Rosemar Coenga
Quem não gosta de ouvir histórias? Tanto
crianças, como adultos apreciam uma boa história narrada
por um contador que sabe dar vida à história. A palavra
oral exerce um fascínio sobre as pessoas, e a história ouvida
é o primeiro livro de diversos leitores. São histórias
contadas e ouvidas que se transformam dentro do leitor e com ele vão
crescendo e o transformam. Assim, elas só acompanham determinado
sujeito porque alguém lhe propiciou esse contato.
Antes de mais nada, preciso expor alguns dos motivos que me levaram a
tratar da questão da leitura e infância. Percebo que essa
escolha começa com a minha própria história de leitura:
o prazer e o gosto despertados em mim, talvez, pelas histórias
lidas, contadas e reconstruídas pelo meu pai, à luz da lamparina.
Na minha memória, emergem, quase como que em um sonho, as histórias
que meu pai contava, quando fazia dormir a mim e a meus irmãos.
Elas nos faziam perder o sono e mergulhar no mundo do sonho e da fantasia.
Nas minhas primeiras lembranças, aparece a história de Chapeuzinho
Vermelho. Também não posso esquecer-me de A menina escondida
na terra, história do folclore brasileiro. Essas e outras histórias
revivificadas pelos contadores, entraram na minha memória pelos
ouvidos, antes que eu soubesse decodificar as letras. De acordo com Freire
(1996), as diversas experiências de leitura de mundo são
precursoras, riquíssimas e importantes do ato de leitura formal.
Ler a natureza, ler as fisionomias, ler os gestos, ler os símbolos
de sua cultura preparam o indivíduo para a leitura da escrita.
Assim, tudo aquilo que estava presente no cenário da minha infância
era signo à espera de leitura: o cheiro do pé de tarumã,
o pio da coruja, o rio que corria próximo á minha casa,
as plantas do jardim de minha mãe. Foi no livro do mundo, que me
iniciei na leitura, decifrando odores, sons, sabores, imagens e sensações
táteis.
Portanto, não foi na escola nem na universidade que eu adquiri
o gosto e o hábito pela leitura. Foram os olhos e a voz de meu
pai, na cabeceira de minha cama, que me encantaram.
Em primeiro lugar, quero refletir sobre a representação
social da infância pelos movimentos da história. Phillip
Ariès (1981), em sua conhecida obra História social da criança
da e da família, mapeia a trajetória histórica da
infância desde a história medieval: as crianças viviam
misturadas com os adultos, sem merecer qualquer cuidado ou atitude especial
por parte deles. Elas eram tratadas como adultos em miniatura, não
se constituíam como seres sociais diferentes dos adultos. No século
XVII a questão da infância começa a ser incorporada
ao cotidiano das famílias. A escola moderniza-se no século
XVIII, criando um espaço próprio para a educação
das crianças, consolidando o sentimento da infância.
A palavra “sentimento”, segundo o autor, não deve ser
entendida aqui como sinônimo de negligência ou abandono. Corresponde,
isso sim, a uma consciência que não distingue a criança
do adulto e que, em função disso, ela não é
tratada de acordo com as particularidades inerentes a este período
da vida. Por tal razão, no momento em que a criança não
necessita mais dos cuidados constantes da mãe, ela junta-se aos
adultos sem se distinguir destes.
No intrincado mundo das relações literárias, os escritores
são movidos por uma paixão pela leitura que deflagra sua
própria escrita literária. Neste trabalho estabeleço
um diálogo com fragmentos literários de dois autores expressivos:
Clarice Lispector e Marcel Proust. Elejo como material de análise
o conto Felicidade Clandestina e a obra Sobre Leitura, buscando analisar
as primeiras experiências com a leitura e o livro contemplando a
história das infâncias.
Felicidade clandestina e Sobre a Leitura, são narrativas de memória
pontuada por uma gradativa consciência de linguagem e pela recuperação
de lembranças nas quais a palavra assume a condição
de objeto. Nesse interesse pelas palavras e pelo mundo ficcional, subjaz
a consciência do futuro escritor (a). Tempo e experiências
interpenetram-se e acumulam-se formando um arcabouço para a existência
humana. Em sua obra Memória e sociedade: lembrança de velhos,
Ecléa Bosi (1995), deixa claro que, para a coexistência do
passado, hoje, é preciso de uma fonte que o permita transcursar
pelo tempo. E uma dessas fontes é a literatura que pode ser considerada
como uma guardiã do passado. A arte literária desempenha
a função social de manter acesa a chama da memória,
possibilitando, assim, por meio de sua existência, consertar falhas
e promover um presente e um futuro melhor.
