE nº 101 p.38-39)
Percebe-se nos textos que fazem parte desse subgrupo um certo equilíbrio
nas práticas de alfabetização que contemplam, ao
mesmo tempo, a dimensão social da escrita e da leitura e resgatam
a especificidade da alfabetização por meio do trabalho de
exploração das partes menores das palavras.
A relação entre alfabetização
e letramento e a discussão sobre a volta do método fônico
Nesta parte do trabalho, direcionaremos nossa análise
para dois textos que apresentam discussões fundamentais acerca
do conceito de alfabetização e letramento. Pretendemos esclarecer
como alguns autores têm se posicionado frente à duas polêmicas
atuais: a primeira é a possibilidade de distinguir o letramento
da alfabetização; a segunda refere-se à volta do
método fônico como solução para alfabetização.
O primeiro texto, “Ler e escrever de verdade”, publicado em
2001, apresenta relatos de professores sobre as práticas de letramento
na alfabetização. Constatamos em nossa análise, que
a palavra letramento é utilizada pela primeira vez dentre os 32
textos analisados, ou seja, a palavra letramento aparece apenas em dois
dos 34 textos analisados. Estes últimos são publicados nos
anos de 2001 e 2003. Percebe-se, todavia, que o conceito da palavra, letramento,
já havia sido divulgado em anos anteriores na Nova Escola.
São questões abordadas na publicação referente
ao ano de 2001: a necessidade de intervenção do professor
no processo de letramento, a distinção entre o sujeito letrado
e analfabeto e o momento adequado para começar a letrar. A revista
relata a experiência de uma alfabetizadora que promove práticas
de letramento desde a pré-escola. A alfabetização
é entendida nesse texto, como aquisição do sistema
convencional de escrita; o letramento, por sua vez, é entendido
como o desenvolvimento de comportamentos, e habilidades de uso competente
da leitura e da escrita em práticas sociais. Assim, mesmo sem saber
ler e escrever podemos considerar uma pessoa letrada, a medida em que
ela entende, faz inferências e participa das práticas sociais
de leitura e de escrita.
A revista baseia-se em Magda Soares e Ângela Kleiman para divulgar
a idéia de que, além de alfabetizar, ou seja, ensinar a
ler e a escrever, é preciso promover o letramento. A concepção
subjacente a essa afirmação é que a alfabetização
é um processo distinto do processo de letramento. Essa concepção
vem sendo, atualmente, questionada por alguns autores como é o
caso de Emília Ferreiro. A seguir, apresentamos como essa autora
se posiciona neste debate apresentado no texto, “Alfabetização
e Cultura Escrita”. (NE 162 p.27-30, 2003).
Emília Ferreiro: a alfabetização
como processo contínuo
Em maio de 2003, Emília Ferreiro concedeu uma entrevista
à Nova Escola que resultou na publicação do texto
“Alfabetização e cultura escrita”. A referida
autora faz críticas sobre a concepção de alfabetização
de Magda Soares e responde outros autores que defendem a volta do método
fônico na alfabetização.
Emília Ferreiro define alfabetização da seguinte
forma: “Considero a alfabetização não um estado,
mas um processo. Ele tem início bem cedo e não termina nunca.
Nós não somos igualmente alfabetizados para qualquer situação
de uso da língua escrita” (NE nº34 p.28, 1989). Pode-se
dizer que a sua concepção de alfabetização
é, entendida como um processo que compreende a aquisição
da base alfabética da língua e o uso adequado das diferentes
funções da escrita e da leitura nas práticas sociais.
Segundo Ferreiro, distinguir os processos é um retrocesso; pois,
teríamos que voltar às práticas do ensino tradicional
em que o aluno primeiro aprende a codificar e a decodificar para, posteriormente,
ler, compreender, produzir textos. Localizamos no texto da Nova Escola,
a passagem que evidencia essa idéia:
“Há algum tempo descobriram no Brasil que
se podia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização?
Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou
a ser o estar em contato com distintos tipos de textos, o compreender
o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um
período de decodificação prévio àquele
em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar
nisso é dar razão a velha consciência fonológica”
(NEnº34 p.29, 1989).
Magda Soares comenta sobre essas afirmações
de Ferreiro, no artigo publicado pela revista “Presença Pedagógica”,
Vejamos suas considerações:
(...) “Ninguém aprende a ler se não
aprender relações entre fonemas e grafemas - para codificar
e decodificar. Isso é uma parte específica do processo de
aprender a ler e escrever. Lingüisticamente ler e escrever é
aprender a codificar e a decodificar”. (Soares, 2003; 17)
Soares afirma que o processo de alfabetização
tem sua especificidade; o aluno deve compreender as relações
entre fonemas e grafemas; caso contrário não se alfabetiza.
