Thaís Otani Cipolini - Universidade Estadual
de Campinas – FE/Unicamp
“Eles tinham a força e a gente a coragem.”
Oliveiros Ferreira
Nós deixamos marcas no mundo.
Algumas profundas, outras suaves.
Às vezes marcamos conscientemente.
Às vezes marcamos sem ao menos querer. Mas, mesmo que não
queiramos , essas marcas denunciam-nos e eternizam-nos no espaço
e pelo tempo que existirem.
Tais marcas foram denominadas e estudadas por diversos autores de diversas
áreas: antropologia, psicologia, sociologia, historiadores. Le
Goff chamou-as de documento/monumento. Ginzburg, de indícios. Já
Thompson, de evidências.
Em comum, os três consideram as “marcas” como vestígios,
rastros, evidências, documentos que registram (e que foram registradas
por) nossa estada passageira no mundo. Mas também podem significar
muito mais que isso. Elas carregam consigo nossos pensamentos, culturas,
sentimentos, religiões, crenças, gostos e valores. Também
exprimem a “realidade” de determinada sociedade, com seus
empates sócios-culturais num determinado contexto histórico.
As futuras gerações estarão encarregadas de ressignificar
tais marcas, evidências, documentos para produzirem o conhecimento
histórico.
O que torna legítimo o uso destas fontes para a produção
de tal conhecimento? O conhecimento histórico não é
produzido através de documentos oficiais? São essas fontes,
oficiais?
Nas palavras de Febvre, pesquisador da história nova:
“A história faz-se com documentos escritos,
sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode-se fazer-se, deve fazer-se
sem documentos escritos, quando não existem. (...) Numa palavra,
com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve ao homem,
exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e
as maneiras de ser do homem. (Febvre apud Le Goff, 1984, p. 98)
Nesta mesma concepção de documento, complementa
Thompson, “a evidência de comportamento (inclusive comportamento
mental, cultural) acontecendo no tempo” (Thompson, 1987, p. 49).
Deste modo, pode-se considerar como evidências contos, histórias
orais, imagens iconográficas, cinematográficas, diários
pessoais, jornais, parlendas....
Nesta concepção, a literatura também é uma
evidência, já que, segundo Chartier a escrita é uma
representação do mundo vivido e experimentado pelo autor.
É uma (re)construção da “realidade” social
na qual ele está inserido. Tal representação também
é ressignificada pelos personagens envolvidos na produção
literária, como o editor, ilustrador...
Mas não só a literatura dos “clássicos”
como Machado de Assis ou Camões, mas também a literatura
de cordel e a literatura infantil, sendo esta discutida aqui.
Como já dito, o objeto da pesquisa foi a literatura infantil, mais
especificamente o “quarteto” de reis de Ruth Rocha. Mas antes,
seria interessante que soubessem como a autora define “escrever”:
“E escrever é sempre um ato de existência.
Quando se escreve conta-se o que se é.
Parece que se inventa, mas não: vive-se. Parece que se cria mas
na verdade aproveita-se.
A história como que está pronta dentro da gente.
(...) Ela existe antes que o escritor suspeite.
A história é mais real do que qualquer explicação.
A realidade do que sou está mais no que escrevo do que nas racionalizações
que eu possa fazer” (Rocha, s.d.)
A autora, assim como Chartier, considera a escrita como
sua forma de representar e expressar-se o mundo.
Mas qual mundo representa Ruth Rocha?
Ela nasceu em 1931, na cidade de São Paulo e gostava
de ler livros de Monteiro Lobato – seu preferido era Reinações
de Narizinho.
Fez sua graduação (1949-1952) na Escola de Sociologia e
Política, também em São Paulo, formando-se socióloga
com grande influência de Karl Marx.
Foi orientadora educacional por 15 anos no Colégio Rio Branco.
Escreveu artigos sobre educação em revistas, participou
da criação da revista Recreio, onde publicou suas primeiras
histórias. Também foi editora, redatora e diretora da Divisão
de Infanto-Juvenis da Editora Abril.
