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  O ALUNO DE EJA E A EXPERIÊNCIA DO CINEMA.  


Ana Maria Simões Coelho – Geografia -IGC/UFMG
Carmem Lúcia Eiterer – DMTE - FaE/UFMG
Emmeline Salume Mati – História -FAFICH/UFMG
Thiago Luiz Magalhães Silva- História - FAFICH/UFMG


As reflexões aqui expostas baseiam-se em nossa experiência na prática pedagógica, como coordenadoras e monitores-professores do Projeto de Ensino Fundamental de Jovens e Adultos - Segundo Segmento (PROEF-2) da UFMG. Neste Projeto, como é comum nas escolas, tivemos oportunidade de observar ou participar de atividades propostas por professores de diferentes áreas do conhecimento, as quais incluíam o uso, em sala de aula, de objetos, livros, imagens, filmes, mapas, gráficos e jogos, dentre outros, com intuitos didáticos os mais variados. Quase sempre o objetivo era tornar o conteúdo mais visível, palpável, compreensível, agradável e próximo do aluno. Nessas ocasiões a utilização de filmes revelou-se bastante instigante, na medida em que provocou o surgimento de determinadas questões relacionadas à linguagem cinematográfica.

Filmes, assim como jornais, obras literárias e outros materiais utilizados em sala de aula não são, em sua maioria, criados para fins didáticos. Isto, certamente, não inviabiliza sua utilização na sala de aula. Apontamos, contudo, a necessidade de o professor ter alguns cuidados que vão muito além de ter bem definidos os seus objetivos com a atividade proposta e de assegurar que estes estejam claros para os alunos. Queremos chamar a atenção para a especificidade deste tipo de texto – o filme – e o quanto seu conhecimento é essencial para o adequado desenvolvimento do trabalho com o cinema em qualquer sala de aula.

Assim propomo-nos a tratar, neste texto, de aspectos ligados ao desenvolvimento de práticas pedagógicas que incluam especificamente o uso do cinema na sala de aula: características próprias da linguagem cinematográfica, sua utilização em salas de aula de EJA e as razões para sua manutenção entre as possibilidades presentes nesse espaço.

Na busca de alternativas didáticas para o desenvolvimento do trabalho em sala de aula, os professores têm procurado acrescentar o cinema a suas práticas docentes visando principalmente ilustrar os temas trabalhados. Acreditam que desse modo conteúdos abstratos tornam-se mais acessíveis para os alunos. Embora este uso seja bastante comum entre o professorado, observamos que o cinema – ainda que possa vir a ser usado como instrumento pedagógico – é um produto que tem natureza particular e identidade própria, que deveriam ser reconhecidas e consideradas pelo professor e pelos alunos.

Com a expansão das vídeo-locadoras e do acesso aos aparelhos de vídeo e de dvd, os filmes parecem estar cada vez mais perto de todos. Mesmo aqueles que não freqüentam as salas de cinema podem ter assistido a um bom repertório de filmes pela televisão. Conversar com os alunos sobre os filmes a que assistem e sobre a leitura que fazem deles pode ser um bom começo para o trabalho.

Na continuidade deste trabalho pedagógico com o cinema na sala de aula, um dos aspectos mais importantes é reconhecer a linguagem em que os filmes são escritos. Que linguagem é esta? Que artifícios usam os cineastas para transmitir uma idéia, uma ação, uma emoção? Como se “escreve” um texto na tela do cinema? A partir desta linha de raciocínio podemos construir com os alunos a noção de que um filme é produto de escolhas e da ação de diferentes profissionais. Sua elaboração envolve várias etapas e diversos elementos, tais como um roteiro, cenários e produção de cena (escolha de determinados objetos para compor um cenário), atores, iluminação, figurinos, maquiagem, etc.