No entanto, essa especificidade da alfabetização, essa faceta
lingüística foi, nas últimas décadas, negada
quando se deu ênfase, no ensino da escrita, às práticas
de letramento. Diferentemente do que interpreta Emília Ferreiro,
Soares, em momento algum, declara que a distinção dos processos
significaria voltar às práticas tradicionais da alfabetização.
Pelo contrário; a autora ressalta que “Não é
porque os processos de alfabetização e de letramento são
diferentes que devem ser sucessivos. O ideal é alfabetizar letrando”,
(NE nº145, p.13, 2001), ou seja, não devemos perder de vista
que estes processos são complementares e indissociáveis.
Ao conceber a alfabetização como aquisição
do sistema convencional de escrita e o letramento como o desenvolvimento
das habilidades de uso da escrita e da leitura em práticas sociais,
Magda Soares faz uma importante observação ao afirmar que
esses processos “distinguem-se tanto em relação ao
objeto de conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos
e lingüísticos de aprendizagem” .(...) (SOARES, 2003,
p.27-31). Segundo a autora, isso está relacionado com o ensino
de diferentes objetos e isso explica por que é conveniente distinguir
os dois processos. A autora sugere assim, um trabalho que considere as
especificidades de cada processo da alfabetização. No entanto,
nas últimas décadas, o processo da aquisição
da escrita e da leitura juntamente ao processo de letramento foram fundidos
e isso, ao longo do tempo, contribuiu para que a alfabetização
perca sua especificidade; a aprendizagem da base alfabética da
língua fica, assim, comprometida.
A volta do método fônico
A segunda polêmica abordada no texto da Nova Escola
“Alfabetização e cultura escrita” (NE nº34
p.12-19, 1989) refere-se à volta do uso do método fônico
na alfabetização. Explicitaremos a posição
de Emília Ferreiro sobre esse método e situaremos também
a origem dessa polêmica.
Alguns equívocos de interpretação acontecem e permanecem,
ainda hoje, quanto ao entendimento da teoria da psicogênese e do
conceito de letramento, conforme vimos anteriormente. Essas interpretações,
possivelmente equivocadas trouxeram conseqüências para a produção
de livros didáticos de alfabetização que, por sua
vez, passaram a dar ênfase na variação de gêneros
textuais e também nas funções sociais da escrita.
Acreditou-se que a crianças através do contato e uso do
texto faria, espontaneamente, descobertas sobre as relações
entre a oralidade e a escrita, ou seja, entre os fonemas e grafemas. A
crença neste “método natural” que supõe
uma alfabetização a partir do convívio com textos
fez com que o processo de decodificação da escrita no qual
se trabalha as relações entre fonemas e grafemas fosse ingnorado.
Acreditou-se, ainda, que a teoria da psicogênese da escrita seria
suficiente para superar o problema do ensino da aquisição
da escrita e da leitura. No entanto, não foi o que ocorreu. Já
na década de 90, observou-se a permanência de problemas pedagógicos
relacionados com a alfabetização, principalmente no que
se refere a metodologia de ensino do processo de aquisição
da leitura e da escrita. Muitos professores, ainda hoje, desprezam o livro
didático fundamentado pela referida teoria pois este não
é adequado para trabalhar a alfabetização, no seu
momento inicial pois há, geralmente poucas atividades de exploração
das palavras e das relações entre letra e som. O que vêm
acontecendo é que os docentes recorrem a outros materiais, como
os métodos tradicionais de alfabetização para complementar
suas práticas com o trabalho das relações entre fonemas
e grafemas .
Desde então, o debate intelectual sobre como encaminhar o processo
da alfabetização, qual método utilizar e a pertinência
da mescla de métodos é introduzida de forma polêmica;
alguns autores defendem ainda, a adoção exclusiva de um
ou outro processo para alfabetizar.
Fernando Capovila propõem a volta do método fônico.