Quando tinha a idade de 45 anos, a socióloga tornou-se também
escritora de livros infantis. Seu primeiro livro foi “Palavras,
muitas palavras”.
Depois deste, vieram outros: “Marcelo, marmelo, martelo” –
com mais de 1 milhões de cópias vendidas, “Uma história
de rabos presos” e “Azul e lindo - planeta Terra nossa casa”.
Mas os livros – que formam o “quarteto” de reis - analisados,
foram: “O reizinho mandão” (1978), “O rei que
não sabia de nada” (1980), “O que os olhos não
vêem” (1981), “Sapo vira rei vira sapo – ou a
volta do reizininho mandão”(1983).
Com jeito de “Era uma vez”, ops, esqueci-me da “linguagem
acadêmica” – Recomeçando:
A autora, apropriando-se e ressignificando a estrutura narrativa dos contos
de fadas, conduz-nos (segurando-nos deliciosa e delicadamente pelas mãos
e asas da imaginação) a reinos e feudos. Apresenta-nos a
reis e princesas, a ministros e povo, a velhos e crianças. De forma
despretensiosa e metafórica, Ruth Rocha narra a vida das pessoas
naquelas terras longínquas. Nem os reis e reizinhos escapam! Como
veremos adiante.
Mas, se a escrita é uma representação do vivido,
do experimentado pelo autor, do que está falando Ruth Rocha?
Voltando às datas do livros: 1978, 1980, 1981, 1983. Nesta época,
vivia-se no Brasil a ditadura militar e sua censura, que impedia as denúncias
aos mandos e desmandos dos governantes brasileiros e à violência
para a manutenção do sistema.
Neste “reino” de terror e silêncio, houve também
a resistência de quem acreditava em outro modo de governar, em outro
modo de ser brasileiro.
A resistência e a denúncia aconteciam de várias formas:
através dos jornais – que sofriam duras censuras , das apresentações
teatrais, das músicas compostas e dos livros produzidos. Ruth Rocha,
também descontente com a situação nacional, resiste
narrando para as crianças. Em tais narrativas a linguagem é
clara e atrativa, com rimas, provérbios e frases feitas, proporcionando
ao leitor um contato diferente com a tradição oral e belas
imagens iconográficas. Com esta linguagem simbólica, Ruth
Rocha representa sua “realidade” através de roteiros
fictícios. Contraditório? Não: as histórias
narradas não aconteceram realmente, mas é o lugar onde se
entrecruzam a criação da autora com sua vivência,
o que torna difícil a distinção entre o que é
ficção e o que é a “realidade”.
Para Gramsci, a linguagem (em seu sentido mais amplo) é fonte de
contradição social, pois é a principal forma de atuação
sobre a consciência, já que é o meio de formação
de conceitos e de cultura. Deste modo, o governo militar utilizou-se de
diversas linguagens para legitimar-se diante da população
civil. Segundo Thompson, os dominados apropriam-se da cultura dominante,
ressignificam-na e empregam-na na luta de classes. Assim, a autora utiliza-se
desta linguagem para resistir ao governo e faz dela seu campo de resistência,
transgressão e contestação, mostrando aos seus leitores
a dura “realidade” de um povo e as relações
de poder existentes em uma sociedade (que, não se esqueçam,
é bem longe daqui).
Para esta produção de conhecimento a base teórica
utilizada foi a lógica histórica de Thompson. Esta lógica
é adequada à pesquisa por apresentar flexibilidade, não
necessitando de uma “verificação experimental”,
que não é possível quando o assunto é história,
pois esta não é estática, fixa ou fundamentada em
repetições de eventos. Além disso, o objeto do conhecimento
histórico é a “história real”, cujas
evidências são incompletas e imperfeitas.
Para Thompson, o conhecimento histórico não é referente
somente ao econômico, mas deve voltar-se também para as dimensões
sócio-culturais, as quais passam integrar a produção
do conhecimento histórico. Neste caso, a teoria historiográfica
é concebida como uma ferramenta exploratória do “real”.