Alguns autores vêm se dedicando a discutir o trabalho didático com cinema na sala de aula e podem contribuir para esta reflexão. Entre eles, Kátia Maria Abud (2003) chama a atenção para o fato de que o cinema tem sido muitas vezes usado como exemplo, como ilustração de conteúdos (fatos, dados) trabalhados ou mesmo como comprovação daquilo que foi apresentado pelo professor, que chega a usá-lo como “prova documental”. A autora ressalta o quanto este uso desconsidera o cinema enquanto algo elaborado e construído por um autor, que é parte de uma determinada sociedade, num certo tempo histórico, numa dada cultura. Ignora, portanto, que se trata de produto da interpretação particular de um diretor, esquecendo a liberdade narrativa inerente à obra fílmica.

Segundo esta autora, o cinema não só pode como também deve estar em sala de aula, entre outros aspectos, por ajudar na construção do conhecimento escolar. O filme mobiliza uma série de operações mentais que auxiliam a elaboração de uma consciência da prática cotidiana. No entanto, para ela, é preciso dizer que a utilização do cinema em sala de aula tem sido equivocada. Segundo Abud não são todos os filmes que o professor aceita usar na sala de aula, pois seu critério de seleção não passa pelas qualidades características da linguagem cinematográfica, mas sim pelo conteúdo, particularmente, aquele que o professor imagina ilustrar um dado conteúdo com um maior grau de veracidade.

“a análise da restrita produção fílmica aceita pelos educadores se relaciona única e exclusivamente ao conteúdo. O cinema seria um bom recurso, pois atrairia a atenção dos jovens mais que as aulas e exposições orais realizadas pelo professor em sala de aula. Não se trata ainda de encarar a linguagem imagética como recurso com características próprias, nem de propor métodos de trabalho pedagógico com a exploração das imagens.” (ABUD, 2003, 188).

Para esta autora as imagens merecem estar em sala de aula, pois mobilizam uma série de referências: “elas provocam uma atividade psíquica intensa feita de seleções, de relações entre elementos da mesma obra, mas também com outras imagens e representações criadas e expressas por outras formas de linguagem.”(ABUD, 2003, 188).

Assim, o cinema deveria ser utilizado principalmente devido às diversas competências e habilidades que congrega, pois: “promove o uso da percepção, uma atividade cognitiva que desenvolve estratégias de exploração, busca de informação e estabelece relações. Ela é orientada por operações intelectuais, como observar, identificar, extrair, comparar, articular, estabelecer relações, sucessões e causalidades, entre outras”. (ABUD, 2003, 191).

Além dos aspectos relativos ao desenvolvimento da cognição, ao discutir a importância da interação entre cinema e educação, Miguel Lopes, chama a atenção também para aspectos estéticos, falando da importância da formação do olhar :

"o cinema é uma forma de criação artística, de circulação de afetos e de fruição estética. É também uma certa maneira de olhar. É uma expressão do olhar que organiza o mundo a partir de uma idéia sobre esse mundo. Uma idéia histórico-social, filosófica, estética, ética, poética, existencial, enfim. Olhares e idéias postas em movimento, através dos quais compreendemos e damos sentido às coisas, ou ainda, através dos quais buscamos e nos interrogamos sobre" (LOPES & TEIXEIRA apud LOPES, 2004, p. 192)

Com relação ainda as idéias que são postas em movimento, por exemplo, podemos perguntar como são retratados índios, xerifes, cientistas, policiais, vagabundos, prostitutas, etc. Ao verificarmos como o cowboy ou o índio são retratados neste ou naquele filme, refletindo sobre como essas representações são construídas, podemos, juntamente com os alunos, verificar que remetem menos ao índio ou ao vaqueiro em si mesmos, e mais a concepções elaboradas e partilhadas por um diretor, um ator e/ou uma equipe técnica em uma determinada cultura ou uma época. Ou seja, o que vemos não é um índio apache mas a representação que se faz dele. Uma imagem composta a partir de modos de pensar a respeito do que deve ser um apache, de como vive, fala, anda, come, etc.

