Simone Clini
A leitura e a escrita no Ensino Superior têm sido
objeto de discussão por estudiosos e docentes comprometidos com
a melhoria e a qualidade da produção de seus alunos. Diante
dessa premissa, realizamos um estudo sobre as características lingüísticas
que sedimentam movimentos argumentativos de constituição
identitária em letras de músicas populares brasileiras,
com o objetivo de oferecer em nossas aulas estratégias argumentativas
que orientam a compreensão de leitura de textos. Assim, os estudos
teóricos de Retórica, Argumentação e da Metáfora
mostram-se como caminhos possíveis para a análise e leitura
dos elementos argumentativos.
Introdução
A partir da dissertação de mestrado intitulada “Noel
Rosa – Metáforas e paixões: a constituição
do ethos cultural do sambista da década de 30 na MPB” defendida
na PUC-SP em outubro de 2004, fizemos este recorte buscando marcas argumentativas
em composição de Noel Rosa que se justificam em um jogo
passional com linguagem rica e reveladora do caráter de um orador
que se constrói a partir de sua projeção no outro.
Noel Rosa, preocupado em tocar almas pela poesia, praticou a essência
da retórica: antes de tudo um ajuste de distância entre os
indivíduos. Para diminuir essas distâncias, Noel valia-se
de metáforas, que exercem papel lexical, pois enriquecem o sentido
das palavras. É uma figura de sentido que desempenha seu papel
retórico e realiza-se em meio ao que os retóricos clássicos
chamaram de elocução – a terceira parte do discurso
aristotélico. Nos moldes atuais da semiótica greimasiana,
conforme afirma-nos Lopes (1986:02), esse desvio (metassemema ou tropo)
ocorre, no percurso narrativo, na competência dita poder. E este
uso, por sua vez, pode ser revelador das paixões contidas no discurso
do orador.
Consideraremos a argumentação como uma questão lingüística,
vista como um modo de ação social e não derivada
de condições de verdade ou de seu caráter lógico.
O homem constrói sua identidade na relação dinâmica
com a alteridade e, de um modo ou de outro, assimila o movimento das crenças
e paixões que movem seu grupo cultural. Nessa situação
retórica, os compositores acham-se no pleno direito de ressaltar
o poético e, desse modo, criam envolvimento por meio das paixões
além de oferecerem, a seu modo, um retrato da sociedade em que
vivem. Sendo assim, indagamos-nos como esse movimentar de paixões,
traduzidos em canções populares, podem, de algum modo, evidenciar
um ethos cultural masculino?
O movimento das paixões no discurso da MPB pode, de algum modo,
fundir características identitárias do sujeito, e os modos
de narrar e argumentar retoricamente, utilizando-se largamente das metáforas,
que se convertem em questões a serem exploradas nesta análise.
Um ethos cultural se cria a partir daí.
Como nosso objetivo era buscar uma classificação que nos
permitisse entender a metáfora como argumento, pautamo-nos essencialmente
na concepção dos estudos apresentados pela nova retórica.
Para categorizar as expressões metafóricas encontradas,
tomamos como base principalmente a obra Retórica Geral, organizada
por Jacques Dubois (1974).
Procuramos, pois, o ethos, o caráter que o orador deve assumir
para inspirar confiança no seu auditório, ou seja, o conjunto
daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação.
Para que isso ocorra cabe ao orador buscar elementos suficientemente convincentes
para atuarem no jogo da sedução pela palavra, o mais persuasivo
instrumento do poeta da Vila, Noel Rosa.
E como estes elementos chegam ao auditório? Nossa análise
parte em busca de mecanismos constitutivos do discurso persuasivo e dos
recursos de figuras de retórica, mais especificamente, a metáfora.
Buscaremos, na canção analisada, um retrato do ethos cultural
do sambista na Música Popular Brasileira da década de 30
pela presença dos movimentos passionais – um entrecruzar-se
de figuras e de temas que se movimentam retoricamente para constituir
os sentidos pretendidos - pela busca da linguagem figurada, pelo desvendar
do discurso persuasivo e tradutor do ethos.
A Retórica e as paixões
Para que possamos, de algum modo, categorizar as paixões, ou discursivizar
sobre elas, como diriam os semióticos, faz-se necessário
entender o movimentar passional desencadeado em uma ação
retórica, e assim buscar identificar as teorias que nortearão
nosso trabalho.
Utilizamos, como categoria de análise, algumas das paixões
classificadas por Aristóteles, que não fornece um modelo
de discursivização da paixão, mas as classifica em
um estudo mais sistematizado. Aristóteles preocupou-se com a paixão
que se manifesta no outro, e não com a paixão da personagem
do texto. Daí a necessidade de buscar outros autores que retomaram
este tema mais direcionado ao discurso, como Oliver Reboul, por exemplo.
A Retórica de Aristóteles compõe-se de três
livros: no primeiro deles, Aristóteles aponta como idéia
central o que não é só artístico (éntechnon),
isto é, depende da arte do orador, e se apresenta marcado pela
objetividade, ou seja, toma as argumentações demonstrativas,
denominadas provas (písteis), como elementos essenciais. No segundo
livro, diferente do primeiro, Aristóteles reconhece ser insuficiente
uma retórica demonstrativa para que o orador obtenha a confiança
dos ouvintes. É necessário não só atentar
para o discurso, a fim de que ele seja demonstrativo e digno de fé.
Para isso, põe-se a si mesmo no discurso e o outro em certas disposições.
E, neste sentido, lança mão das paixões. O terceiro
livro, que compreende o estudo da forma e do estilo, constitui com os
dois livros precedentes um tratado completo da arte oratória.
O sistema retórico aristotélico está dividido em
quatro partes ou fases que devem ser cumpridas pelo orador: a invenção,
a disposição, a elocução e a ação.
Para muitos autores, a memória constitui o quinto elemento e é
classificado como a arte de memorizar o discurso. A primeira das quatro
partes do sistema retórico é a invenção que
consiste na busca dos argumentos e meios para persuasão.
A disposição, constituindo a segunda parte, ou plano do
texto é um lugar, um plano-tipo para construir o discurso e está
dividida em seis partes: o exórdio, isto é, a parte que
inicia o discurso, cuja função fática é tornar
o auditório dócil, atento e benevolente; a narração
que consiste na exposição dos fatos referentes à
causa; a confirmação, que é o conjunto de provas,
seguido por uma refutação, que destrói os argumentos
adversários; a digressão tem a função de distrair
o auditório; a peroração é o que se propõe
no fim do discurso; e a disposição que é em si mesma
um argumento, cuja função heurística permite interrogar-se
metodicamente.
