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LETRAMENTO
NA EDUCAÇÃO INFANTIL: A INCRÍVEL ARTE DE LER SEM PALAVRAS
E ESCREVER SEM LETRAS
Juliana Bolsonaro Conde
A Educação Infantil enquanto campo de conhecimento,
de atuação profissional e de política pública,
vem ganhando, nas últimas décadas, contornos cada vez mais
nítidos e assim, as discussões que emanam de seu interior
adquirem maior complexidade. (Machado, 2002) É dentro desse panorama
que surge este estudo teórico sobre a criança pequena, de
0 a 6 anos, na sociedade grafocêntrica. Este trabalho é fruto
da revisão da bibliografia já publicada referente ao letramento
e à alfabetização como também do último
COLE e do diálogo entre esse referencial teórico e a bibliografia
italiana que é a base da, ainda em construção, Pedagogia
da Infância, na tentativa de compreender qual é a relação
da criança pequena com a leitura e com a escrita.
Esta palavra “letramento”, tão falada
atualmente, ainda não está dicionarizada. Segundo Soares
(1998), isso se deve à recente introdução do termo
na língua portuguesa. Apenas na segunda metade dos anos 80 é
que este vocábulo surgiu no discurso de especialistas das Ciências
Lingüísticas; é nesse momento que se percebe que a
sociedade está se tornando cada vez mais grafocêntrica e
com isso uma nova necessidade vem se configurando: não basta aprender
a ler e a escrever, é preciso também saber fazer uso competente
da leitura e da escrita no cotidiano. A mesma autora afirma que, novas
palavras são criadas ou a velhas palavras dá-se um novo
sentido quando emergem novos fatos, novas idéias, novas maneiras
de se compreenderem os fenômenos.
Segundo Gaffney e Anderson (2000), nos últimos 30 anos, ocorreram
mudanças de paradigmas teóricos no campo da alfabetização.
Nos anos 60 e 70 as discussões a respeito do tema foram embasadas
por um paradigma behaviorista; com a chegada dos anos 80, um novo paradigma
se consolidou e a alfabetização passou a ser olhada, a partir
de um paradigma cognitivista e, na década de 90, o paradigma sociocultural
ganhou força entre os estudiosos das áreas e suas pesquisas
passaram a ser realizadas sob esta perspectiva. Os mesmos autores avaliam
que a transição da teoria behaviorista para a teoria cognitivista
que ficou conhecida aqui no Brasil, como construtivismo, representou efetivamente
uma mudança radical de paradigma; já a transição
desta última para a teoria sociocultural, pode ser interpretada
como um aprimoramento do paradigma cognitivista, portanto denominada de
socioconstrutivismo, e não como uma mudança paradigmática
como aconteceu no primeiro caso. (apud Soares 2003)
Ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, em que o socioconstrutivismo
foi proposto para todo e qualquer conhecimento escolar, em nosso país,
esse paradigma chegou via alfabetização através das
pesquisas e estudos sobre a psicogênese da língua escrita,
dos quais a grande divulgadora foi Emília Ferreiro. (Soares, op
cit)
Dentro desta perspectiva, a concepção do processo de construção
da representação da língua escrita, pela criança,
sofreu grandes alterações. Não se considera mais
que a criança depende de estímulos externos para aprender
o sistema da escrita, concepção esta, vigente nos métodos
de alfabetização até então utilizados. Passa-se
a pensar numa criança ativa, capaz de progressivamente (re) construir
esse sistema de representação, interagindo com a língua
escrita em seus diversos usos e práticas sociais. Esta visão
interacionista, rejeita uma ordem hierárquica de habilidades, afirmando
que a aprendizagem se dá por uma progressiva construção
do conhecimento pela criança, na relação dela com
o objeto (língua escrita). (apud Soares, 2003)
O tema em questão também foi definido num poema por uma
estudante norte-americana de origem asiática chamada Kate M. Chong
(apud Soares, 1998) que buscava escrever a sua história pessoal
de letramento:
O que é letramento?