Tendo em mente esta característica de construção do filme e dos personagens, desfaz-se de imediato a impressão de realidade que o filme nos transmite, recolocando-o como narrativa, como história que alguém nos conta a partir de um ponto de vista, de uma ótica determinada. A lente da câmera é meio de captar as imagens. Emprega para isto artifícios tais como planos e enquadramentos, que emolduram nosso olhar, dirigindo-o para perto ou para longe, para cima ou para baixo, depressa ou devagar. O diretor seleciona o que saberemos dos personagens, dos locais, das coisas, dos fatos narrados. Utiliza artifícios de iluminação, montagem, etc.

Entre a bibliografia que discute o fazer cinematográfico, o roteirista francês Jean Carriere, elabora um texto ágil e de natureza agradável, a partir de uma longa carreira no cinema europeu em que trabalhou com diretores renomados como Buñel, tendo participado da elaboração de filmes tais como O discreto charme da burguesia, Danton, Cyrano de Bergerac, A Bela da Tarde.

Discutindo a linguagem cinematográfica, Jean Carrière ressalta que:

“não só a linguagem é complexa, já que se dirige a cada espectador individualmente e à platéia como um todo (com reações que podem variar de uma projeção a outra), como também todos [os diretores] falam de seu próprio jeito, com seus próprios recursos e idéias, se possível com seu próprio estilo, suas próprias limitações e idiossincrasias.” (CARRIÈRE, 1995, 32).

Tratando ainda de recursos cinematográficos, Carrière aponta que no cinema até o silêncio é criado por engenheiros de som. De fato, ele chama a atenção ao fato de que esse silêncio absoluto, que se impõe sobre a platéia em algumas passagens de filmes, não existe na natureza:

“É sempre um belo momento no estúdio, quando o engenheiro de som pede alguns momentos de silêncio. Ele vai gravar esse silêncio; necessita dele. Vai usá-lo para alguma coisa (ninguém sabe exatamente o quê). (...) O silêncio só pode ser obtido num estúdio hermeticamente fechado. A luz vermelha se acende e todas as portas se fecham; tudo se paralisa, atores e técnicos ficam imóveis, prendem a respiração. Cria-se o silêncio”. (CARRIÈRE, 1995, 35).

Discutindo ainda a natureza do fazer cinematográfico, tratando da veracidade e verossimilhança na tela, o autor aborda os documentários. Estes filmes são elucidativos na busca de exemplificar a natureza do cinema. Afirma Carrière que mesmo os documentários, que aparentemente se dedicariam à veracidade dos fatos, a uma reconstituição precisa de determinados eventos, são simulacros, produtos de reconstrução com a finalidade de ser apresentados ao público. “Nesses casos, o subterfúgio tenta resgatar uma realidade que não se define (ou que pelo menos é melancólica e medíocre), dando-lhe o enganoso atrativo que aceitamos prontamente como ‘verdade’. E assim começa um novo capítulo na velha história da mentira”. (CARRIÈRE, 1995, 53).

Outra autora que se dedica a pensar a relação entre cinema e educação é Rosália Duarte. Chamando a atenção para a natureza dos documentários, afirma também sua natureza parcial, fruto da percepção de seus diretores:

"por mais imparciais que os documentários pretendam ser, suas imagens e o modo como eles as selecionam e as articulam umas com as outras na montagem do filme sempre refletem pontos de vista, visões de mundo ou, no mínimo, uma percepção parcial daquilo que foi visto e registrado em filme" (DUARTE, 2004, p. 206).

Como observa ainda a mesma autora, a verossimilhança estará presente mais do que a veracidade: “a impressão de realidade, base do sucesso do filme narrativo, tende a se reforçar no filme documentário e, para relativizá-la, é necessário que se favoreça o contato do espectador iniciante com distintas maneiras de fazer documentário, incluindo as experimentais e as não realistas" (DUARTE, 2004, p. 211)