A terceira parte do sistema retórico, a elocução
é a redação do discurso em si. Segundo Cícero,
é a mais própria do orador, aquela em que ele se exprime
como tal. O estilo a ser utilizado justifica-se pela persuasão:
o melhor é o mais eficaz, o que se adapta ao assunto. Nesta fase
encontramos enquadradas as figuras de retórica, que nos servirão
também como base de nossa análise.
A ação constitui a quarta parte. É o arremate do
trabalho retórico, é a proferição do discurso.
Um ato retórico pode apelar para argumentos lógicos que
procurem mudar atitudes e comportamentos, mas pode, sobretudo, explorar
valores e anseios universais que pretendam incentivar atitudes humanas
e humanizadoras e, pela constituição discursiva, consigam
tocar a alma do ouvinte. Em um e outro caso, o orador, em busca da eficácia
de seu discurso, explora, em maior ou menor grau, três objetivos
da retórica: instruir (docere), comover (movere) e agradar (delectare).
O discurso persuasivo, contido no ato retórico, pretende agir sobre
o outro por meio do logos (palavra e razão), mas o estabelecimento
de acordos com o auditório implica a disposição que
os ouvintes conferem aos que falam (ethos).
A reação desencadeada nos que ouvem (pathos) depende, então,
da escolha dos argumentos e da credibilidade do orador. Assim, se considerarmos
a ação retórica instaurada em um espaço, aqui
visto como modo pelo qual a sociedade não somente reflete sobre
si mesma, como reflete o que essa sociedade é, num tempo específico
e marcado ideologicamente e que os discursos se tecem a partir de um exterior
constitutivo – o discurso do outro, o já-dito – e operam
sobre outros discursos, sobre dizeres presentes e dizeres que se alojam
na memória e no espaço do dizer.
Essa operação discursiva infunde ao texto um movimentar
de paixões que coloca em consonância, pela ação
da memória discursiva, uma seleção léxico-gramatical
específica e põe em funcionamento os recursos argumentativos,
a fim de garantir a adequação ao espaço social em
que o orador atua. As metáforas utilizadas funcionam assim como
tais recursos.
Para entender os mecanismos que traduzem esse dizer é necessário
envolver-se num processo de leitura do verbal da música, não
só para traduzi-lo, como também para refletir sobre as instâncias
retóricas que, imbricadas no processo discursivo, resultam em persuasão
ou convencimento. Assim sendo, em qualquer atuação lingüístico-discursiva
sempre foi essencial a utilização da inventio, dispositio
e elocutio para bem mover os auditórios.
O impulso retórico se traduz na ação, a última
das operações do modelo retórico, o culminar do processo
textual-comunicativo que se dá com a atualização
do discurso para um auditório que, por sua vez, deverá tomar
uma decisão a propósito dos fatos que são objetos
desse mesmo discurso.
Nesse sentido, há mesmo um discurso da paixão: verbalizam-se
ou provocam-se comumente paixões como amor, ciúme, desconfiança,
coragem, desarranjo, desdém, esperança, indignação,
desapontamento, rancor, serenidade, calma e tensão imersos no processamento
textual que, por sua vez, se tece por meio de estratégias sócio-cognitivas.
Quanto ao que se refere aos três tipos de argumento, temos o ethos,
primeiro tipo, que se relaciona ao caráter do orador e, para isto,
devemos entender sua autoridade, a qual depende de sua prudência,
de sua virtude e benevolência. Segundo a classificação
de Oliver Reboul é um termo moral, ético, e que é
definido como o caráter moral que o orador deve parecer ter, mesmo
que não o tenha deveras. Sua primeira tarefa é a de encontrar
argumentos, o que já o localiza em meio à primeira fase
do sistema retórico, a invenção.
“... o importante não é o caráter
que ele já tem, e que o auditório conhece, mas é
o caráter que ele cria.” (Reboul, 2000:54)
Ethos, segundo Reboul (2000: 48), é o caráter que o orador
deve assumir para inspirar confiança no seu auditório, ou
seja, o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação
o destinatário do discurso, deve preencher as condições
mínimas de credibilidade, que são a sensatez, a sinceridade
e a simpatia. Conhecer seu auditório é a regra de ouro na
retórica. Para Reboul (2000:48), “sensato é aquele
capaz de dar conselhos razoáveis e pertinentes. Sincero, aquele
que não dissimula o que pensa nem o que sabe”. E simpático,
“aquele que está disposto a ajudar seu auditório.”
O ouvinte, em suas novas funções, assume personalidade nova,
que o orador não pode ignorar. E o que vale para cada ouvinte particular
não é menos válido para os auditórios, em
seu conjunto, a tal ponto que os teóricos da retórica acreditaram
poder distinguir gêneros oratórios pelo papel cumprido pelo
auditório a que se dirige o discurso. Os gêneros oratórios,
tal como definiram os antigos - gênero deliberativo, judiciário,
epidítico -, correspondiam respectivamente, segundo eles, a auditórios
que estavam deliberando, julgando ou, simplesmente, usufruindo como espectadores
o desenvolvimento oratório.
"tal qualificação não pode ser
aceita tal qual por quem estuda a técnica da argumentação,
ainda assim tem o mérito de salientar a importância que o
orador deve atribuir às funções se seu auditório."
(Perelman & Tyteca, 1999:24)
Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente,
naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao
qual se dirigem seus discursos. O conhecimento daqueles que se pretende
conquistar é, pois, uma condição prévia de
qualquer argumentação eficaz.
Assim, o importante, para quem se propõe persuadir efetivamente
indivíduos concretos, é que a construção do
auditório não seja inadequada à experiência.
A argumentação efetiva tem de conceber o auditório
presumido tão próximo quanto o possível da realidade.
Uma imagem inadequada do auditório, resultante da ignorância
ou de um concurso imprevisto de circunstâncias, pode ter as mais
desagradáveis conseqüências.