Clarice Lispector nascida na Ucrânia, em 1925, e morta no Rio de
Janeiro, em 1977, Clarice Lispector, brasileira naturalizada, passou a
infância no Recife, mudando-se para o Rio de Janeiro entre os 12
e 13 anos. Em 1944, com apenas 19 anos, publicou Perto do coração
selvagem, romance que causou estranheza à crítica, pelas
novidades que trazia: a sondagem do mundo interior, as profundezas do
subconsciente relativizando o enredo, a ação, como em Virgínia
Wolf, James Joyce e Marcel Proust.
A paixão pelo livro é comum na vida de Clarice Lispector,
que não esconde do leitor o seu amor à leitura. Nádia
Battella Gotlib (1995) em sua obra Clarice uma vida que se conta, narra
sobre a vida e obra de Lispector. O interesse pelas palavras e pelo mundo
ficcional é muito intenso na vida de Clarice. “Depois que
eu aprendi a ler e a escrever, eu devorava os livros! Eu pensava! Olha
que coisa! Eu pensava que livro é como árvore, é
como bicho: coisa que nasce! Não descobria que era um autor! Lá
pelas tantas, eu descobri que era um autor. Aí disse: Eu também
quero! (Gotlib, 1995:86).
Publicada em A Descoberta do Mundo (1967), com o título “Tortura
e Glória” (republicada com o título Felicidade Clandestina,
em 1971). Em Felicidade Clandestina é possível falar em
tematização da própria leitura: trata-se da relação
do leitor com a palavra, lendo-a e escrevendo os seus sentidos. Na crônica
Felicidade Clandestina, a escritora relata as humilhações
porque passou quando criança, no Recife, ao demonstrar sua ânsia
de ler o livro As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Na crônica Felicidade Clandestina fica explícito o ritual
de passagem experimentado pela protagonista durante a busca pelo livro;
esse ritual configura-se como um percurso durante a qual algumas provas
lhe são impostas, tanto pela menina dona do livro, na recusa e
na promessa tantas vezes repetidas ? “enquanto o fel não
escorresse todo pelo seu corpo grosso” ou até que uma “mãe
boa” entendesse ? quanto por si própria, na interposição
de falsas dificuldades. “Fingia que não o tinha, só
para depois ter o susto de o ter [...] fingi que não sabia onde
guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. (Lispector:
1998:13). A posse total do objeto desejado não coincide com o seu
recebimento, prenuncia-se apenas no final do percurso empreendido para
a sua conquista, ao término da narrativa, quando: “não
era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante”.
(Lispector: 1998: 14).
Felicidade Clandestina narra a intensidade da relação dessa
escritora com o livro. Na obra de Clarice Lispector, a palavra é
colocada no centro da diegese; o motivo que leva ao clímax o enfrentamento
entre a narradora e sua antagonista, num primeiro momento, e, depois,
entre a leitora e o livro. É o desejo de ler que desencadeia a
dura aprendizagem porque passa a narradora. E a leitura é o motivo
da ficção.
Clarice mantém uma paixão por Monteiro Lobato: “Quanto
a mim, continuo a ler Monteiro Lobato. Ele deu iluminação
de alegria a muita infância infeliz. Nos momentos difíceis
de agora, sinto um desamparo infantil, e Monteiro Lobato me traz luz”
(Lispector, 1984:205). Assim, fica clara a paixão de Clarice pelo
objeto livro, objeto de desejo da menina Clarice (personagem de Felicidade
Clandestina).
Marcel Proust nasceu em Paris, em 10 de julho de1871 e morto em 1922.
Suas primeiras experiências literárias deram-se em 1892 quando,
com alguns amigos, fundou a revista Le Banquet.
Proust narra com rara beleza momentos alegres de sua convivência
com a leitura, o que ele denomina de um prazer divino. Em sua obra Sobre
Leitura, Proust rememora suas férias, durante as quais a interrupção
de um livro para o almoço era abominável, o convite de um
amigo para um jogo exatamente na passagem mais interessante, a abelha
ou o raio de sol que o forçava a erguer os olhos da página
ou a mudar de lugar, a merenda que o obrigavam a levar para os passeios
e que deixava de lado, intocada, sobre o banco, enquanto sobre a cabeça
o sol empalidecia no céu azul. O jantar o levava de volta à
casa e ele esperava ansioso que terminasse para, logo em seguida, poder
concluir a leitura do capítulo interrompido. O escritor francês
do século XIX assim começa o seu texto:
Talvez não haja na nossa infância dias que
tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado
passar sem vive-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido.