Por outro lado, falando ainda da natureza do cinema e de seu efeito de verdade sobre o espectador, o roteirista Carrière chama a atenção para o fato de que “todo freqüentador de cinema é, a seu modo, um pouco São Tomé: acredita apenas no que vê e vendo o que acredita ver. (...)‘Se o truque for praticado de forma convincente’, não há como escapar. Consentimos, em geral, alegremente, em ser enganados.” (CARRIÈRE, 1995, p. 57). Caberia agora perguntarmos: qual é o meio que permite exercer esse poder hipnótico sobre o espectador? A fotografia, assegura-nos o autor. Ou seja, a impressão de realidade funda-se no uso da fotografia. “Todo filme é uma sucessão de reproduções fotográficas, e uma foto (não importa o que você faça com ela) é sempre algo que já existiu, que, em certo momento específico, foi real. Na verdade, a foto é a prova (às vezes das mais firmes) dessa existência.” (CARRIÈRE, 1995, p. 57).

Ademais, discutindo ainda a natureza de montagem dos filmes, mas ultrapassando a questão do cinema, frisa este autor que mesmo os noticiários da tevê têm suas imagens cortadas, montadas, manipuladas, sutilmente adulteradas pela montagem. Ressaltando o poder de iludir da imagem, aponta que tudo pode ser planejado para fazer a mentira parecer verdade. Podemos citar aqui como bom exemplo para motivar a discussão sobre este tema o filme Mera Coincidência.

No intuito de desviar a opinião pública e a atenção dos eleitores de um escândalo sexual envolvendo o presidente norte-americano, candidato à re-eleição, uma equipe de relações públicas resolve contratar um cineasta para criar uma guerra fictícia. O filme, excelente para auxiliar a discussão sobre verdade e ficção na televisão e no cinema, foi dirigido por Barry Levinson e tem os atores Dustin Hoffman e Robert De Niro nos papéis principais.

Ainda exemplificando as características da linguagem do cinema a partir da tevê, Carrière trata da presença da montagem nos noticiários, destacando o quanto este recurso se encontra disseminado atualmente:

“Um dos artifícios mais em voga ultimamente - começou nos Estados Unidos, mas tudo leva a crer que também é praticado em outros lugares - é o de forjar noticiários falsos, filmando acontecimentos encenados. Estamos impossibilitados de filmar esta ou aquela cena histórica? Não há problema: nós a reconstituímos usando atores.” (CARRIÈRE, 1995, p. 58).

O exemplo da tevê é didático por seu caráter cotidiano. Podemos partir de exemplos tirados daí para aprofundarmos a discussão sobre a manufatura da noticia. Carrière aponta que a realidade está sendo espetacularmente oferecida como simulacro nas televisões do mundo inteiro. E ainda, tratando da capacidade de perceber esse caráter artificioso, pergunta quantas pessoas se esforçarão para abrir os olhos, para ver de forma diferente. Ao que responde que, na maior parte do tempo, permanecemos indiferentes e apáticos diante das imagens que nos mostram e do som que nos fazem ouvir, simplesmente sem reação.

Voltando a tratar da artificialidade do filme, conforme o autor destaca, o cinema reinventa não apenas nosso cotidiano, mas também a história das civilizações. O cinema brinca com a história e também com a geografia reinventando, nos seus cenários, cidades inteiras. Construindo cidades mediterrâneas em pleno México, por exemplo. A arte de produzir cenários permite que um castelo medieval se erga até mesmo dentro dos limites de uma tela de computador, a partir do trabalho de apenas uma pessoa. Isto sem considerar os equívocos fruto de desconhecimento, preconceito ou da pressa da produção que levam à anacronismos e à caracterização inadequada de locais e povos.

“Não existem limites para esse intercâmbio de paisagens. Geralmente esse recurso é utilizado por razões de economia ou conveniência, mas alguns diretores parecem se deliciar com tal ginástica por ela mesma, fazendo da ilusão do espaço uma extensão da manipulação do tempo.” (CARRIÈRE, 1995, p. 129).

