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  CONTAR HISTÓRIAS: O ENCONTRO DAS HISTÓRIAS COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES DOS NÚCLEOS COMUNITÁRIOS DE CAMPINAS

Lívia Rodrigues Pinheiro - Grupo Manauê – Contadores de Histórias
Viviane Silva Coentro - Grupo Manauê – Contadores de Histórias


Este relato começa com a história de um grupo de contadores de histórias chamado Manauê: cinco contadoras das áreas de Pedagogia, Fonoaudiologia e Educação Física. Um grupo que há seis anos se dedica difundindo essa arte milenar esquecida em nossos tempos da mídia e comunicação de massa. A contação de histórias, tal como é feita pelo grupo, tem como seus principais objetivos: o resgate histórico/cultural do contador de histórias tradicional e de valores humanos; a divulgação de obras literárias, bem como dos contos populares de tradição oral; e a difusão da arte de contar histórias.
Para isso, o grupo realiza Sessões de Contação de Histórias e Oficinas de Formação de Novos Contadores.
Foi assim que, no ano de 2004, realizou um trabalho com os 17 Núcleos Comunitários da Secretaria Municipal de Assistência Social de Campinas/SP – Gestão democrática e popular/2000-2004. Enquanto o grupo oferecia oficinas de formação para os monitores que atuam nos núcleos, também realizava sessões de contação de histórias para as crianças dos mesmos.
O que são os núcleos?
Segue abaixo trecho do documento oficial da prefeitura de Campinas, o qual explica a função dos núcleos comunitários.
“Serviço de Núcleos Comunitários de crianças e adolescentes
Justificativa
Os núcleos surgiram em 1983 por reivindicação da população de bairros periféricos da cidade.
O programa atende crianças e adolescentes de 07 a 14 anos em regime de apoio sócio-educativo em meio aberto, em período extra escolar com trabalho extensivo à família e a comunidade.
O Serviço de Núcleo é o único que atua em caráter preventivo com crianças e adolescentes na Secretaria Municipal de Assistência Social cumprindo um papel fundamental nos eixos básicos da Assistência Social: inclusão, proteção e promoção de crianças, adolescentes e famílias, através de atividades sócio-educativas, recreativas, lúdicas e de formação.
O programa tem como eixo norteador a Leio Orgânica de Assistência Social- LOAS, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, especificadamente os contidos nos artigos 3º, 4º, 71º, 90º e a Constituição Federal no seu artigo 227º.
Atualmente 17 núcleos estão em atividade, conforme descritos na identificação.
Objetivos Gerais
- Proporcionar às crianças e adolescentes, mediante atividades recreativas, esportivas, culturais, artesanais e de complementação escolar e alimentar, oportunidades de crescimento, desenvolvimento e formação, atendendo o disposto no ECA.
Objetivos Específicos
- Possibilitar às crianças e adolescentes proteção, complementação alimentar, formação emancipatória, participativa, autônoma e crítica
- Desenvolver ações integradas com a escola, família, comunidade e demais recursos sociais da rede
- Acompanhamento às famílias na perspectiva de fortalecimento dos vínculos e geração de renda.”

Fundamentos do trabalho

. “Contar histórias não é só dizer um texto” (p.46), assim fala Celso Sisto (2001:44); contar é “vivificar” a história de uma forma “quase ritualística, se pensarmos na evocação. O contador evoca algo que já aconteceu”. Tarefa difícil que demanda uma delicada preparação. No entanto, contar histórias é um trabalho artístico que exige do contador um encontro consigo mesmo, um estudo cuidadoso a respeito da importância e complexidade do seu trabalho.
Contar histórias é um ato solidário, o qual envolve a presença do outro para poder acontecer, se consumar. Porém, entre o contador e o ouvinte, existe a presença fundamental do livro: a fonte das histórias contadas, o registro da memória humana. É nele que o contador encontra seu repertório.
O grupo Manauê acredita que desta forma incentiva a leitura, pois depois das sessões mostramos de onde retiramos as histórias. Assim como afirma Sisto (2001:105), somos “promotores de leitura”, porque “contar uma história é uma maneira de encantar o aluno para fazê-lo chegar ao livro”. Cria-se uma relação afetiva ouvinte-história-contador, respectivamente ligada ao livro, que é fonte direta do mundo das histórias e objeto, também, de muito zelo e carinho do próprio contador.
Contar histórias está intimamente relacionado com as produções literárias, sendo ambas manifestações artísticas que exprimem conhecimento humano: sentido, pensado e vivido de formas diversas, múltiplos jeitos de ver o mundo e explicá-lo. “A arte, em todas as suas manifestações, é, por conseguinte, uma tentativa de nos colocar diante de formas que concretizem aspectos do sentir humano. Uma tentativa de nos mostrar aquilo que é inefável, ou seja, aquilo que permanece inacessível às redes conceituais de nossa linguagem. As malhas dessa rede são por demais largas para capturar a vida que habita os profundos oceanos de nossos sentimentos. Ali, quem se põem a pescar são os artistas. (Duarte, 1991:49).