A partir do poema, Magda Soares (1998) coloca que o letramento é
prazer, é lazer, é ler em diferentes lugares e sob diferentes
condições, não só na escola, em exercícios
de aprendizagem. Letramento é informar-se através da leitura,
é buscar notícias e lazer nos jornais, é interagir
com a imprensa diária, fazer uso dela, selecionando o que desperta
interesse, divertindo-se com as tiras de quadrinhos. Letramento é
usar a leitura para seguir instruções (receita de biscoito),
para apoio à memória (a lista de compras no supermercado),
para a comunicação com quem está distante ou ausente
(um recado, um bilhete ou um telegrama). Letramento é ler histórias
que levam a lugares desconhecidos sem sair da cama onde estamos com o
livro nas mãos, é emocionar-se com as histórias lidas,
e fazer dos personagens, verdadeiros amigos. Letramento é usar
a escrita para se orientar no mundo (o atlas), nas ruas (os sinais de
trânsito), para receber instruções (montar ou instalar
um aparelho), enfim, é usar a escrita para não ficar perdido.
Letramento é ainda, descobrir a si mesmo pela leitura e pela escrita,
é entender-se, lendo ou escrevendo e é descobrir alternativas
e possibilidades, descobrir o que você pode ser.
Enfim, este poema nos mostra que letramento é muito mais que alfabetização.
Ele expressa muito bem como o letramento é um estado, uma condição:
o estado ou condição de quem interage com diferentes portadores
de leitura e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura
e de escrita, com as diferentes funções que a leitura e
a escrita desempenham na nossa vida. Enfim, letramento é o estado
ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas
práticas sociais de leitura e de escrita. (Soares, 1998)
Leite (2001) trás uma importante contribuição nesse
sentido:
“assumindo-se
a escrita pela sua dimensão simbólica e enfatizando os seus
usos sociais, entende-se que o processo de alfabetização
inicia-se muito antes do período formal de escolarização.
Através, principalmente, da mediação do adulto, a
criança vai gradualmente identificando a natureza e as funções
da escrita, num processo cujos ritmo e excelência são determinados
pela quantidade e qualidade, das interações do sujeito com
a escrita.” (ps. 28 e 29)
Segundo o autor, é função da escola dar continuidade,
de forma sistematizada, a esse processo que vem acontecendo aos poucos,
por meio do qual a criança vem tomando contato com a escrita verdadeira,
pelas diversas práticas sociais de que participa.
Di Nucci (2001) também coloca que a descoberta da escrita, pela
criança, em uma sociedade grafocêntrica, ocorre muito antes
de seu ingresso na escola. Ela constrói noções de
letramento da mesma maneira que constrói outras noções
importantes das dimensões humanas. Para a autora, à medida
que a criança pequena, de 0 a 6 anos, interage com eventos de letramento
de sua cultura, ela elabora hipóteses sobre a função
da escrita a partir do conhecimento que já vem construindo da linguagem
oral.
“Em
situações cotidianas, particularmente no ambiente familiar,
o indivíduo compreende a variação da escrita, tornando-se
usuário desta: a relação do sujeito com a escrita
implica o uso funcional que ele faz desse objeto. O letramento ocorre
naturalmente na rotina cotidiana da família, por meio de diferentes
eventos, como o uso de desenhos ou de escritos para trocar idéias,
fazer listas de compras, localizar endereços, ler revistas ou jornais
etc.”
(Di Nucci, op cit p. 62)
Assim, a
mesma autora ainda afirma que a criança que chega à escola,
traz marcas da escrita a partir de sua história de interações
cotidianas. Essas marcas são os conhecimentos que a criança
construiu sobre a linguagem escrita, tendo a oralidade como referencial.
Desta forma, a criança constrói uma representação
da escrita, que diz respeito tanto ao funcionamento de seu sistema quanto
às formas de discurso escrito.
Alfabetização
e Letramento em discussão:
Segundo Soares
(2003), no Brasil, os conceitos de alfabetização e letramento
se mesclam, e freqüentemente se confundem. Esse enraizamento do conceito
de letramento no conceito de alfabetização pode ser explicitado
através da análise de fontes como o censo, a mídia
e a produção acadêmica.
A partir da análise dos Censos Demográficos, podemos perceber
que, ao longo das décadas, ocorreu uma progressiva extensão
do conceito de alfabetização. Até o Censo de 1940,
alfabetizado era todo aquele que declarasse saber ler e escrever, o que
era interpretado como capacidade de escrever e ler o próprio nome.