Ao que outra vez observa que, nós, como São Tomé, vemos, portanto acreditamos (CARRIÈRE, 1995, p.65). O autor nos compara também aos homens acorrentados na caverna de Platão, “que supõem ser reais sombras móveis que vêem, os espectadores também assistem sentados, imóveis, no escuro, a filmes que chamam de reais.” (CARRIÈRE, 1995, p. 65).

Em sua reflexão sobre a linguagem do cinema, este mesmo roteirista nos chama a atenção, por outro lado, para a natureza distinta da tevê e do cinema. Ele assinala que a sala de projeção nos aparta do mundo, colocando-nos em situação de isolamento durante algumas horas. Durante este tempo, abandonamos todas as nossas preocupações em favor da história narrada. Diferentemente, por não sairmos de casa, por termos a opção de mudar de canal a qualquer momento, porque não pagamos de forma direta pelo filme a que iremos assistir, a tevê não mobiliza nossa percepção na mesma medida. Afirma Carrière:

“quase poderíamos dizer que o papel da televisão é nos fazer esquecer os filmes. (...) Assistindo à tevê, ficamos, ao mesmo tempo, menos fascinados e mais distraídos do que no cinema, assim como menos perspicazes. Filmes que vemos novamente em casa nos parecem geralmente melhores que no cinema. Nosso espírito crítico adormece. ”(CARRIÈRE, 1995, p. 67)

Para aprimorar este aspecto da reflexão podemos atermo-nos ao significado da palavra anestesia. Estesia refere-se à percepção sensorial que é negada pela partícula (an) que a antecede. Assim, o termo anestesia diz que nossa capacidade de estesia, ou seja, de percepção sensorial, é diminuída. Por isto, sem dúvida nenhuma, a maioria de nós recorre ao anestésico numa consulta ao dentista. Entretanto, quando tratamos de nossa capacidade de percepção frente a tevê, o efeito anestésico se dá pela abundância das imagens, de modo que, olhamos mas não vemos. “Nas imagens que recebemos tudo se torna mais e mais parecido com tudo (...) Há o difundido rumor do desaparecimento da imagem, afogada pela própria abundância. ”( CARRIÈRE, 1995, p. 70-71).

Prosseguindo nossa discussão, recuperaremos outro aspecto fundamental. Conforme lembra o roteirista, temos prazer na ilusão. Contar histórias, assim como ouvi-las, é um hábito que desde os primórdios acompanha a espécie humana. Hoje o cinema ocupa o lugar do contador de histórias em nossa vida.

Como vimos, atermo-nos a como a história é contada faz parte do “assistir a um filme” e, mais ainda, do processo de educação do olhar. O trabalho do diretor, assim como de sua equipe, é esconder toda a técnica que faz o filme. De fato, como assinala Carrière, “infeliz do filme que permite as platéias ver o que o faz funcionar”. Apenas em alguns casos, em raros eventos de metalinguagem cinematográfica, o cinema escancara sua natureza técnica. Embora possa parecer paradoxal querer desvelar o que o autor buscou esconder, e apesar da aparente dificuldade da tarefa, consideramos da maior relevância aprender a ver filmes. Sobretudo numa sociedade audiovisual como a nossa, em que somos tão inundados por imagens que já não vemos efetivamente mais nada.

Aqui podemos acercarmo-nos mais de perto de nosso objetivo mais concreto. Ou seja, tendo em vista os aspectos que consideramos anteriormente, vejamos, no que diz respeito especificamente à EJA, as implicações do uso do cinema na sala de aula. Defendemos que, neste caso, pela constituição particular do público, ainda mais cuidados são necessários ao bom desenvolvimento do trabalho pretendido pelo professor.

Faremos nossa análise a partir do comentário de uma experiência com o cinema na Educação de Jovens e Adultos desenvolvida na prática pedagógica do Proef-2. Trata-se de uma atividade desenvolvida em torno do filme Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé (2003). A atividade proposta teve caráter interdisciplinar, envolvendo os professores de história, geografia e português e 04 turmas que incluem cerca de 65 alunos de 20 a 70 anos de idade, no seu segundo ou terceiro ano de inserção no Projeto. A idéia para o trabalho com o filme surgiu da necessidade de compreender e identificar os limites entre os conceitos de memória e de história. A atividade visava recuperar a história de vida dos alunos do projeto, buscando resgatar saberes e expandir a noção de conhecimento, no sentido de ultrapassar a lógica dos conteúdos escolares.