"Esse contato entre o orador e seu auditório não concerne
unicamente às condições prévias da argumentação:
é essencial também para todos o desenvolvimento dela. Com
efeito, como a argumentação visa obter a adesão daqueles
a quem se dirige, ela é, por inteiro, relativa ao auditório
que procura influenciar." (Perelman & Tyteca, 1999:21)
A confiança inspirada pelo orador deve ser obra
de seu discurso e isso poderá converter-se em uma tarefa muito
difícil, pois é muito comum acontecer que o orador tenha
de persuadir um auditório heterogêneo. Para tanto, ele deverá
utilizar argumentos múltiplos para conquistar os diversos elementos
de seu auditório. É a arte de levar em conta, na argumentação,
esse auditório heterogêneo que caracteriza o grande orador.
Para este orador, aquele que tem ascendência sobre outrem, parece
animado pelo próprio espírito de seu auditório. Esse
não é o caso do homem apaixonado que só pensa nele
mesmo, mas, este, pode exercer certa influência sobre as pessoas
sugestionáveis.
Tal fato parece justificar-se na medida em que, o homem apaixonado, enquanto
argumenta, o faz sem levar suficientemente em conta o auditório
a que se dirige: empolgado por seu entusiasmo, imagina o auditório
sensível aos mesmos argumentos que o persuadiram a ele próprio.
Cabe ao auditório o papel principal de determinar a qualidade da
argumentação e o comportamento dos oradores.
Quanto ao seu discurso, o logos, o segundo tipo de argumento e sua argumentação
propriamente dita, é o aspecto dialético da retórica,
pois constitui um jogo no qual vencer é convencer. Um discurso
é retórico quando, para persuadir, alia seu componente argumentativo
a seu componente oratório, ou seja, a forma ao conteúdo.
O discurso pode transcorrer com base em dois tipos de argumentos: os entimemas
baseados em premissas prováveis, portanto verossímeis, que
os tornam dedutivos e vão do geral ao particular; e os exemplos
que, a partir de fatos passados concluem fatos futuros, que são
indutivos e vão do particular ao geral, do fato ao fato, passando
pela regra. Os entimemas podem ser sofísticos, ou seja, ser um
raciocínio cuja validade é apenas aparente e que ganha adesão
por fazer crer em sua lógica. O orador dispõe ainda de dois
tipos de provas: as extra-retóricas que são apresentadas
antes da primeira fase do sistema retórico, a invenção;
e as intra-retóricas que são criadas pelo orador.
Quanto ao terceiro tipo de argumento, temos o pathos, ou seja, o conjunto
de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve
suscitar no auditório com seu discurso (Reboul, 2000:48). Este
argumento precisa de conhecimento das diferentes paixões –
às quais Aristóteles sistematiza em sua obra - e dos diversos
caracteres dos ouvintes, segundo sua idade e sua condição
social.
Ainda que o poeta seja “um fingidor”, descreve modos de configurações
passionais. Enquanto ator, tem paixão, tem comportamento apaixonado
(ex. ciúme amoroso) e traduz esse sentir em língua. As paixões
postas se movimentam de modo a despertar o sentimento do auditório.
A identificação é real, ainda que a criação
seja apenas artística. De qualquer modo, reflete um jeito de ser
de quem diz e esse jeito de dizer sedimenta um ethos.
Para Aristóteles (cf. 2000:05), as paixões são "tudo
o que faz variar os juízos, e de que se seguem sofrimento e prazer".
Invocada pelo processo discursivo, a memória traz à tona
as cenas vistas e alguma forma de movimento passional se manifesta em
cada um de nós, pois a paixão se revela onde há mobilidade,
onde há imperfeição ontológica. Os efeitos
discursivos em maior ou menor grau de passionalidade, por sua vez, são
obtidos por estratégias retóricas.
A quarta fase do sistema retórico imputa elementos como voz, respiração,
gestualidade, tom e dicção a serviço das paixões
que são necessárias exprimir.
Apesar de a confirmação, terceiro elemento da disposição,
ter o logos como tempo forte, ela recorre ao pathos, despertando piedade
ou indignação no auditório. A digressão, outro
elemento da disposição, também recorre ao movimento
passional, pois sua função poder ser além a de distrair
o auditório, apiedá-lo ou indigná-lo. Na peroração,
quinto elemento da disposição, também encontramos
tal movimento a fim de despertar a piedade ou a indignação
no auditório.
Poderíamos, assim como sugere-nos Lopes (1986:02), ver nas cinco
partes do discurso realizado aristotélico, o percurso narrativo
da semiótica greimasiana nos moldes atuais, que relaciona a invenção
com a manipulação, a disposição com a competência
do saber, a elocução com a competência do poder, a
ação com a performance e a memorização com
a sanção.
As paixões não são entendidas como virtudes ou vícios
permanentes, mas estão relacionadas com situações
transitórias, provocadas pelo orador.
“A paixão é aquilo que permite refletir
a vida daqueles que os desejos impedem precisamente de se dedicar ao discurso
racional, uma vez que estão acima de tudo preocupados com a procura
incessante dos prazeres que os sentidos propiciam. O que significa que
o próprio conceito de paixão exprime já o ponto de
vista do filósofo e cai no interior do campo da razão, para
captar o que lhe é exterior.” (Meyer, 1994: 20)
Por esse pathos, pela paixão, sai-se da identidade
do sujeito, e não somente do em-si, em benefício do humano.
A paixão escapa ao logos, centrado no caráter apodítico
proveniente da identidade redutora do sujeito, assim se compreende o caráter
ameaçador e irracional da paixão por um logos definido apenas
pela apoditicidade.
Quanto à razão, é ela que escolhe os fins e proporciona
os meios. O que a natureza faz naturalmente, deve o homem fazer ativamente
e, sobretudo, deliberadamente. Havendo deliberação, há
escolha oposta e, portanto, paixões. A razão é considerada
por Aristóteles uma paixão refletida, portanto contida,
subordinada a um fim pensado. Aristóteles admite as paixões
e não as condena a priori exceto por seus excessos.
O jogo dos contrários está inscrito no campo passional,
fazendo deste uma preocupação privilegiada para a retórica,
que se ocupa das oposições.
Para Aristóteles (2000), a paixão é a expressão
da contingência; além disso, se de começo o pathos
é uma simples marca lógica ou ontológica (uma categoria
do ser), logo se servirá disso para caracterizar a relação
sensível com sua temporalidade inversa à ordem lógica.