A partir do Censo de 1950, alfabetizado passa a ser considerado como aquele
capaz de ler e escrever um bilhete simples, isto é, capaz não
só de ler e escrever como também de exercer uma prática
de leitura e escrita. Atualmente, os resultados sos Censos têm sido
freqüentemente apresentados pelo critério de anos de escolarização,
em função dos quais se caracteriza o nível de alfabetização
funcional da população, esse critério deixa explícito
que, após alguns anos de aprendizagem formal, escolar, o indivíduo
terá não só aprendido a ler e escrever, como também,
a fazer uso da leitura e da escrita. (Soares, op cit)
Para a autora, é desta mesma forma que a mídia trata as
informações e notícias sobre a alfabetização
no Brasil. Ao longo da última década a mídia vêm
utilizando, em matérias sobre competências de leitura e escrita
da população brasileira, termos como semi-analfabetos, iletrados,
analfabetos funcionais, ao mesmo tempo em que vem sistematicamente criticando
as informações sobre índices de alfabetização
e analfabetismo que se baseiam apenas no critério censitário
de saber ou não “ler e escrever um bilhete simples”.
Assim, a mídia vem assumindo e divulgando um conceito de alfabetização
que se aproxima do conceito de letramento.
Soares (2003) ainda chama a nossa atenção para a produção
acadêmica brasileira, em que os termos alfabetização
e letramento estão, na maioria das vezes, associados. As obras
brasileiras mais conhecidas atualmente sobre o tema (a maioria delas já
citada no presente trabalho) aproximam, ainda que, para discriminar diferenças,
a alfabetização e o letramento. Para a autora, este fato
é responsável por algumas concepções equivocadas
de que, os dois fenômenos se confundem, e até se fundem.
Ela ainda completa colocando que, é inegável, necessária
e imperiosa a relação existente entre alfabetização
e letramento, no entanto, acaba por diluir a especificidade de cada um
dos fenômenos, ainda que apareça para focalizar as diferenças.
Com isso, a autora nos leva a refletir: afinal, qual é a relação
entre a alfabetização e o letramento? Ela coloca que dissociar
estes termos é um equívoco pois, no quadro das atuais concepções
psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas
de leitura e escrita, a entrada do indivíduo no mundo da escrita
se dá simultaneamente por dois processos: pela aquisição
do sistema convencional de escrita, alfabetização, e, pelo
desenvolvimento de habilidades de uso desse em atividades de leitura e
escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita,
ou seja, o letramento. Alfabetização e letramento não
são fenômenos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis:
a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio
de práticas sociais de leitura e escrita, isto é, através
de atividades de letramento, e este, só pode desenvolver-se no
contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema,
ou seja, em dependência da alfabetização. Para Soares
(2003), na concepção atual, a alfabetização
não precede o letramento, os dois processos são simultâneos.
A conveniência de se conservar os dois termos está em que,
apesar de designarem processos interdependentes, indissolúveis
e simultâneos, são fenômenos de natureza fundamentalmente
diferentes envolvendo conhecimentos, habilidades e competências
específicos, que implicam formas de aprendizagem diferenciadas
e, conseqüentemente, procedimentos diferenciados de ensino.
Soares (2003) ainda problematizando os termos que estamos discutindo,
afirma que eles possuem muitas facetas. Letramento diz respeito à
imersão da criança na cultura escrita, à participação
em experiências variadas com a leitura e a escrita, ao conhecimento
e interação com diferentes tipos e gêneros de material
escrito. Por sua vez, a alfabetização está ligada
à consciência fonológica e fonêmica, à
identificação das relações fonema-grafemas,
às habilidades de codificação e decodificação
da língua escrita, ao conhecimento e reconhecimento dos processos
de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica
da escrita. Para a autora, é preciso reconhecer a possibilidade
e a necessidade de promover a conciliação entre essas duas
dimensões da aprendizagem da língua escrita, integrando
alfabetização e letramento, sem perder a especificidade
de cada um desses processos, o que implica reconhecer as muitas facetas
de um e de outro.
Pedagogia da Infância e Letramento: a construção das
cem linguagens
O poema abaixo
foi escrito por Loris Malaguzzi (Revista Bambini, Bergamo, ano X, n. 2,
fev.1994. Tradução livre do original italiano de Ana Lúcia
Goulart de Faria, Maria Carmem Barbosa e Patrizia Piozzi apud Edwards,
Gandini, e Forman, 1999). Esse italiano merece toda a nossa atenção,
principalmente quando nosso objetivo é a construção
da Pedagogia da Infância. Malaguzzi dedicou sua vida ao estabelecimento
de uma comunidade didática com três atores principais, são
eles: as crianças, os pais e o grupo de professores, para, assim,
formar um sistema educacional que realmente funcionasse. Sua conquista
foi fenomenal, tanto que hoje, sua obra é conhecida no mundo todo.