Segundo este autor, para se produzir conhecimento histórico é
necessário um diálogo entre o pesquisador e a evidência.
Neste diálogo o pesquisador interroga os objetos com um olhar crítico
e algumas hipóteses, que poderão ser refutadas, reformulas,
aceitas diante das especificidades das evidências. Assim, não
é possível que o historiados estabeleça uma “verdade”
histórica sem realizar este diálogo. Mas cada pesquisador
interroga e interpreta a evidência de seu modo, com novas e diversas
perguntas, novos e diversos olhares, sempre respeitando os limites dela.
Realizando o diálogo com o quarteto, pode-se perceber a autora
denunciando a ditadura.
E as histórias começam:
“Eu vou contar pra vocês um história
que o meu avô sempre me contava
Ele dizia que essa história aconteceu
há muitos e muitos anos,
num lugar muito longe daqui” (Rocha, 1997, p. 6)
“Era uma vez um lugar
muito longe daqui...
Neste lugar tinha um rei,
muito diferente dos reis
que andam por aqui
(...)
Tudo muito diferente daqui. ” (Rocha, 1980, p. 11)
Analisando estes fragmentos, podemos perceber as metáforas utilizadas
pela autora com o intuito de evitar a repressão, existindo até
um exagero em dizer que isso foi há muito tempo atrás, em
um país muito distante e que existia um rei, para deixar MUITO
claro que não é do Brasil que se fala. Além das metáforas,
há também fragmentos da oralidade, como uma forma de valorização
da cultura popular brasileira.
Depois de esclarecido o local onde as histórias (NÃO) acontecem,
a autora conta um pouco sobre a vida nos reinos. Parece que eram reinos
pacíficos, tranqüilos, com bons reis:
“Como esse rei
Era rei de história,
Era um rei muito bonzinho,
Muito justo...
E tudo o que ele fazia
Era pro bem do povo.
Vai que esse rei morreu,
porque era muito velhinho,
e o príncipe, filho do rei,
virou rei daquele lugar” (Rocha, 1997, p.7)
“Havia uma vez um rei
num reino muito distante;
(...) Reinar pra ele era fácil,
Ele gostava bastante.
Mas um dia, coisa estranha!
Como foi que aconteceu?
Com tristeza do seu povo
Nosso rei adoeceu” (Rocha, 1981, s.p)
Os reinos são aparentemente pacíficos sofrem
terríveis tragédias: um rei adoeceu, outro rei morreu. Já
no “Sapo vira rei vira sapo – ou a volta do reizinho mandão”,
a ruptura também é representada com a morte do rei. Mas,
ao contrário do primeiro rei morto, descrito como bonzinho e justo,
o último não era tanto:
“O povo, em vez de chorar pelo rei que morreu,
Tratou logo de fazer muitas festas, na esperança
De que o novo rei que entrava fosse melhorzinho
Que o velho que tinha morrido” (Rocha, 1983, s.p)
Essa euforia e esperança foram sentimentos presentes
em parte da população das camadas médias e urbanas
brasileiras no início do governo militar. Tais sentimentos devem-se
à promessa de restabelecimento da ordem econômica e política
, devido à “ameaça comunista” que rondava o
país.
Essas rupturas foram as formas encontradas pela autora de representar
o golpe militar sem ser censurada. A metáfora dos novos reis pode
ser a representação da própria ditadura, que perdurou
no país por ininterruptos 21 anos enquanto, no Brasil, os presidentes
ficavam alguns anos no cargo.
Após essas tragédias, a vida se torna triste, perigosa,
silenciosa naqueles reinos bem distantes daqui...
E mesmo a população que tinha alguma esperança, aos
poucos também foram percebendo os defeitos de seus reis. Em “Sapo
vira rei...” depois das festividades para o novo rei ,
“(...) todo mundo foi percebendo que reizinho chato,
implicante e mandão que ele era, como só sapo que vira rei...”