Em novembro de 2003, Capovila declarou em um artigo publicado na Folha
de S. Paulo: “O mundo inteiro vem discutindo o método. Aqui
não, só existe a verdade de “santa” Emília
Ferreiro. O Brasil inteiro fica de joelhos diante dela”. o método
de alfabetização baseado nos construtivistas são
“obras primas de burrice pré-científica. “Piaget
e Paulo Freire foram gigantes, mas de seu tempo, defende Capovilla. (p.30)
Respondendo a critica de Capovilla, Ferreiro, escreve nessa publicação
da Folha de S Paulo, um texto fazendo as seguintes considerações:
“(...)Nunca me dediquei a inventar métodos nem a vender cartilhas.
O que fiz foi por em evidência e tornar observáveis etapas
importantes do desenvolvimento das crianças. Dediquei-me a mostrar
e teorizar sobre o modo de pensar das crianças quando tratam de
compreender a escrita. (p.32)
Ferreiro posiciona-se sobre o uso do método fônico na entrevista
que concede à Nova Escola dizendo: “Eu não aceito
discutir a alfabetização hoje nos mesmos termos que se discutia
em 1920. Os defensores do método fônico não levam
em conta um dado que sabemos hoje ser fundamental, que é o nível
de conscientização da criança sobre a escrita. Ignorar
que ela pensa e tem condições de escrever desde muito cedo
é um retorcesso. (...)”.(NE nº162 p.27-30).
O que se tem defendido em relação ao retorno do método
fônico é a necessidade de explorar, na alfabetização,
as relações entre letra e som, entre fonema e grafema; isso
não é nenhuma novidade, pois sabemos que a criança
se alfabetize é necessário realizar um trabalho que desenvolva
a consciência dos fonemas. Em entrevista, Ferreiro explica que (...)
A língua tem a propriedade de ser partida em unidades de distintos
tipos até chegar às letras” (p.28) A autora comenta
sobre a aquisição dessa consciência dizendo que ela
pode ocorrer por meio de jogos que têm o objetivo de promover uma
reflexão sobre as partes menores das palavras. A divisão
silábica, segundo Ferreiro, surge naturalmente; mas as unidades
menores que a sílaba, os fonemas, não. Devemos ressaltar
que não é necessário adotar o método fônico
exclusivamente na alfabetização para solucionar o problema.
Os defensores desse método têm alegado que os grandes responsáveis
pelo fracasso escolar na alfabetização são o Construtivismo
e o letramento, assim, eles tendem a abandonar os avanços conquistados
por tais fundamentações teóricas.
Entretanto, algumas considerações são necessárias:
será que o problema estaria realmente na teoria da psicogênese
de Ferreiro e na concepção de letramento? Os defensores
do método fônico argumentam que o conceito de letramento
e a teoria de Emília Ferreiro foram adotados no Brasil há
alguns anos e, apesar de conhecidos entre os professores as crianças
permanecem analfabetas.
Parece-nos importante questionar se os docentes têm realmente conhecimento
dessa teoria e do conceito de letramento: percebemos, a partir da leitura
dos textos da Nova Escola, que os fundamentos das teorias não eram
explicitados e isso conduziu a uma série de equívocos; um
deles à negação do processo de codificação
e decodificação da escrita no processo de alfabetização.
Podemos supor que parte do problema está localizado no desconhecimento
dos docentes sobre esses pressupostos teóricos e não nas
teorias, como alegam os autores.
Uma outra consideração a fazer é que, ao nosso ver,
é importante entender os princípios organizadores, os limites
e a contribuição de cada método de alfabetização.
Cada um desses métodos vai enfocar, privilegiar um determinando
aspecto da alfabetização e de acordo com o problema que
a criança apresenta, é possível diagnosticar qual
faceta precisa ser trabalhada. Adotar exclusivamente um método
como está sendo proposto significa privilegiar apenas um aspecto
da alfabetização. Como diz Isabel Frade: “O processo
de legitimação e deslegitimação de algumas
práticas ocorre como se houvesse uma forma única e poderosa
para alfabetizar, que irá romper com as outras”. (FRADE,
Isabel V.9, n. 50. 2003). Significa em outras palavras, recusar o caráter
plural e múltiplo do processo de alfabetização; significa
também eleger um modelo único como ideal mesmo sabendo através
de pesquisas históricas que “alfabetizar sempre foi um problema
difícil que não se esgota num material nem apenas em um
tipo de conduta metodológica” (Ibid).
As estratégias argumentativas no gênero jornalístico
pedagógico da Nova Escola
A linguagem da Nova Escola
Constatamos na análise dos 34 textos publicados
entre 1986-2003 sobre a metodologia de ensino da escrita e da leitura
uma particularidade do discurso da Nova Escola caracterizado pelo gênero
jornalístico. Identificamos, nos textos, cinco estratégias
que o autor lança mão para persuadir o leitor a adotar o
construtivismo e as práticas pedagógicas divulgadas. Vejamos,
como elas estão materializadas no texto.