Ao contrário, as cem existem
Segundo Faria (2003) as crianças e os adultos escrevem e lêem,
mas não só com as letras. A escrita não é
a única forma de expressão e nem a única forma de
grafia do homem. Numa sociedade grafocêntrica como a nossa, que
prioriza a palavra, o discurso; o único momento que as crianças
têm de se envolver com outras formas de argumentação,
de conversa, de expressão, sem ser com a palavra, com o discurso
e com a escrita, é na primeira etapa da educação
básica. A autora ainda completa dizendo que é democrático
oferecer às crianças, oportunidades de trabalhar as “noventa
e nove linguagens” que elas têm, o que, não é
função da escola. A função da escola é,
prioritariamente, trabalhar com a leitura e com a escrita.
Diante desse panorama, Britto (2003) desafia aos profissionais que trabalham
na Educação Infantil ao afirmar que não é
papel da Educação Infantil ensinar as letras. O grande objetivo
da Educação Infantil é construir bases para que as
crianças possam participar criticamente da cultura escrita, possam
conviver com esta organização do discurso escrito, possam
experimentar de diferentes formas os modos de pensar escrito; pois, porque
a criança domina os modos de pensar escrito é que ela vai,
na Escola Básica, aprender a escrever as letras e ler as palavras.
Segundo o autor, quando a criança vivência a experiência
dos objetos da cultura escrita, os modos de organizar a cultura escrita,
os gêneros de escrita, ela vê sentido no escrito; quando ela
vai aprender o escrito, e este passa a ter sentido para ela, e portanto,
não há necessidade de anteciparmos o processo de alfabetização
das crianças.
Arelaro (2003) também coloca que na educação infantil,
que é um processo de letramento, ler com os ouvidos, é mais
fundamental do que ler com os olhos. Ao ler com os ouvidos, as crianças
não apenas se experimentam na interação, na interlocução,
no discurso escrito organizado, na sintaxe diferente, no léxico
diferente, na prosódia diferente, no ritmo diferente, como também
elas compreendem as modulações de voz que se anunciam num
texto escrito. Elas aprendem o discurso escrito, a sintaxe escrita, e
aprendem as palavras escritas. Portanto para a autora, é preciso
que assumamos o letramento com uma condição fundamental
da Educação Infantil.
Kishimoto (2003) traz uma idéia muito interessante e bastante pertinente
quando se está buscando olhar a criança pequena e o letramento.
Desde que nascemos, estamos aprendendo a falar, e ao mesmo tempo, aprendendo
a escrever. Assim a criança pequena, de 0 a 6 anos, na Educação
Infantil, vai aprender a escrever através de várias linguagens,
ou voltando ao poema, através das cem linguagens.
Mello (2004), com seu rico estudo sobre letramento, trás uma grande
contribuição para esta discussão. Ela nos fala do
mergulho da criança no letramento e define este “mergulho
no letramento” como sendo um mergulho na cultura escrita. Desta
forma, a escrita não é pensada como um sistema de letras,
como um código a ser decifrado mas como parte de uma grande cultura
que se revela, a nós adultos e às crianças, de várias
maneiras.
Segundo a autora, o mundo da cultura, que é composto pelas relações
humanas, pelos costumes, pelos valores, pelos objetos materiais e não-materiais,
pelas técnicas, pelas linguagens, e também o mundo da natureza,
constituído pelos fenômenos naturais, chuva, sol, vento,
dia, noite, pelo ciclo de vida de plantas e animais, são grandes
universos a serem apreendidos pelas crianças.
Esse encontro que cada criança faz com o mundo da cultura e da
natureza, assim que nasce, é um mergulho num mundo cheio de pessoas.
A criança vai se constituindo a partir da relação
que aos poucos ela vai estabelecendo com outras pessoas e através
dos conhecimentos que vai construindo a partir de suas interações
com os mundos da natureza e da cultura, que inicialmente se dá
pela facilitação de outras pessoas e que depois também
passa a se dar pelo seu próprio tateio e experimentação.