(Idem)
O novo rei conseguia ser pior que anterior, criando leis
absurdas e não gostando de ouvir as “verdades” ditas
pelas pessoas.
Enquanto este reizinho ouvia as verdades, não gostava e mandava
prendê-las, em “O que os olhos não vêem”,
temos a descrição da doença do rei:
“(...) pessoas grandes e fortes
o rei enxergava bem.
Mas se fossem pequeninas,
e se falassem baixinho,
o rei não via ninguém” (Rocha, 1981, s.p.)
Antes o rei ouvia, via todos – grandes e pequenos,
o que nos remete a um governos mais democrático, ao de João
Goulart, hipótese justificada mais adiante na própria história:
“todas aquelas pessoas,
com quem ele convivia,
que ela tão bem enxergava,
cuja voz tão bem ouvia,
como num encantamento,
ele agora não tomava
o menos conhecimento” (Rocha, 1981, s.p.)
Depois só conseguia perceber os grandalhões,
ou seja, ministros, militares, políticos e a elite, demonstrando
um regime alheio às necessidades dos súditos. As manifestações
dos menores nunca, nunca eram ouvidas ou percebidas. Foi assim na história.
Foi assim no Brasil, através de diversas formas de controle, como
a censura, que veremos mais adiante.
Mas a população não aceitou calada tais transformações.
Em “O que os olhos...”:
E o povo foi percebendo
que estava sendo esquecido (...)
Eles então se juntaram,
Discutiram pelejaram; (Idem)
Como as pessoas das histórias em questão,
havia grupos sociais no Brasil que também estavam descontentes
e insatisfeitos com a situação. Pelas citações
acima, podemos perceber que o povo estava mobilizando-se para transformar
a situação. Nas iconografias deste livro percebemos que
a idéia inicial foi de um estudante e que houve a união
de várias esferas sociais para colocá-la em prática.
Neste espaço, autora e ilustrador dão vozes ao “povo”,
destacando entre eles os intelectuais, as donas de casa, os padeiros,
pedreiros, marceneiros entre tantos outros.
Este ideal democrático encontra-se presente em “Sapo vira
rei...”, quando todos os cidadãos, presos no sótão
do castelo e unidos pela tristeza, cantam suas canções.
E como nos conta a história, delas pupulavam as verdades que começam
a se espalhar e, ocupando todos os cantos e recantos, fazem com que não
houvesse mais lugar nem para as pessoas e nem para as verdades, que iam,
cada vez mais, aumentando. Assim,
“o palácio foi rachando,
desde o teto até o chão,
despejando todo mundo
que caiu de trombalhão.” (Rocha, 1983, s.p)
Com a união de todas as vozes, o “povo”
consegue escapar da prisão e destituir o rei do poder.
Em “O rei que não sabia...”, o avô de Cecília
anuncia:
“Mas sabe? (...) a gente já estava juntando
um grupo pra ir falar com o rei.
Nós íamos lá pra dizer pra ele o que está
acontecendo” (Rocha, 1980, p. 39)
Nesta citação a autora dá voz ao
sujeito idoso, tantas vezes calada em nossa sociedade, assim como a criança
e a mulher, personagens deixados, geralmente no segundo plano. Deste modo,
no momento da arrumação do reino, cada um se responsabilizou
de alguma forma para poder contribuir: o avô desliga a máquina,
o pai despede os ministros, a mãe fecha o castelo (símbolo
da monarquia) e a irmã de Cecília resolve chamar todo mundo
para dar uma idéia, pois “uma porção de cabeças
trabalham melhor que uma só” (Rocha, 1980, p. 43). Com o
trabalho e união de todos, o reino foi melhorando.
Em todas as histórias analisadas, quem solucionava os problemas
do povo não foi nenhum herói ou super-herói. Foi
o próprio “povo”, unido pelo bem (que se espera ser)
comum e consciente de seu papel enquanto grupo social ativo que constrói
a possibilidade de mudanças e, este mesmo “povo”, é
quem pode transformar a possibilidade em “realidade”, através
da ressignificação das formas de dominação
e utilizando-na para resistir aos dominados – assim como fez e faz
Ruth Rocha.