O encontro das crianças com as histórias

Nos núcleos comunitários encontramos crianças que não tinham relação com a leitura, com os livros. Elas vivem nas periferias da cidade de Campinas, expostas a violência doméstica e das ruas. Passam parte do dia na escola pública, e o contato com os livros é para realizar as provas de fim de bimestre. Uma leitura imposta e obrigatória. Ouvir histórias, para essas crianças e adolescentes, é coisa de “criancinha”, distante da realidade dura a qual se encontram.
O grupo enfrentou dificuldade em quebrar tais opiniões, porém, com conversas e histórias mostramos que nosso trabalho era diferente do que imaginavam. O que antes era “coisa de criancinha” começou a ser muito requisitado: “Conta outra!”, pediam as crianças e os adolescentes. E o que antes passava desapercebido aos seus olhos -o livro, teve presença obrigatória: “Deixa eu ver!”, e liam as histórias para os colegas que ainda não sabiam ler.
O primeiro desafio havia sido vencido, mas tínhamos um longo ano pela frente e poderíamos expandir ainda mais nossas possibilidades de trabalho com as histórias. Foi então que discutimos formas de “trabalhar” as histórias contadas. Mas, “trabalhar as histórias”? O que seria isso? Uma história deve ser trabalhada?
“Brinque e seja criativo: é a coisa mais importante para a sociedade dos sonhos”, disse Anna Marie Holm, no Seminário Internacional de Estética, 2004. Essa frase veio nos responder as questões anteriores e nos orientou na segunda etapa do trabalho com as crianças e adolescentes dos núcleos.
Colocamos então como proposta e objetivo desta etapa a brincadeira com a história.
Essa brincadeira teria como ponto de partida o conto tradicional “A princesa que tudo via” (Pamplona, 1999) e logo após, seria proposto às crianças e adolescentes uma busca por objetos que representassem os personagens da história. Essa busca seria livre, poderia ser em grupo ou individual e eles deveriam explorar todo o núcleo trazendo qualquer objeto. Depois que achassem tudo, formariam grupos (dependendo do número de crianças) e brincariam com os objetos recontando a história conforme as suas significações.
A utilização dos objetos foi pensada considerando as reflexões de Machado (2004:86) que diz: “quando os adultos permitem, as crianças dão vida aos objetos nas suas brincadeiras”. E presenciamos momentos em que garrafas de plástico, molas, folhas, etc tinham vida própria e compunham um cenário de fantasia e diversão.
Segue abaixo fragmentos do diário de campo de uma contadora do Grupo que ilustram a alegria diante tal experiência com a brincadeira onde tudo pode ser: história e objeto.

“Foi muito bom quando comparamos todas as princesas e eles iam falando: “essa tem um cabelo ruim”; “essa tem a saia aberta que parece a calcinha”. Assim iam descrevendo as princesas e escolheram a mais cabível: o detergente! Uma princesa magra. Houve uma discussão quanto ao príncipe e o soldado: qual seria o mais forte para ser o álcool.”(01 de junho de 2004)

“Foi incrível a forma que meninos ressignificaram o conto! Acho que nem conseguiria descrever... Um deles foi a princesa (menino) e falava com vozes e tudo mais. Todos sentiam necessidade de participar, ajudando a contar ou manipulando uma personagem. É impressionante como eles vivem a história com prazer e alegria, mesmo que sendo pelo puro e apenas BRINCAR pois não haveria apresentação. Apenas dois adolescentes não brincaram, mas estavam atentos na história que os amigos recontavam.” (8 de junho de 2004)
“Mas no meu grupo um menino se destacou totalmente com o soldado, que era uma mola! Ele foi espetacular, fez vozes e tudo mais. AQUELA MOLA GANHOU VIDA E ERA UM SOLDADO!” (24 de junho de 2004).

Segundo Machado, a criança é criteriosa na escolha do objeto, não escolhe qualquer coisa. Observa suas qualidades e “vira o olho”, imagina e projeta no objeto as possibilidades deste ser o seu personagem. “Então a conversa é sempre uma interação entre o dado que está fora de mim, com suas qualidades expressivas, e os dados que fazem parte da minha experiência subjetiva do mundo, minhas imagens internas.” (Machado, 2004, p.89). Uma conversa interna travada entre a criança e o objeto, é a imaginação fluindo pela possibilidade de ser, são significações pessoais atribuídas para aquele momento mágico de contato com as qualidades do mundo interno e externo. O aguçar da curiosidade é a mola para as grandes invenções: “e se isso pudesse ser...?”.
A brincadeira com a história passa a ser uma releitura significativa do mundo e das coisas, atribuindo “eficiência poética” (Machado, 2004) à função prática dos objetos. “Este “lá” para onde a pessoa se transporta é o lugar da imaginação enquanto possibilidade criadora e integrativa do homem (... )Onde sou rei ou rainha do reino virtual das possibilidades, o reino da imaginação criadora. Nesse lugar encontro não o que devo, mas o que posso; portanto, entro em contato com a possibilidade de afirmação do poder criador humano, configurado em constelações de imagens”. (Machado, 2004:24)
A experiência artística é repleta de significações na formação de qualquer pessoa, tanto adulto quanto criança. Ela fica ressoando num pulsar seguro; é presença marcante, lembrança, memória. “A arte, qualquer verdadeira arte, permite este trânsito compreensível pelos significados fundamentais da vida humana. Não se trata de uma compreensão mensurável ou explicável dentro dos padrões convencionais” (Machado, 2004, p. 110)

Bibliografia

DUARTE Jr, João Francisco. Por que arte-educação? Campinas: Papirus, 1994.

MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo:DCL, 2004.

PAMPLONA, Rosane. Novas histórias antigas. São Paulo: Brinque-Book, 1999.

SILSO, Celso. Textos e pretextos da arte de contar histórias. Chapecó: Argos, 2001.

PINHEIRO, L. R. – Essa história de contar histórias: a contribuição desta arte na formação do pedagogo.
Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2004.

 
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