Por ser contingente, a paixão exprime a diferença no sujeito.
Isso equivale a assimilá-la ao que no homem exprime sua individualidade;
ao passo que, ao mesmo tempo, o conduz ao exclusivo, à rejeição,
à negação sempre possível da humanidade do
homem. Daí a teoria do meio-termo, na qual a virtude acha-se centralizada.
Meio-termo, portanto, para Aristóteles, é o critério
de inclusão de si e do outro no seio do mesmo conjunto político.
Aceitar o outro é aceitar a si mesmo porque o outro está
em nós, age sobre nós e vive conosco, independente de nossa
vontade. Admitir as diferenças, partir dela, preocupar-se com o
que a sensibilidade nos permite vislumbrar nos outros é a etapa
necessária para chegar a definir um Bem comum para alcançar
uma identidade comum.
E o que é argumentar, senão tentar convencer, encontrar
uma identidade onde, de início, havia apenas antagonismo e diferença?
As paixões servem, assim, para classificar os homens e descobrir
se o que sentem é necessário para que quem quer convencê-los
aja sobre eles. Elas constituem um teclado no qual o bom orador toca para
convencer.
As paixões da multidão, as ambições dos homens
de ação, o materialismo dos negociantes vão tornar-se,
depois de Santo Agostinho, a própria essência das paixões.
A partir da era cristã, se transformará em paixão
a ilusão de que um meio é um fim, quando o único
fim deve ser o amor de Deus. Mas para Aristóteles, se as paixões
estão associadas ao prazer e ao sofrimento, um exercício
moral e socializado de nossas disposições poderá
fixá-las com vistas a fins idênticos.
Lugar em que se aventura a identidade e a diferença, a paixão
se presta a negociar uma pela outra; ela é momento retórico
por excelência. É assim a própria variação,
o que no mais profundo de nosso ser exprime o problemático. As
paixões são igualmente as respostas às inferioridades
e às superioridades que se aventuram a pôr em risco o Fim
comum, o qual tem de subjugar as diferenças e não provocá-las.
Por serem as respostas às representações que os outros
concebem de nós, mais tarde, as paixões serão chamadas
de formas da consciência em si.
Na classificação de Aristóteles, diferentemente do
que os modernos classificariam de paixões, estão a calma
e a vergonha. Ademais, conforme já citamos anteriormente, Aristóteles
não instala o auditório no discurso, não estabelece
um modelo de discursivização da paixão, o que para
nós, neste momento, faz-se necessário.
Como ethos e pathos se interpenetram no plano analítico, preocupamo-nos
com o movimentar das paixões que emana do texto para o auditório
e como esse “movimentar”, que provoca reações,
sedimenta um modo de ser e de ver o mundo (ethos). Valemo-nos, em busca
desse caminhar analítico, da lista apresentada na Retórica,
diferente da lista na Ética a Nicômaco, e a razão
disso é a ênfase diversa. Há onze paixões na
Ética e catorze na Retórica.
Na Ética há a alegria, o desejo ou o pesar, que são
estados de alma da pessoa considerada isoladamente. Na Retórica,
ao contrário, as paixões passam por resposta a outra pessoa,
e mais precisamente à representação que ela faz de
nós em seu espírito, ou seja, Aristóteles trata-as
no âmbito filosófico. Somente na Retórica encontraremos
a indignação e a vergonha, que são na verdade paixões-respostas
à imagem que formamos do outro.
Aristóteles, pois, preocupa-se também com o despertar da
paixão no auditório. Para nossos propósitos, buscaremos
identificar as paixões traduzidas em versos na canção,
de acordo com a categorização aristotélica, discutiremos
causa (de algum modo de natureza biográfica) e efeito (de algum
modo sedimentado no cancioneiro popular do Brasil), ethos/ pathos, sempre
a partir das marcas textuais deixadas nos versos do compositor.
As catorze paixões, elencadas por Aristóteles, são:
cólera, calma, temor, segurança (confiança, audácia),
inveja, impudência, amor, ódio, vergonha, emulação,
compaixão, favor (obsequiosidade), indignação e desprezo.
A retórica, vale ressaltar, é antes de tudo um ajuste de
distância entre os indivíduos. É isto que a separa
da lógica, pois é através da retórica que
derivam aquilo que pertence à mera verossimilhança, ao contestável.
Pela paixão dá-se uma fusão entre as consciências,
a do outro e a que temos de nós e, ao mesmo tempo, restabelece-se
uma certa diferença entre os indivíduos, nem que seja para
reforçar e confirmar a identidade das imagens recíprocas.
Estamos sempre prontos a pronunciar sobre uma identidade (e uma diferença)
entre o outro e eu, para a abolir, manter ou reforçar. Para nos
entender temos que negociar as diferenças para chegar a um mínimo
de identidade.
A argumentação, que visa a convencer, insiste na identidade
entre o orador e o auditório, sendo apenas uma modalidade retórica
entre outras, já que se pode querer reforçar a diferença
ou simplesmente sancioná-la. E em tal território argumentativo,
entram as paixões, pois elas tanto refletem as complementaridades
entre os homens como as suas dissonâncias. Ela é, portanto,
uma forma de consciência.
A paixão, além de ser a “diferença”,
é algo que se encontra aquém do discurso, é a expressão
da diferença que individualiza os homens, é aquilo que afeta
o gênero humano quando este perde de vista o que é genérico
e essencial. Define-se precisamente pela procura de equivalências,
de substitutos que, em parte, as satisfaçam e, ao mesmo tempo,
as exprimam e transfiram.
Aristóteles preconiza a justa medida nas paixões para que
elas se transformem em virtude, por uma espécie de hábito
repetido dos outros, é precisamente porque a justa medida preserva
as alternativas e as diferenças, o que significa dizer que as paixões
têm uma função política em virtude desta lógica
da identidade e da diferença que as rege. Segundo Aristóteles
"as paixões são aquilo que faz com que os homens variem
seus juízos e têm como resultado a dor e o prazer".
(Meyer, 1994:68).
Vemos, então, a questão da retórica das paixões
como meio de persuasão. E que, por meio da paixão, o homem
consegue identificar-se com ou negar um determinado tipo de texto, pois,
como diz Aristóteles: “as paixões são todos
aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir
seus julgamentos...” (Aristóteles, 2000:05).