Desta forma, a autora acreditava que também no Brasil quem conseguiria
“derrotar” o governo militar não seriam os próprios
militares, mas o “povo”, através de lutas, de idéias
e de manifestações. Mas a autora não denuncia somente
a ditadura, seus métodos de legitimação e controle
também são apontados, dentre eles a censura. Em “O
rei que não sabia... ” a autora nos fala sobre o controle
que o Estado passou a ter na vida dos cidadãos, sem que estes percebessem,
assim como o rei da narrativa abaixo:
“A máquina fazia de tudo (...)
Controlava as aulas nas escolas,
As estações de TV.
Os filmes dos cinemas” (Rocha, 1980, 11)
Neste trecho percebemos o controle exercido pela máquina
na história e podemos relacioná-lo com o controle exercido
pelo controle da “máquina” estatal brasileira, com
proibições de publicações, apresentações
teatrais e censura. Já em “Sapo vira rei” e em “O
reizinho mandão”, o controle vem diretamente dos reizinhos
(aliás, termo bem pejorativo, assim como a representação
iconográfica, que se aproxima muito da representação
de bobo da corte. ) com suas leis absurdas e seus “CALA A BOCA”.
“No fim do mês todo mundo
tem de dar a o rei metade do
que ganha, que é pro rei
comprar confetes pro carnaval ” (Rocha,1983, s.p.)
“Era só um conselheiro qualquer abrir a boca
para dar um conselho, e ele ficava vermelhinho de raiva,
batia o pé no chão e gritava de maus modos:
- cala a boca! Eu é que sou o rei. Eu é que mando!”
(Rocha, 1997, 12)
A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Seja como for, o fato é
que nessas duas histórias quem ousasse dizer alguma verdade era
preso – naquele reino distante no sótão do castelo
- mas como o Brasil não era aquele reino, as pessoas foram presas
em delegacias, torturadas, mortas e exiladas (viu como o reino não
se refere ao Brasil?).
Voltando à censura, segundo Berg, ela possui a função
de ser um dos elementos de sustentação da ideologia do regime,
buscando o apoio e a legitimidade da/na sociedade civil. Mas para que
isso fosse possível, ocorria concomitantemente a propaganda, enaltecendo
os valores nacionais, voltada para a criação da nação
brasileira. Nos trechos citados, assim como na “realidade”
brasileira, o governo ditatorial, não conseguia calar todos. Segundo
um guarda real: “É que as pessoas continuam a dizer as verdades,
Majestade” (Rocha, 1983, s.p). O mesmo ocorria no Brasil. Compositores,
jornalistas, artistas, estudantes, políticos, advogados, professores
– só para citar alguns – denunciaram, falaram e gritaram
enquanto a ordem reinante era a do silêncio.
Será que acabaria, um dia, este silenciamento?
Como ele acabaria?
Em “O reizinho mandão”, o próprio rei, cansado
do silêncio instituído por ele mesmo, resolveu procurar um
velho sábio para resolver seu problema. O sábio “passou
um pito” no reizinho, que lhe explicou o que fazer: bater de porta
em porta até encontrar uma criança que ainda soubesse falar.
E foi o que o reizinho mandão fez. Ao encontrar a criança,
depois de muito insistir para que ela falasse acabou perdendo a paciência.
O papagaio do reiznho grita, então “cala a boca! Cala a boca!
Cala a boca!” (Rocha, 1997, p. 33). Ouvindo o cala a boca, a menina
retruca:
“Cala a boca já morreu!
Quem manda na minha boca sou eu!” (Idem, p.34)
Depois disto foi um turbilhão de sons, mas o barulho foi deixando
o reizinho apavorado, que saiu em disparada.