(Proust, 1991: 9).
O autor diz, que tudo isso, visto à distância,
são doces recordações. E como em busca de cúmplice,
ele faz quase que uma indagação: “quem como eu, não
se lembra dessas leituras feitas nas férias, que íamos escondendo
sucessivamente em todas aquelas horas do dia que eram suficientemente
tranqüilos e invioláveis para abriga-las”. (1991:10).
Proust conta que, ao retornar dos passeios matinais, metia-se na sala
de jantar e instalava-se numa cadeira ao pé da lenha para ler,
tendo como companhia de leitura “os pratos coloridos na parede,
o calendário, o pêndulo e o fogo que falam sem pudor que
se lhes responda, e cujos suaves propósitos vazios de sentido não
substituem ? como as palavras do homem ? o sentido das palavras que se
lêem. (1991;10).
De tempos em tempos, ouvia-se o barulho d bomba que fazia a água
correr e também levantar olhos e olhá-la através
dos vidros fechados da janela. Infelizmente, a cozinheira vinha com muita
antecedência arrumar a mesa e, para sua tristeza, sempre fazendo
comentários.
A hora passava e as pessoas começavam a chegar para o almoço.
E junto com elas vinham as conversas, embora não deixassem de dizer
que não iam incomodá-lo. Para ele isso significava um exemplo
para que outros ao chegarem pensassem que já fosse meio dia. Motivo
suficiente para que seus pais logo dissessem: “venha, feche seu
livro, vamos almoçar” (1991:11)
Para ele, o almoço era interminável, permeado de muitas
conversas entre os membros da família: tios, pais e avós.
Qual não era sua alegria quando as pessoas se retiravam para seus
quartos e ele também podia subir ao seu, para poder retomar a leitura
quilômetros da vila.
Ele sempre abreviava o final da merenda, após o jogo obrigatório
realizado no parque, a fim de retomar a leitura do livro que trazia consigo.
Não costumava ler à noite antes de dormir. Algumas vezes
o fazia quando o livro já estava chegando ao fim, arriscando com
isso ser punido pelos pais e a ter insônia, que poderia prolongar-se
pela noite inteira. Depois da leitura acabada e com o fim de dar outros
movimentos aos tumultos neles desencadeados pela leitura, começava
a caminhar em volta da cama com os olhos fixos em algum ponto, para que
ele estava situado numa distância que chamou “ a distância
da alma”. Distância que não é medida por léguas
ou por metros como as outras. Difícil confundi-las com essas quando
olhada os olhos “distantes dos que pensam em outras coisas”.
E questiona: “ E aí? Esse livro não era senão
isso? Esses seres a que se deu mais atenção e ternura que
às pessoas da vida, nem sempre ousando dizer o quanto a gente os
amava, mesmo quando nossos pais nos encontravam lendo e pareciam sorrir
de nossa emoção, e fechávamos o livro com uma indiferença
afetada e um tédio fingido” (1991:23).
Além disso, o autor faz outros comentários que mostram algumas
frustrações ao terminar uma leitura, como por exemplo, o
fato de os personagens jamais serem vistos e de sequer saber algo deles
que não fosse apenas um nome numa página esquecida, ocupando
um lugar estreitinho na biblioteca.
Para Proust, as leituras na infância deixam em cada leitor a imagem
dos lugares e dos dias em que foram feitas. Confirma esse ponto de vista
dizendo que, ao referir às suas leituras de infância, falou
de outras coisas e não dos livros, porque não foram deles
que as leituras lhes falaram. Mas talvez a lembrança que eles lhe
trouxeram tenham conduzido o leitor pouco a pouco através de sua
narrativa a recriar “em seu espírito o ato psicológico
original que se chama leitura”. (1991:25).
Vida e ficção nesses textos se entretecem, servindo de substrato
para esse campo chamado texto literário apontando caminhos e fertilizando
a arte do autor.
BIBLIOGRAFIA
ARIÈS, Phillipe. História social da criança
e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos
que se completam. São Paulo: Cortez, 1996.
GOTLIB, Nádia Battela. Clarice: uma vida que se conta. São
Paulo: Ática, 1995.
NOLASCO, Edgar Cezar. Restos de ficção: a criação
biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo:
Anablume, 2004.
PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Trad. Carlos Vogt. Campinas: Pontes,
1991.