Diante da dificuldade de lidar com a diferença entre os conceitos de memória e história e do desejo dos monitores-professores de encontrar um eixo temático que fundamentasse o trabalho de todo o semestre letivo, a apresentação do filme “Narradores de Javé” pareceu uma escolha que consideramos seria uma boa oportunidade de, em primeiro lugar, oferecer aos alunos elementos para a reflexão e para a diferenciação entre os termos memória e história, além de, instigar uma série de questões pertinentes a proposta de valorização da memória desses educandos.

O filme Narradores de Javé conta a história de um povoado fictício (Javé), que está prestes a ser inundado para a construção de uma hidrelétrica. Para tentar mudar o rumo dos acontecimentos, os moradores de Javé resolvem escrever sua história, numa tentativa desesperada de transformar o local em patrimônio histórico reconhecido, portanto merecedor de ser preservado. O único adulto alfabetizado de Javé, Biá (José Dumont) é então incumbido de recuperar as narrativas dos moradores e transpor para o papel, de forma "científica", a história do lugar. Dispondo de uma “história científica” escrita e que atestasse a importância do lugar, a pequena vila poderia continuar existindo. Assim, Biá começa a entrevistar os moradores à procura de narrativas que possam compor o registro. O problema é que cada morador conta a sua versão da história do Vale de Javé expondo, na variedade das versões, o dinamismo da história oral.

No encontro que se seguiu à exibição do filme foi aberto um diálogo entre os alunos e os monitores sobre como Narradores de Javé se ligava à proposta de resgate de suas memórias. Neste contexto, a partir do filme, sugiram questões sobre: como lidar com diferentes versões de um mesmo episódio? Como distinguir se uma narrativa é mais verdadeira que outra? Podem existir múltiplas verdades sobre um mesmo fato? De que maneira o modo como uma história é contada influencia a forma como o público a recebe? Qual a importância da oralidade para a conservação e transmissão de uma determinada cultura? A memória é uma construção coletiva ou individual, ou ambas as possibilidades existem existem, e se interpenetram? Estas são algumas das perguntas que nos dispusemos a trabalhar.

Muitos dos elementos presentes no filme foram então comentados: por exemplo, a questão da multiplicidade de versões narradas pelas personagens. Muito acertadamente, vários foram os alunos que indicaram o fato de que cada memória é singular e depende do ponto de vista de quem a constrói. Outro ponto levantado pelos alunos foi o de que a existência de narrativas discrepantes sobre um mesmo assunto/fato não indica, necessariamente, que uma é mais verídica ou válida que outra: são apenas modos diferentes de expressar o mesmo acontecido, todos com a sua verdade ou seu grau relativo de verdade. Outro tema discutido foi o contato entre memória coletiva e memória individual, isto é, entre aquilo que uma dada comunidade compartilha como símbolos de sua identidade, de seu pertencimento mútuo e as formas pelas quais as pessoas se apropriam do material simbólico disponível e reelaboram suas narrativas pessoais segundo interesses e experiências particulares.

Muito se discutiu sobre a necessidade de valorização da oralidade na construção das memórias de uma comunidade. Outras questões levantadas foram: a preponderância, em nossa sociedade, da cultura escrita sobre outras formas de registro e qual tem sido o significado disto para comunidades onde a maioria das pessoas não têm acesso à educação formal. Outro ponto de debate foi a importância, o respeito (que beira o mito) conferido ao “discurso científico” nos tempos atuais, mesmo numa comunidade como Javé, onde a “ciência” seria algo muito distante dos moradores, virtualmente desconhecido.