O avô – perpetuador da história através da oralidade
– não conhecia o final da história. (afinal, como
poderia saber algo que ainda não foi vivido?).
Para a autora, que nos dá esperança de um futuro melhor,
o reino do silenciamento poderia ter diversos finais, diversas hipóteses,
mas sempre com a população tendo consciência de seu
papel ativo na sociedade: nos outros livros, um rei abdica o poder em
prol do governo popular; o rei doente foge e o sapo/príncipe/reizinho
volta a ser sapo depois da queda do castelo e está a espera de
alguma menina que queria lhe dar um beijo. E pode-se pensar que era assim
mesmo que a autora esperava que acontecesse no Brasil: uma mudança
na forma de governo, onde o povo seja escutado, ouvido e atendido (o que
não necessariamente implica em uma transformação
no sistema capitalista, responsável pela hierarquização
e exploração dos dominados)
Nós deixamos marcas no mundo.
Algumas profundas, outras suaves.
Às vezes marcamos conscientemente.
Às vezes marcamos sem ao menos querer. Mas, mesmo que não
queiramos, essas marcas denunciam-nos e eternizam-nos no espaço
e pelo tempo que existirem.
Mas do mesmo modo que deixamos nossas marcas, o mundo nos marca também,
a ferro, fogo, sentimentos e conflitos, afinal vivemos em sociedade.
E se elas eternizam-nos e denunciam-nos para a prosperidade. Se elas são
as lembranças de nós para o mundo, elas também fazem-nos
lembrar do que vivemos, sofremos, sentimos. O que nós gostamos
ou não. O que foi bom ou o que foi ruim. O que poderia ter sido,
mas que não foi.
Elas também lembram-nos o que esquecemos (e que, por vezes, é
isso mesmo que queremos).
Mas, Ruth Rocha, sabendo dos riscos e perigos dos esquecimentos, deixa
sua marca na história e nas histórias.
Nas últimas através de instrumentos que lembram a população
do ocorrido.
Em “O que os olhos não vêem”, depois de conseguir
chegar ao palácio real com suas pernas de pau e de expulsarem o
rei e “toda a corte reinante”, a população e
“todos naquele reino
guardam muito bem guardadas
as suas pernas de pau.
Pois temem que seu governo
possa cegar de repente.
E eles sabem muito bem
Que quando os olhos não vêem
Nosso coração não sente” (Rocha, 1981, s.p.)
Deste modo, a população protege a memória
em cada perna de pau, relacionando o vivido com o presente, para que ninguém
esquecesse o sofrido durante a doença do rei, durante o período
militar e perpetuam esta história.
Já em “O rei que não sabia...”, a forma de não
esquecer está no uso que deram para a máquina e o castelo
real:
“Transformar o castelo
num enorme parque de diversões,
com a máquina tomando conta de tudo,
que é pra isso que a máquina servia (...)
E até hoje o povo de lá lembra desta história
e trabalha contente (...)” (Rocha, 1980, p.45)
Ruth Rocha deixa sua marca na história brasileira
como alguém que falou quando era mandado calar; escreveu quando
a ordem era apagar; e que gritou com o silêncio da escrita, porque
era preciso.
E até hoje as histórias dos reinos muuuuitoooo
distantes daqui e que aconteceram há váááários
anos atrás com reis bem diferentes dos reis que andam por aqui
lembram-nos de um país chamado Brasil em um tempo não muito
atrás, com um governo não muito diferente das narrativas
analisadas...
Ruth Rocha deixa suas marcas para no/para o mundo através
da narrativa de histórias.
Walter Ono deixa suas marcas através de seus desenhos, suas ilustrações.
Como faz também José Carlos de Brito.
E eu, encontrei uma forma de marcar o mundo: sendo professora.
Em nosso contato diário com as pessoas, deixamos nelas impressões
sobre nós. E a educação possibilita um contato com
várias pessoas, de e com diferentes culturas.