A primeira estratégia refere-se ao uso metáforas no texto.
Para mudar o ensino tradicional e transformar a prática docente
a revista alerta o professor quanto às “armadilhas do vício
do sistema tradicional de ensino (NE nº48 p.17, 1991). As metáforas
parecem funcionar como uma estratégia para mobilizar o leitor quanto
à necessidade de lutar contra as práticas tradicionais do
ensino. A arma para combater esse inimigo, o ensino tradicional, de acordo
com a revista, seria o Construtivismo.
A segunda estratégia argumentativa da revista para convencer o
professor a tornar-se um construtivista é o uso de depoimentos
de professores que dizem sobre as consequência positivas do Construtivismo
na vida do professor. Vejamos um exemplo: “Tenho a convicção
de que o professor construtivista tem uma outra razão de viver”
(NE nº48 p.48, 1991). A Nova Escola de um modo sutil e doce tenta
motivar e convencer o leitor a adotar a perspectiva construtivista.
A teceira estratégia da revista é mencionar as ações
de grupos de estudos e projetos que visam a capacitação
de professores como o Geempa , o Cenp o Proman . Os dois primeiros, constituíram-se
nesse período entre 1989-95 como referências para os professores
quanto a formação dos mesmos. Os efeitos destas atividades
de capacitação realizadas pelo Geempa podem ser verificadas
no texto “Construtivismo- Nova metodologia se expande em toda Porto
Alegre” (NE nº43, 29) quando se afirma que o Construtivismo
será adotado por toda rede municipal de Porto Alegre através
do Geempa. A adesão voluntária de 212 professores de 1ª
série (75% da rede) apressou o projeto.
A quarta estratégia é a divulgação dos índices
de adesão das metodologias e teorias divulgadas na revista. O aspecto
central desses textos é a descrição dos projetos
realizados para introduzir o Construtivismo em cada localidade, eventos
educacionais, o perfil dos sujeitos que participam destas atividades,
as dificuldades encontradas para implantação dos mesmos
e as instituições que dão apoio a estas capacitações.
Percebe-se que a Nova Escola é uma porta voz que divulga como a
implantação do Construtivismo acontecia no Brasil. Esses
índices de adesão identificados nesta e na terceira estratégia
parecem gerar um efeito positivo e desta forma podem convencer o leitor
a adotar o construtivismo.
A 5ª estratégia para conferir legitimidade ao conteúdo
veiculado é inserir depoimentos autores de renome nacional. Vejamos
dois exemplos. Sobre Paulo Freire a revista divulga: “Por seu trabalho,
recebeu títulos honorários de universidades estrangeiras
e o prêmio internacional de Educação da Unesco”].
Quanto à Emília Ferreiro, encontramos os seguintes trechos:
“Emília Ferreiro encantou os professores gaúchos com
a lucidez de suas idéias revolucionárias sobre o processo
de alfabetização. Esperada e recebidas como um messias (...)”
[grifos nossos] (NE nº48. p.12, 1991)
Essas cinco estratégias do discurso parecem persuadir o leitor
levando-o a adotar as práticas divilgadas na revista. As estratégias
parecem ainda criar a crença de que o discurso da revista é
legítimo, verdadeiro e portanto inquestionável.
Considerações finais
Nesta pesquisa analisamos 34 textos referentes à
metodologia de ensino da leitura e da escrita na revista Nova Escola (1986-2003),
que foram organizados em três grupos, correspondentes a três
momentos distintos: 1986 a 1988, 1989 a 1994, 1995 a 2003. A organização
em seqüência histórica desses textos permitiu-nos: identificar
as tendências gerais, o que foi difundido em cada momento e verificar
a ênfase dada nas publicações a determinados temas,
ou seja, a predominância de certos temas em cada um dos três
momentos identificados. Pudemos constatar a partir da análise dos
textos as práticas que foram incorporadas e as que foram excluídas
a partir da divulgação das teorias de Paulo Freire e Emília
Ferreiro que propiciou uma maior compreensão do processo de mudanças
nas práticas de alfabetização no Brasil, entre 1986-2003.
Revelamos também possíveis interpretações
equivocadas a partir da divulgação dessas teorias.