Pudemos verificar que a utilização deste filme como texto para estimular e alimentar a reflexão a respeito da preservação e construção de memórias, sejam elas individuais ou coletivas, foi bem sucedida. O filme não foi apenas um pretexto para a discussão ou uma simples ilustração de matéria dada, mas sim o principal elemento motivador, isto é, parte primordial da construção da proposta de trabalho. A atividade foi bem recebida na medida em que o filme se mostrou de fácil compreensão, permitindo até uma certa identificação dos alunos devido às características da linguagem utilizada pelas personagens, que se assemelha à que muitos deles utilizam. A exibição foi importante, ainda, porque ajudou a resgatar a auto-estima dos alunos, mostrando como são valiosos o saber e as experiências que trazem para a sala de aula. Além disso ao colocarem-se, em seguida, no papel de narradores eles puderam praticar, com certo gosto, a habilidade da escrita, ainda que partindo de um saber dominado por eles: a oralidade.

Apesar do sucesso desta atividade, em outras experiências com filmes na sala de aula no Proef-2 observamos outros aspectos relevantes que importa destacar. Entre eles, o fato de que muitos alunos consideram que o uso de filmes na sala de aula é perda de tempo. Acreditam que voltaram à escola para recuperar um tempo que pensam ter sido perdido e trazem crenças arraigadas a respeito do que devem ser as práticas escolares. Estas crenças incluem a visão de que a aula é um espaço que deve ser usado para copiar a matéria dada pelo professor, ou seja, o lugar onde o professor fala e o aluno copia.

Quanto à capacidade de leitura do filme, muitos alunos prestam atenção em pequenos detalhes que não são, entretanto, aqueles considerados como os mais relevantes, de imediato, para a compreensão da obra ou para a discussão proposta pelo professor. Além disso, os alunos jovens e adultos apresentam grandes dificuldades relacionadas à “vista cansada” e à falta de hábito - de ler as legendas, o que obriga à exibição de filmes dublados. Muitos alunos apresentam ainda dificuldades de compreender o filme como um todo, compreendendo somente cenas separadas, mas perdem muitas referências intertextuais por exemplo, ou outras que remetem à identificação de lugares, períodos ou personagens da história ou da literatura através de imagens ou falas, muitas vezes rápidas. Acreditamos que isto ocorra tanto devido a carências em relação à cultura formal como em função do pouco costume de refletir sobre os elementos próprios da linguagem cinematográfica.

Cabe observar ainda que as considerações que fizemos não pretendem, aqui, descaracterizar o cinema enquanto meio de fruição artística. No entanto, é preciso destacar que o cinema, utilizado no espaço da sala de aula, tem também outros objetivos. De modo geral, o uso mais constante de filmes na escola permitirá a superação gradual de algumas das dificuldades apontadas.

Sendo assim, a proposta de assistir a um filme, deve ter ligação explícita com o conteúdo em estudo. Caso contrário, poderá ser recebida com descrédito, quase como pura perda de tempo. Visamos trabalhar a formação de senso crítico para a leitura deste tipo de texto, fornecer instrumentos com os quais os alunos possam, mais seguramente, criticar as imagens e mensagens que chegam a eles através do cinema. Com isso, pretendemos que o aluno avalie com conhecimento mais aprofundado o material que lhe é oferecido, ao invés de simplesmente absorver as idéias nele contidas. Como assinala Lopes,

"Um filme e o cinema entendidos como uma obra de arte constituem uma excepcional fonte de conhecimentos, de expressão e de leituras sobre vários temas e uma possível base para desencadear um frutuoso debate sobre uma imensidão de assuntos, sobretudo no campo educacional. Contrariamente, um filme como uma boa obra de arte pode ser apenas a visão de um mundo que nos é transmitida pelo artista que a concebe, que a realiza mas de qualquer maneira ele é mensagem, ou melhor, um transmissor de mensagens, com o impacto poderoso da imagem" (LOPES, 2004, p. 200).