A metáfora
Todo sistema lingüístico implica regras formais de estrutura
que unem os usuários desse sistema, mas a utilização
deste aceita diversos estilos, expressões particulares, características
de um meio, do lugar que nele se ocupa, de certa atmosfera cultural.
Desde a Antiguidade, provavelmente desde que o homem meditou sobre a linguagem,
reconheceu-se a existência de certos modos de expressão que
não se enquadram no comum, cujo estudo foi em geral incluído
nos tratados de retórica; daí o nome figuras de retórica.
Para que realmente uma figura se efetive são necessárias
duas características indispensáveis: uma estrutura discernível,
independente do contexto, ou seja, uma forma (seja ela, conforme a distinção
dos lógicos modernos, sintática, semântica ou pragmática),
e um emprego que se afasta do modo normal de expressar-se e, com isso,
chama a atenção.
Segundo Reboul, a expressão figuras de retórica "não
é pleonasmo, pois existem figuras não retóricas,
que são poéticas, humorísticas ou simplesmente de
palavras. A figura só é de retórica quando desempenha
papel persuasivo." (Reboul, 2000:113) Seria, portanto, uma fruição
a mais, uma licença estilística para facilitar a aceitação
do argumento. Reboul agrupa a função argumentativa das principais
figuras de retórica conforme sua relação com o discurso
em que se encaixam; e, mostra que, além do prazer que elas causam,
derivam ora da emoção, ora da comicidade, mas sempre do
pathos. Sua classificação divide as figuras entre: figuras
de palavras, figuras de sentido, figuras de construção e
figuras de pensamento.
Conforme é de nosso interesse, nos ateremos às figuras de
sentido que dizem respeito aos significados. Consistem em empregar um
termo (ou vários) com um sentido que não lhe é habitual.
Desempenham papel lexical, pois enriquecem o sentido das palavras. Devem
ser claras, novas e agradáveis. Entre o enigma e o clichê,
desempenham seu papel retórico.
São tropos, ou seja, tomam um significante no sentido de outro,
mas, quando um tropo é lexicalizado a ponto de nenhum outro termo
próprio poder substituí-lo, passa a ser uma catacrese, por
exemplo, “asa do avião”, que em sua origem era chamada
de metáfora, e passou a ser vista não mais como uma figura
- pois não há como descrever esta parte da fuselagem do
avião que lhe dá sustentação de outra forma.
São considerados tropos simples, a metonímia, a sinédoque
e a metáfora, das quais se originam tropos complexos como a hipérbole,
a litote, a insinuação, o eufemismo, a ironia, a hipálage,
a enálage e o oxímoro.
Para Lopes (1986), as figuras podem ser divididas em figuras de pensamento
e figuras de palavras, sendo que as figuras de palavras “resultam
de uma modificação imprimida no começo, meio ou fim
do corpo de um vocábulo, acarretando com isso um desvio no seu
sentido próprio, com o conseqüente aparecimento de uma nova
significação, dita ‘sentido figurado’”.
(Lopes, 1986:15), que se consubstanciam em figuras por adição,
que acrescentam um elemento material à totalidade considerada;
figuras por subtração ou supressão, que se obtém
suprimindo um elemento, ou mais, da totalidade; figuras por permuta, resultantes
da mudança de posição de elementos pertencentes à
mesma totalidade; e, figuras por comutação, ocasionadas
pela substituição de um elemento que pertencia à
totalidade como “próprio” por um elemento até
então estranho à totalidade.
Pode ocorrer que o uso de uma dada estrutura, em condições
anormais, tenha simplesmente o objetivo de dar movimento ao pensamento,
de simular paixões, de criar uma situação dramática
que não existe. Para ser percebida como argumentativa uma figura
não deve necessariamente acarretar a adesão às conclusões
do discurso, bastando que o argumento seja percebido em seu pleno valor;
pouco importa se outras considerações se oponham a aceitação
da tese em questão.
Quando uma figura é alijada do contexto, ela é quase necessariamente
percebida sob seu aspecto menos argumentativo; para aprender-lhe o aspecto
argumentativo, concebe-se a passagem do habitual ao não-habitual
e a volta a um habitual de outra ordem.
“Aristóteles liga a utilização
da linguagem trópica às suas condições de
uso. No seu entendimento, a linguagem figurada surge sempre que o enunciador
experimenta a necessidade de chamar a atenção do ouvinte
de modo especial para a sua mensagem, o que leva a marcá-la de
modo também especial, por meio de realizações que
a apartam da banalidade do discurso utilitário; para impressionar
o ouvinte e conseguir seus efeitos, é preciso afastar-se dos modos
de dizer comuns.” (Lopes, 1986:14)
Cumpre dar-se conta de que a expressão normal é
relativa não só a um meio, a um auditório, mas a
um determinado momento do discurso. Uma concepção mais flexível,
que considera o normal em toda a sua mobilidade, é a única
que pode devolver inteiramente às figuras argumentativas o lugar
que elas ocupam realmente no fenômeno de persuasão.
Para Ducrot, segundo Elisa Guimarães (Mosca, 1997:147) “o
valor argumentativo de uma frase não é somente uma conseqüência
das informações por ele trazidas, mas a frase pode comportar
diversas expressões ou termos que, além de seu conteúdo
informativo, servem para dar uma orientação argumentativa
ao enunciado, para conduzir o destinatário em tal ou qual direção”.
Alguns autores, como Max Black e Quintiliano, conforme afirma Marcuschi
(1986), concentram-se na idéia de metáfora como comparação,
que utiliza semelhança de características ou transferência
de propriedades. Para N. Goodman, como nos aponta Marcuschi (1986), a
metáfora produz a comparação e não a formula
simplesmente: a comparação é, no máximo, um
resultado da metáfora e não o contrário.
De acordo com os autores da Nova Retórica, Perelman & Tyteca
(1999:453), a metáfora é considerada como um fenômeno
discursivo e não puramente lexical que pode funcionar como estratégia
argumentativa. Nesse sentido, o grau de metaforicidade de um enunciado
depende sobremaneira da comunidade interpretativa, principalmente se levarmos
em conta as instâncias enunciativas que asseguram a produção
e compreensão do sentido figurado. Desse modo, as metáforas
produzem sentidos a partir de um contexto determinado.