Verificamos o que foi publicado em cada período e constatamos que
ora um determinado processo da alfabetização fora enfatizado
nas práticas docentes, ora outro. O período de 1986-1988
é marcado, na Nova Escola, pelas críticas à ênfase
nos processos de codificação e decodificação
da escrita. No segundo período, 1989-1994, a revista privilegia
em suas publicações uma outra dimensão da alfabetização:
a função social da escrita e da leitura. A faceta lingüística
da alfabetização foi negada nesse período, como demonstramos
nos textos do segundo grupo. No terceiro grupo, percebemos dois momentos
distintos. O primeiro marcado por uma re-inserção dos processos
de codificação e decodificação que, são
trabalhados a partir de atividades que visão ao uso da língua
em práticas sociais de leitura e de escrita. O segundo é
marcado pelo debate da cisão entre os processos de letramento e
alfabetização, entendida como codificação
e decodificação da língua. A primeira concepção
entende que a alfabetização e o letramento são indissociáveis;
a segunda, por sua vez, os entende como processos distintos com características
próprias, porém complementares. Ainda nesse debate há
aqueles que defendem a volta do método fônico como solução
para efetivação da alfabetização.
Constatamos, assim, nas publicações da revista, entre 1986
- 2003, um movimento pendular que enfatiza ora um aspecto da alfabetização,
ora outro. A Nova Escola incorpora e divulga em suas publicações
as inovações sobre aprendizagem da leitura e da escrita,
principalmente difundindo as idéias de Emília Ferreiro.
É interessante notar que se por um lado a revista traz as inovações
no campo da educação, por outro ela não menciona
as permanências de alguns princípios metodológicos
de alfabetização. Nesse sentido, questionamos a ausência
de informações nos textos da Nova Escola sobre a importância
do processo de codificação e decodificação
para aquisição da escrita e da leitura. Não se explica
a importância do trabalho entre as relações fonemas
- grafemas, e não há orientações sistemáticas
para o professor encaminhar o ensino até que a criança compreenda
a base alfabética da escrita. O não esclarecimento dos conceitos
fundamentais que orientam o processo da alfabetização pode
se tornar fonte de dúvidas para os docentes sobre quais metodologias
adotar e qual teoria trabalhar. Os professores podem mudar suas práticas,
seguindo as sugestões da revista sem entender o porquê das
alterações, desconhecendo, dessa forma, a permanência
de certos princípios na alfabetização, o que pode
levar a uma aplicação prática sem muita reflexão.
Verificamos, que o foco dos textos referentes à metodologia de
ensino para alfabetização volta-se para a divulgação
das práticas pedagógicas que têm obtido sucesso, independente
da concepção de aprendizagem ou de alfabetização
subjacente. Outro foco da revista é o de informar, com detalhes,
o processo de implementação das teorias nas escolas brasileiras.
Essas características de informar e divulgar fatos são próprias
do gênero jornalístico.
Percebe-se que a linguagem da revista é marcada por esse gênero,
mas há também uma outra característica que lhe é
peculiar: os textos transbordam emoção. Há entusiasmo,
euforia, admiração, ou seja, uma forte carga emotiva na
divulgação das práticas pedagógicas. Essa
linguagem que expressa tanta emoção parece querer gerar
comocão nos leitores. Há um apelo ao sentimentalismo.
Ao que tudo indica, o leitor não é convencido a adotar as
às teorias e metodologias divulgadas, por meio da discussão
dos fundamentos teóricos que as subjazem, mas sim pelas estratégias
argumentativas presentes nesse discurso “jornalístico pedagógico”
que por meio da persuasão tenta fazer crer para conseguir a adesão
do interlocutor para as práticas pedagógicas divulgadas.
Os jornalistas da Nova Escola escrevem sobre conhecimentos produzidos
no campo da ciência e com o intuito de adequar a linguagem própria
desse campo ao leitor previsto, eles lançam mão do gênero
jornalístico e das estratégias argumentativas já
mencionadas.
A partir daí, gostaríamos de colocar algumas questões
para reflexão:
Quando o discurso científico é tratado de uma forma poética,
sentimental, quais são os efeitos de sentido para a leitura? Dito
de outro modo; que efeitos essas estratégias argumentativas produzem
para a contrução do sentido do texto? Qual é o efeito
que se produz ao tratar questões da educação por
meio do gênero jornalístico? Quais são as possíveis
leituras estabelecidas a partir desses dispositivos textuais?
Referências bibliográficas
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Emília Ferreiro: uma aula inédita para 10.000. Nova Escola,
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Construtivismo: as agruras do caminho. Nova Escola, São Paulo,
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