Um aspecto relevante que devemos considerar é que as convicções políticas e religiosas dos alunos manifestam-se muitas vezes como dificuldades de lidar com valores novos ou diferentes dos seus. Cabe observar que todo leitor partirá sempre de seu repertório cultural ao ressignificar os textos que interpreta, inclusive, o cinema. As linguagens humanas são constituídas a partir de símbolos e o seu significado é variável, pois a cultura não é estanque. Assim, a interpretação que cada sujeito constrói de todo produto cultural representa a marca de sua subjetividade, sobreposta aos valores partilhados socialmente, que ajudam a constituir a sua identidade. Segundo Lopes, “a possibilidade de se comunicar, de se expressar e de receber informações pelo cinema supõe a aceitação prévia de que esta é uma forma de expressão tão importante hoje como a linguagem verbal, oral ou escrita". (LOPES, 2004, p. 196)

Queremos salientar, ainda, que cada jovem ou adulto partilha valores que se referem a seu tempo e modo de vida. O que singulariza a discussão aqui proposta é o fato de que nossos alunos jovens e adultos têm uma identidade social, econômica e cultural bem definida. Na maior partes das vezes, são sujeitos pertencentes à camadas populares e excluídos da fruição de determinados espaços e objetos culturais – como cinemas, museus, teatros, concertos, exposições e outros. Esta exclusão pode revelar-se maior ainda quando se trata de alunos mais velhos, já que os jovens usufruem mais comumente de algumas dessas práticas sociais como alternativa de lazer.

Isto quer dizer que na Educação de Jovens e Adultos a presença do cinema nas atividades didáticas adquire um valor a mais que é a inclusão do sujeito em práticas culturais das quais ele continuaria distante sem a intervenção da escola.

Concordamos com Rosália Duarte quando esta autora afirma que:

"o acesso a essa diversidade [de estruturas narrativas] é fundamental para o desenvolvimento da chamada competência para ver (objetivo principal da difusão do cinema na escola), ou seja, é a experiência da diversidade que desenvolve no espectador o gosto pelo cinema e a ampliação de sua capacidade de julgar, avaliar e apreciar obras cinematográficas" (Duarte, 2004, p. 211).

Apesar da resistência dos alunos que vêm tais atividades como ausência de conteúdo, queremos reafirmar a EJA como espaço de ampliação de repertórios num trabalho que inclui o próprio convencimento dos jovens e adultos, quanto à adequação e mesmo necessidade de convivermos com novas e diferentes formas textuais e com as possibilidades de aprendizagem que geram.

Levar os alunos não apenas a ver como meros espectadores, mas principalmente a pensar e entender a atividade faz parte do trabalho do professor. A argumentação, a preparação, a seleção do filme e sua análise são cuidados essenciais e, neste caso particular, necessários para construir com os alunos a aceitação e a participação na atividade. Quando bem sucedido o professor poderá lograr desenvolver nos alunos não apenas as habilidades relativas à compreensão dos jogos de imagem próprios da linguagem cinematográfica, mas também o gosto pela leitura estética e pelo cinema.

Bibliografia

ABUD, Kátia Maria. A construção de uma didática da História: algumas idéias sobre a utilização de filmes no ensino. HISTÓRIA, v. 22 (1):183-193, São Paulo, 2003.
CARRIERE, Jean-Claude. A Linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995.
DUARTE, Rosália. Documentários na escola. In: Romanowski, J.; Martins, P. L. ; Junqueira, S. R. (orgs.). XII ENDIPE. Conhecimento local e conhecimento universal: diversidade, mídias e tecnologias na educação Curitiba: PUCPR, 2004. volume 2
LOPES, José de S. M. Descolonizar o cinema? A educação agradece. In: Romanowski, J.; Martins, P. L. ; Junqueira, S. R. (Orgs.). XII ENDIPE. Conhecimento local e conhecimento universal: diversidade, mídias e tecnologias na educação Curitiba: PUCPR, 2004. volume 2.
TEIXEIRA, Inês A. C.e LOPES, José de S. M.(Orgs.) A escola vai ao cinema (2 ed.). Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

 
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