(Mello, 2004)
Percebemos então, que o mergulho no mundo da natureza e da cultura,
que acontece a partir do momento em que nascemos, é o início
de um longo processo de humanização. E é a partir
desse processo, de compreender os hábitos e os costumes, as linguagens,
de utilizar os objetos, os instrumentos e os valores que foram sendo formados
ao longo da história humana, que cada criança constrói
suas dimensões humanas. (Mello, op cit)
Assim, a criança à medida que vai se construindo, vai também
mergulhando cada vez mais fundo no mundo da cultura humana, em sua complexidade
e nesse processo vai se tornando um indivíduo complexo, com necessidades
e vontades cada vez mais complexas, dentre elas, a necessidade de ler
e escrever.
Por muito tempo, esse ingresso das crianças pequenas no mundo sócio-cultural,
que no princípio era dominado apenas pelas gerações
mais velhas, acontecia primeiramente em casa, na rua, nos quintais, na
convivência diária com os membros letrados. Mais especificamente
nas últimas três décadas, esse período da infância
começou a ser vivido por um número crescente de crianças
na instituição de educação infantil. Como
essa forma de promover o encontro coletivo da criança pequena com
a cultura é ainda muito recente, e também, não o
único; estamos em processo de descoberta, estamos aprendendo como
fazer isso. Essa reflexão vem acontecendo não só
aqui no nosso país, mas no mundo inteiro. São por essas
razões que, hoje, o espaço da educação infantil
é entendido como sendo o lugar da educação dos pequenos
e também da educação dos adultos.
Enfim, estamos construindo um novo conceito de criança, que provém
da observação delas num ambiente que está repleto
de possibilidades e de múltiplas atividades. Assim, diferentemente
do que pensávamos, a criança não é um ser
incapaz, frágil, carente, que necessita do adulto o tempo todo
para comandar suas atividades e garantir sua proteção. O
cenário vem se configurando de forma bem diferente: desde muito
pequena, a criança é curiosa, é capaz de explorar
os espaços e os objetos que encontra a seu redor, de estabelecer
relações com as pessoas, de elaborar explicações
sobre os fatos e fenômenos que vivência.
Os estudos italianos mais recentes (Edwards, Gandini, e Forman, 1999);
(Dahlberg, Moss e Pence, 2003); (Bandioli e Mantovani, 1998), vêm
nos apontado que, sob condições adequadas de educação,
isto é, em que a criança é pensada como protagonista,
como produtora de culturas, portadora de histórias, a criança
tem possibilidade de construir sentido de pertencimento e saberes desde
muito cedo, o que há bem pouco tempo atrás, era inimaginável
quando se tratava de criança pequena. Um outro fator que as pesquisas
têm nos demonstrado é que nesse longo período que
educamos as crianças sem conhecê-las devidamente, produzimos
uma série de conhecimentos equivocados como, por exemplo, pensar
que a apropriação dos conhecimentos é resultado apenas
da organização do ensino que o adulto se incube de fazer
para a criança que, no caso da educação infantil
escolarizada, é feita pela professora e mais, que se a criança
não estava aprendendo era por conta de algo errado que estava acontecendo
com ela.
Hoje, felizmente, começamos a descobrir as especificidades do aprender
na infância. A criança não é um vaso vazio
que o adulto tem que encher de conhecimento. Ela mesma constrói
seu conhecimento a partir de suas necessidades, de suas vontades, do que
faz sentido a ela, a partir de suas interações com o ambiente
histórico-cultural.
Dentro dessa perspectiva, deve ser objetivo da educação
para a infância, despertar nas crianças, outras necessidades,
outros desejos, outros interesses de conhecimento, colocando-as em diferentes
ambientes, variados contextos e em contato com diversas culturas. Enfim,
o papel da educação infantil é proporcionar às
crianças um mergulho, cada vez mais profundo, no mundo da cultura
e dentro desse mundo da cultura está a escrita.