Como as teorias que tratam da metáfora são muito distintas
e às vezes controversas, buscamos uma classificação
que nos permitisse entendê-la como argumento e, para tal intento
pautamo-nos na concepção da nova retórica, com base
nos estudos de Perelman e Tyteca (1999), Olivier Reboul (2000) e Jacques
Dubois (1986). Muitas das teorias existentes não põe em
questão a natureza retórica da metáfora, assim percorremos
essa linha de estudos que nos ajudaram a categorizar mais claramente o
poder de persuasão dessa figura na canção de Noel.
Perelman & Tyteca (1999), repetindo Aristóteles, admitem a
metáfora a partir de uma analogia que só é bem sucedida
quando seu valor deixa de ser verbal, porque certos aspectos dos termos
correspondentes do foro colocam os termos correspondentes do tema na perspectiva
afetiva buscada. Condensando na metáfora tanto a catacrese quanto
às chamadas expressões de sentido metafórico, os
inventores da Nova Retórica afirmam que bastará dar a essas
denominações o seu efeito analógico pleno para que
acabem por estruturar-nos o pensamento e por atuar sobre a nossa sensibilidade
de uma forma particularmente eficaz.
Assim, toda a analogia (exceto aquelas que se apresentam em formas rígidas,
como a alegoria, a parábola) torna-se espontaneamente metáfora.
Se acrescentarmos a esse pensamento uma visão da Pragmática,
poderíamos dizer que o presente da enunciação não
é apenas o do enunciador, mas um presente compartilhado, o da interlocução,
em que os sentidos possíveis emanam da construção
do enunciado e do processo interpretativo numa dimensão constitutiva
do próprio discurso que se apresenta.
As metáforas funcionam assim como lugares de negociação
que pretendem um continuum de pensamento capaz de despertar a atenção
do co-autor, capaz de criar repercussão imediata para, ao final,
conseguir a adesão. Sabe o articulista que o leitor virtual é,
via de regra, sempre um adepto de suas teses, pois o que se discute é
o bem-comum. Nesse sentido, a metáfora possui um conteúdo
de natureza cognitiva e, assim, emerge muito do desejo de ser eloqüente,
de ornar a fala por força de impulsos estéticos. Seu uso
possui natureza persuasiva e, portanto, pode funcionar como recurso argumentativo.
De qualquer modo, é preciso lembrar que os conceitos metafóricos
estão profundamente arraigados a nossa cultura e, por certo, estruturam
nossas atividades de maneira imperceptível e, até, inconsciente.
A metáfora se impõe, assim, para demonstrar as diferenças
e as identidades. Desse modo, amplifica o implícito e coloca o
explícito em seu devido lugar, numa relação direta
com a capacidade interpretativa do leitor. Não há meias
palavras, mas muitas palavras inteiras que ecoam por meio do recurso metafórico.
A dimensão interpretativa compete ao leitor.
Para Booth (1992), segundo Marcurschi (1986) a qualidade de qualquer cultura
será, em parte, medida pela qualidade das metáforas que
induz ou permite e a qualidade dos juízes da metáfora que
ela educa e recompensa. E o próprio Booth conclui: “As metáforas
que nos interessam estão sempre encaixadas em estruturas metafóricas,
a tal ponto de dependerem ou constituírem pessoas e sociedades".
Os estudos modernos, porém, mostram que o uso da metáfora
e outros tropos não é exclusivo de um único domínio
discursivo, mas parte da linguagem como um todo. Já no século
XX, a metáfora começa a ser vista como figura de retórica
com todas as suas implicações, e começa a ser questionada
nas suas bases. Nesse contexto de estudos sobre metáfora e cognição,
surge em 1980 Metaphor we live by de Lakoff e Johnson, classificando as
metáforas sob uma nova perspectiva. A obra foi traduzida ao Português
como Metáforas da vida cotidiana (2002.
Para esta nova forma de ver a metáfora, os autores usam o termo
metáfora para se referir ao conceito metafórico, que consiste
em experienciar uma coisa em termos de outra. Os autores argumentam que
a figura não é mais considerada desviante, marginal ou periférica,
e sim um fenômeno central na linguagem e no pensamento. Mostram
ainda que compreendemos o mundo por meio de metáforas, pois muitos
conceitos básicos, como tempo, quantidade, estado, ação
etc., além de conceitos emocionais, como amor e raiva, são
compreendidos metaforicamente.
Lakoff & Johnson (2002) afirmam que a metáfora constitui um
procedimento de raciocínio, isto é, nosso sistema conceitual
ordinário já é metafórico por natureza e,
assim, os processos de pensamento humano são, por conseqüência,
amplamente metafóricos.
Para o leitor comum, muitas metáforas podem ter perdido o valor
de surpresa e de expressividade e, nesse sentido, aparentar caráter
denotativo e monossêmico. No âmbito estritamente lingüístico,
talvez. Se, porém, considerarmos o contexto em que se inserem,
se observamos a freqüência com que esses termos metafóricos
se diluem pelo discurso, não será difícil perceber
que, em alguma instância da consciência, gera-se uma tensão,
cheia de ideologias e de discursos persuasivos.
No presente trabalho, devido a nossos objetivos, a metáfora será
abordada, principalmente conforme a classificação de Jacques
Dubois, Perelman & Tyteca e Olivier Reboul.
Designadas como tropos pela retórica clássica e redefinidas
como uma classe particular de metáboles do código –
entendidas como um tipo de mudança de um aspecto qualquer da linguagem
- as figuras de linguagem foram agrupadas nessas obras em metaplasmos,
metataxes e metassememas que dividem entre si o campo dos desvios do código;
e metalogismos que abrangem os fatos mais de imediato determináveis
no domínio das transformações do conteúdo
referencial (cf.Dubois, 1974:39). Essas metáboles são engendradas
pelas regras de: adjunção, supressão, supressão-adjunção
(ou substituição) e permutação.
A metáfora foi compreendida, então, como um metassemema,
ou seja, uma figura que substitui um semema por outro, e não como
uma substituição de sentido propriamente, mas como uma modificação
do conteúdo semântico de um termo.