A proposta pedagógica que tenho em mente baseia-se na lógica
histórica de Thompson para a produção de conhecimento
histórico. Isto é, produzir este conhecimento na relação
pesquisador (no caso os alunos) e a evidência (as obras de Ruth
Rocha), estimulando-os a perceberem que a relação entre
o conhecimento histórico e seu documento não ocorre de forma
determinado, um em função dou outro, mas na forma de um
diálogo..
Desta forma, o objetivo é trabalhar com os alunos a percepção
de que a história não é algo pronto e acabado, mas
sim algo em constante transformações, sendo que estas só
são possíveis com a participação das pessoas,
percebendo-se, assim, como atores atuantes na história e atuantes
na produção de conhecimentos históricos.
Também é preciso que percebam que não há uma
única verdade, a mentira ou o certo e o errado, mas diversos pontos
de vista sobre algum acontecimento, mas que estão relacionados
ao objeto pesquisado e às vivências e valores do pesquisador.
Para se trabalhar nesta perspectiva, o papel do professor é fundamental,
pois ele será o mediador entre as crianças e os conhecimentos
históricos, estimulando-as, questionando-as e criando problemáticas
para a discussão, dando condições para que os alunos
participem da construção deste conhecimento.
Como pesquisei a obra de Ruth Rocha, para esta proposta (ainda não
aplicada) sugeri o quarteto de reis.
É importante que nesse primeiro momento, os alunos tenham um contato
inicial livres com as obras: deixá-los ler calmamente, à
vontade. Em seguida conversar com eles sobre suas impressões que
tiveram dos livros, se sabem quem é a autora, o que sabem dela,
se conhecem outras obras escritas por ela.
Em seguida, separaria a sala em grupos – sendo que cada grupo leria
um livro específico - e proporia a leitura do livro para a classe
feita pelo grupo.
Em uma outra aula, proporia uma terceira leitura, mas agora mais direcionada,
com questionamentos para serem pensados e conflitados.
- qual o problema da história?
- como resolver um problema assim?
- qual(is) o(s) personagem(ns) da história? Todos têm o mesmo
“poder” e reconhecimento? O que sentem e por quê?
- como ele(s) agia(m) com as pessoas?
- por que vocês acham que ele(s) agia(m) assim?
- há uma mensagem na história? Qual?
- vocês conhecem alguém que age como ele?
Também proporia um roteiro para ser discutidos com os pais:
- em que ano foram escritas as histórias?
- o que estava acontecendo no Brasil nesta época?
- e também questões específicas à cada livro.
Acredito que surgirão diversas respostas, sendo muitas conflituosas
o que será ótimo para enriquecer o trabalho. Depois disto,
cada grupo exporá para a classe as conclusões que chegaram,
observando o que há de diferença e semelhança entre
as obras.
Depois das apresentações e em outro momento, abrir a discussão
para as metáforas presentes nos textos, procurando seus significados,
a justificativa para seu uso e outra forma de dizer-se o que foi escrito.
Também há a possibilidade de discutir com eles o que é
expressão da “realidade” sob a ótica da autora
e o que é ficção, focalizar a noção
de documento, perguntando
- o que é um documento;
- qual a importância do documento;
- quais documentos eles conhecem;
- o que ele representa;
- se é possível que uma história infantil possa ser
um documento e por quê.
Tal discussão teria por objetivo que concluam que o documento é
o que possibilita uma expressão da “realidade”, não
existindo um documento verdadeiro ou falso, mas várias versões
sobre um fato. E que nestes documentos literários não estão
expressas as “verdades” da época, mas sim visões
de Ruth Rocha, do ilustrador e, também, da editora sobre este mesmo
período histórico.
E, após esta discussão, deles, alunos, também.
Fontes Pesquisadas
ROCHA; Ruth. O reizinho mandão. São Paulo:
Quinteto editorial, 1997
___________. O rei que não sabia de nada. 1ª edição.
São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1980
___________ O que os olhos não vêem. 7ª edição.
Rio de Janeiro: Salamandra, 1983
___________. Sapo vira rei vira sapo - ou a volta do reizinho mandão.
17ª impressão. Rio de Janeiro: Salamandra, 1983
Bibliografia
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices.