Podemos concluir, assim, que a educação infantil não
pode ter um objetivo tão restrito: ensinar a escrever, no intuito
de preparar as crianças para o ingresso na escola. Seu papel é
o de ir além, é proporcionar às crianças vivências
efetivas, oportunidades para construção das cem linguagens
através de experiências produtoras de sentidos para que levem
como base para a vida toda. O mundo que deve ser posto à disposição
delas é o mundo da cultura, um mundo complexo e interessante. Sem
deixar de pensar que em nossa sociedade, o mundo da cultura é,
em sua maior parte, escrito. Assim, a escrita, na educação
infantil, pode estar presente mas não como um fim, ou seja, como
o objetivo dessa etapa da vida. Da forma em que estamos propondo, a escrita
passa a ser um processo de descoberta, um processo prazeroso para a criança
que acontece de forma gradual e de acordo com suas necessidades e não
algo imposto e descontextualizado. Lembrando que os conhecimentos não
se dão no mundo separadamente, portanto, não pode haver
um momento único, pré-estabelecido, para se aprender a ler
e a escrever. Este conhecimento, tem que ser construído de forma
coletiva e de forma integrada com aquilo que a criança está
explorando dentro do mundo da cultura.
Mello (2004), ainda ressalta uma contradição que vivemos,
hoje, na educação infantil e que se faz bastante pertinente
discutir. Vivemos numa sociedade grafocêntrica, em que sofremos
diariamente um bombardeio de textos escritos. No entanto, muitas creches
e pré-escolas parecem sonegar a convivência das crianças
com o mundo da leitura e da escrita. Não existe o hábito
da escrita nestes locais e pouco se lê para as crianças pequenas
e, menos ainda, para as pequenininhas. Ao mesmo tempo, temos instituições
de educação infantil em que as crianças passam a
maior parte do tempo escrevendo, mas não podemos dizer que isto
seja um tempo de contato com a cultura escrita pois, na educação
infantil escolarizante, de tão preocupados com o ensinar a ler
e a escrever, acabam por criar uma metodologia específica para
isso que, por sua vez, acaba sendo artificial, que não utiliza
a escrita como expressão, para a comunicação ou para
o registro e nem a utilização da leitura para receber notícias
ou obter informações sobre algo que as crianças desejam
saber. De um modo geral, aponta a autora, as salas onde se ensina a ler
e a escrever estão repletas de letras e até de palavras
que têm a letra inicial destacada, mas não aparecem textos
que sejam a expressão do desejo de escrever das crianças
e que criem o desejo de ler nas crianças e tampouco são
textos que expressam a cultura escrita.
Assim, a autora conclui que, a criança cria para si a necessidade
de escrita quando vivencia a escrita socialmente, coletivamente, utilizando
a escrita de acordo com a função para a qual foi criada,
registrando para lembrar mais tarde, criando livro de histórias,
escrevendo seu nome num trabalho para identificá-lo. O mergulho
da criança no mundo da escrita deve acontecer porque a criança
é membro da nossa sociedade crescentemente grafocêntrica,
e, usufruir plenamente da cultura acumulada historicamente implica em
participar da cultura escrita. Assim, o mergulho da criança pequena
e da pequenininha no mundo da cultura escrita deve acontecer porque, desde
pequenininha, a criança, pode e deve conviver com o conjunto da
cultura humana acumulada. E ainda, não devemos ler para a criança
pequenininha apenas para que ela crie o gosto pela leitura mas sim também
porque a leitura lhe dá prazer, permite conhecer o mundo, possibilita
imaginar, instiga contar histórias, criar seus personagens e suas
histórias. Não devemos usar o dicionário ou buscar
uma informação num livro apenas para criar na criança
a necessidade de ler mas, também, porque prestamos atenção
nas crianças e percebemos seus interesses, porque concebemos a
criança como capaz de se interessar, de querer saber.
Enfim, partir do poema de Malaguzzi e da discussão teórica
sobre as várias linguagens das crianças pequenas, podemos
concluir que elas lêem, interpretam e escrevem o mundo de outras
maneiras. Essas práticas devem ser chamadas de letramento, pois
a criança, lê desenhos, peças de teatro, figuras de
um livro, propagandas, placas de trânsito, símbolos, interpreta
utilizando-se de todos os seus sentidos, de todas as suas dimensões
humanas, escreve através de esculturas, desenhos, pinturas, brincadeiras...
ou seja, ela participa da sociedade grafocêntrica com seus recursos
próprios, lê sem letras e escreve sem palavras.
Referências
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--------------------------. Letramento e Alfabetização:
as múltiplas facetas. 26ª Reunião da Anual as ANPED.
GT Alfabetização, Leitura e Escrita. Poços de Caldas,
7 de outubro de 2003 |
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