“... a metáfora se liga a um sintagma onde
aparecem contraditoriamente a identidade de dois significantes e a não-identidade
de dois significados correspondentes. Esse desafio à razão
(lingüística) suscita um movimento de redução
pela qual o leitor procurará validar a identidade.” (Dubois,
1974:151)
A modificação pela qual a metáfora
passa resulta da conjunção de duas operações
de base fundamentais: a adição e a supressão. A metáfora,
segundo os autores, é produto resultante de duas sinédoques
e não propriamente uma substituição de sentido, mas
uma modificação do conteúdo semântico de um
termo, apresentando quatro níveis:
1. Metáforas puras, nas quais, para se construir uma metáfora,
devemos acoplar duas sinédoques complementares, que funcionem de
maneira exatamente inversa. Neste nível surgem dois tipos de metáforas:
a metáfora conceptual, que é puramente semântica e
atua sobre uma operação de supressão-adjunção
de semas; e a metáfora referencial, que é puramente física
e atua sobre uma operação de supressão-adjunção
de partes.
2. Metáforas corrigidas, nas quais, a metáfora atribui à
reunião de duas coleções de semas propriedades que
estritamente não valem senão para sua intersecção.
Poder-se-á corrigir uma metáfora por uma sinédoque,
extraída da parte não-comum; ou, ainda que menos freqüente,
por uma segunda metáfora; ou por uma metonímia.
3. Metáforas por comparação ou condensadas, às
quais o atributo comum desaparece, e não é designada a classe-limite,
o leitor recorre então à redução.
4. Metáforas por comparação ou copulativas, às
quais a comparação canônica é introduzida por
um “como”. Os autores têm empregado um amplo leque de
estruturais intermediárias, destinadas geralmente a atenuar o caráter
racional do como, que insiste sobre o caráter parcial da similitude,
e conduz, à afirmação de uma total comutabilidade.
É impossível dar conta da vasta literatura sobre a metáfora
e suas inúmeras teorias, porém seguiremos nossa análise
com base nas expressões metafóricas existentes em composição
de Noel Rosa, que remetem e figurativizam as paixões.
Análise da canção Último desejo
de Noel Rosa
Nosso amor que eu não esqueço Se alguma pessoa amiga
E que teve o seu começo Pedir que você lhe diga
Numa festa de São João Se você me quer ou não
Morre hoje sem foguete, Diga que você me adora,
Sem retrato e sem bilhete, Que você lamenta e chora
Sem luar, sem violão. A nossa separação.
Perto de você me calo Às pessoas que eu detesto
Tudo penso e nada falo Diga sempre que eu não presto
Tenho medo de chorar Que meu lar é um botequim
Nunca mais quero o seu beijo, Que eu arruinei sua vida
Mas meu último desejo Que eu não mereço a comida
Você não pode negar. Que você pagou pra mim.
"Último Desejo", composição
de temática amorosa, foi escrita em março de 1937, no período
final da vida de Noel. Esta canção soa como um testamento,
no qual temos não só o fim de um amor, mas o fim de uma
vida de samba. Aliás, só seria passada para a pauta quando
ele já se encontrava em seu leito de morte, mal podendo ditar a
melodia ao amigo Vadico. “Último Desejo” é um
samba autobiográfico, uma mensagem de despedida à amada
Ceci (Juraci Correia de Morais), com quem viveu um atribulado caso sentimental
e que lhe inspirou várias composições.
Um belo exemplo de canção popular, ao mesmo tempo simples
e requintada, "Último Desejo" dá a impressão
de que a carreira de Noel começava a evoluir para uma nova fase,
mais elaborada. Sua composição mais conhecida teve a primeira
gravação, realizada por Araci de Almeida, em 01.07.37, sendo
o disco lançado em março de 38. Morto em maio de 37, Noel
não pôde ouvi-lo. Perdeu-se assim a oportunidade de se conhecer
sua opinião, que por certo evitaria a longa polêmica sustentada
por Araci e Marília Batista, possuidoras de versões diferentes
de "Último Desejo".
Nesta composição temos as marcas do bom sentimento de conjunção
quanto os sinais da violenta sensação de perda que se manifesta
em revolta. Pede-se para poupar os amigos - “se alguma pessoa amiga”
- e incitar a ira dos inimigos – “às pessoas que eu
detesto”. Não quer desapontar nem uns nem outros. (cf. Tatit,
2002:37). Por meio da metáfora pura (cf. Dubois, 1974:155) “morte
do amor”, presenciamos, nesta composição, a figurativização
da decepção.
Àqueles que desejaram sorte ao par, recomenda-se dizer que o amor
continua apesar da ruptura. Aos que torciam pelo fracasso da relação,
merecendo, portanto, todo o seu ódio, a esse o enunciador quer
oferecer mais elementos disfóricos para instruir sua prática
de difamação.
Aristóteles (2000:25) afirma que “amamos os que amam intensamente
seus amigos e não os desamparam”. Talvez, a preocupação
quanto à aparente vida de sucesso do casal se dê em função
de o retor querer manter as aparências frente aos seus amigos, aqueles
que querem o seu bem, e fazer chegar aos inimigos uma imagem que busca
ter.
Frases como “que eu não mereço a comida que você
pagou pra mim”, no contexto apresentado, podem suscitar dúvidas
quanto ao fato de o retor merecer ou não a comida, mas não
quanto ao fato de ter sido paga pela ex-companheira. Encontramos um retor
revelador de um ethos oportunista e “malandro” que é
sustentado por outros, que vive à sombra de outrem, deixando o
trabalho como atividade distante de sua realidade.
No plano lingüístico, segundo Carvalho & Araújo
(1996) o uso do pronome “você” marca certa quebra do
formalismo com que Noel tratou Ceci em outras composições
feitas com o pronome “tu”. Este foi utilizado em canções
como “O maior castigo que eu te dou”, “Deixa de ser
convencida” e “Pra quê mentir?”, as quais apresentam
certa conotação de distanciamento.
Quando trata Ceci por você, Noel troca o formalismo compenetrado
e grave por outras atitudes ou sentimentos, embora a ironia não
deixe de estar presente em canções como “Só
pode ser você” e “Quantos beijos”, ou a saudade
em “Dama de cabaré”, ou ainda a melancolia na analisada
“Último desejo”, na qual o adjetivo “último”
reafirma tal idéia.
O pedido “meu último desejo” é um ato ilocutório
elementar que, para Ducrot (1987:189), significa “efetuar o ato
que pode ser efetuado...”, “apresentar sua enunciação
como obrigando” Ducrot (1987:192).