São Paulo: Editora Scipione: 1989
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário
(1968-1978) - O exercício cotidiano da dominação
e da resistência. O estado de São Paulo e Movimento. Bauru:
Edusc, 1999
BENJAMIN, Walter. Infância em Berlim em 1900. In BENJAMIN, Walter
Rua de Mão Única. SP.: Editora Brasiliense, 1987
BERG, Creusa O. Os mecanismo do silêncio - expressões artísticas
e processo censório no Regime Militar (Brasil, 1964 -1984). Dissertação
de mestrado. Departamento de história da USP, 1997
BURKE, Peter. A escola dos Annales - 1929 - 1989. A revolução
francesa da historiografia. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
CARVALHO, Bárbara V. A literatura infantil - visão histórica
e crítica. São Paulo: Global editora, 1985
CHARTIER, R. História Cultural - entre práticas e representações.
Rio de Janeiro: Bertrand, 1996.
__________ . (org.) Práticas da Leitura. São Paulo: Estação
liberdade, 1996
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infanto/juvenil.
São Paulo: Editora Ática, 1991
COUTO, Ronaldo C. História indiscreta da ditadura e da abertura.
Brasil 1964 - 1985. Rio de Janeiro: Record, 1999
______ Memória viva do regime militar - Brasil 1964-1985. Rio de
Janeiro: Record, 1999
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos - e outros
episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro:
Graal, 2001
DECCA, Edgar S. Memória e cidadania. In: O direito à memória.
São Paulo: departamento de cultura da cidade de São Paulo,
1992.
FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença,
1989.
GALZERANI, M. Carolina Bovério. A produção dos saberes
históricos: saberes locais & saberes globais. In Revista do
Instituto Brasileiro de Edições pedagógicas. Área
do conhecimento História. Ano I - n.3, pp 53-57, julho de 2001
______. A tessitura do conhecimento histórico e suas relações
com a narrativa literária. In Anais do IV Encontro Nacional de
Pesquisadores do Ensino de História, Ijuí, RS.: Editora
UNIJUÍ, pp 649-660, 1999
______. Imagens entrecruzadas de infância e de produção
de conhecimento histórico em Walter Benjamin”. In Faria,
Ana Lúcia G.; Demartini, Zélia de Brito F.; Prado, Patrícia
Dias (org.) Por uma cultura da infância: metodologia de pesquisa
com crianças. Campinas: Editores Associados, 2002, pp 49-68.
______. et alli. “História local e ensino de história”.
In Anais do II Encontro de Pesquisadores do Ensino de História.
SP.: FUSP, pp 317-322, 1996
GINZBURG, Carlo. Sinais – raízes de um paradigma indiciário.
In Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
¬______, Carlo. O queijo e os vermes - o cotidiano e as idéias
de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002
GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura
no Estado Novo.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI
5 à Constituição de 1988. Tese de doutorado. IFCH,
Unicamp, 2001
LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: histórias
e histórias. São Paulo: Editora Ática, 1985
LE GOFF, J. Documento/Monumento. In Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1984, Vol. 1.
ORIÁ, Ricardo. Memória e ensino de história. In:
BITTENCOURT, Circe (org.) O saber histórico na sala de aula. São
Paulo: Contexto, 2002
SOUZA, Luciana. Contribuições da História Nova à
prática pedagógica: uma abordagem do “Sítio
do Pica Pau Amarelo”. Monografia, Unicamp/FE, 1987
STAROSTE, Evelyn Cristina. Ensino de história via contos de fadas:
2ª série do Ensino Fundamental. Monografia, Unicamp/FE, 1998
THOMPSON, Edward P. Intervalo. In A miséria da teoria ou um planetário
de erros - uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1987
¬______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998
VASCONCELOS, Barbara. A literatura infantil - Visão histórica
e crítica. São Paulo: Global, 1985