A conjunção se, que aparece na estrutura reveladora de uma
das paixões aristotélicas, o favor, “Se alguma pessoa
amiga pedir que você lhe diga” “pede ao destinatário
que imagine tal ou tal situação, e uma vez que se estiver
nesta situação fictícia, faz-se uma asserção,
uma interrogação, uma ordem, etc.” (Ducrot, 1987:10l)
Para angariar confiança e simpatia do auditório, o retor
lança mão de figuras como o cleonasmo (cf. Reboul, 2000:135),
que consiste no desgabo que o orador faz de si mesmo “diga que eu
não presto”. Essa figura denota a falta de sinceridade do
orador, mas justifica-se pela aparência que é conferida ao
ethos (cf. Ducrot, 1987:189).
O temor, classificado por Aristóteles (2000:31) como “certo
desgosto ou preocupação resultantes da suposição
de um mal iminente, ou danoso ou penoso”, aparece claramente em
“tenho medo de chorar”, o que revela um ethos masculino machista
já que não deve deixar transparecer seus sentimentos: o
amor, que, para Aristóteles (2000:XLIV) “é certamente
um vínculo de identidade mais ou menos parcial”, presente
em “o nosso amor que eu não esqueço” e o ódio
em “às pessoas que eu detesto”, tido para Aristóteles
(2000:27) como um “sentimento de rancor”. Segundo Chauí
(1987:40), “para os pagãos, o medo é divindade que
se abate sobre os fortes, para sua vergonha”.
Os homens, tidos em nossa cultura como seres racionais, em oposição
à sensibilidade, deviam camuflar este seu lado. Esta sensibilidade
devia ser ocultada. O retor de “Último desejo” tenta
demonstrar apenas seu lado racional.
É interessante notar que, apesar da dor da perda, temos um retor
que não toma nenhuma iniciativa para que tal situação
seja revertida. Talvez sua posição de “macho ferido”
o impeça de fazer algo e assim expor seus sentimentos para a sociedade.
Daí o favor que o retor pede à sua companheira: “Se
alguma pessoa amiga pedir...”. Como nos afirma Perelman & Tyteca
(1999:26):
“O importante, na argumentação, não é
saber o que o próprio orador considera verdadeiro ou probatório,
mas qual é o parecer daqueles a quem ela se dirige”.
Temos, assim, o discurso de um retor mais preocupado com o que os outros
dirão sobre o fato ocorrido, do que com a separação
em si.
Canção Paixões Metáforas
Último desejo “Tenho medo de chorar.” (temor)
“O nosso amor que eu não esqueço.” (amor)
“Às pessoas que eu detesto.” (ódio)
“Se alguma pessoa amiga pedir que você lhe diga.” (favor)
“Nosso amor ... morre.”
Considerações finais
Noel Rosa foi um dos mais ecléticos autores da música brasileira.
Compôs em quase todos os gêneros em voga em sua época:
samba, fox-trote, marcha, embolada, etc. Versejou sobre temas distintos.
A filosofia, a crônica, a originalidade, a sátira, o amante
e, por quê não dizer o nacionalista, aparecem em sua obra.
Noel cantou e encantou o mundo com seu samba diferente daquele já
existente na época. Louvou o malandro, a mulata. Defendeu o samba,
a vida boêmia. Lingüisticamente, foi inovador, impregnando
seus textos com oralidade jamais vistas então. Como poeta, usou
procedimentos estéticos que o aproximam do Modernismo, como o verso
livre, o poema-piada, o nonsense, a paródia e a consciência
crítica da realidade brasileira. Seu discurso foi caminho livre
para aflorar um movimentar de paixões e criação de
metáforas que ficaram registrados no tempo.
Vimos que paixões como o temor, o amor, o ódio e o favor
presentes na composição, são figuratizadas a partir
de expressões metafóricas - usadas no intuito de diminuir
as distâncias existentes - indicam dispositivos ou movimentos passionais
esteriotipados na nossa cultura contemporânea, configurando as paixões
sistematizadas por Aristóteles 300 anos antes de Cristo, e se desdobrando
para reforçar o ethos de um retor apaixonado, sensível,
e, muitas vezes, machista.
A exaltação ao malandro é clara nesta composição
de Noel, caracterizando um ethos que busca em cada situação
tirar proveito dela para “sair por cima”.
As metáforas, que segundo Reboul (2000:188), anulam as diferenças
e traduzem semelhança em identidade, revelaram um movimento retórico
de natureza argumentativa, que interferiram efetivamente no processo persuasivo,
revelando o ethos do retor projetado no pathos.
Noel mostrou-se um homem ciente de seu tempo, das modificações
sócio-culturais pelas quais sua gente vivia e tinha de se adaptar.
Com este pequeno corpus pudemos observar elementos constitutivos do ethos
do orador: a malandragem poética se sobrepõe ao real; a
pobreza se disfarça em vida burguesa; a condição
de inferioridade da mulher, mesmo quando o dito “pobre” poeta
não move um milímetro para melhorar sua condição,
baseado em seus próprios valores. O que se evidencia sempre é
a assimilação ampla e irrestrita do homem que vaga pela
noite, pândego, boêmio, apegado a valores criados em prol
de uma vida “malandra” e sem compromisso fixo, patemicamente
poeta. Sempre.
Noel Rosa compôs toda sua obra tendo como parâmetro e influência
o microcosmo caracterizado pelo samba, o bairro de Vila Isabel e a sociedade
carioca dos anos trinta. Suas composições romperam a fronteira
desse universo e se espalharam por décadas da cultura musical brasileira,
representando uma época em seu aspecto literário e musical,
servindo de influência e inspiração para outros artistas.
Os estados passionais vividos por nosso orador testificam que “A
paixão é sempre provocada pela presença ou imagem
de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é então
o sinal de que eu vivo na dependência permanente do Outro”.(Lebrun,
1987:18).
Presenciamos a figurativização da paixão, configurando
uma paixão maior: o amor pela vida boêmia, pelas rodas de
samba, caracterizando, assim, o ethos do sambista da década de
30 no Brasil: a indignação com a pessoa amada, com as imposições
da sociedade de seu tempo, que tinha uma concepção de trabalho
e impunha-a aos que dele quisessem fazer parte.
Com atividade intelectual intensa, Noel cultuou o malandro e seu modo
de viver. Integrou-se ao mundo do samba e a partir dele cantou e encantou
seu universo. Foram 259 legados de pura poesia e retratos de seu mundo.
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