Carlos Humberto Alves Corrêa - Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Amazonas UFAM - Faculdade
de educação da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
Para a discussão deste tema, fizemos a opção
por tomar como referência algumas das indicações que
Darnton (1990) fornece para o exame da história dos livros.
Ao se perguntar O que é a história dos livros?, Darnton
a define como um campo que, de tão diversificado, tornou-se quase
impenetrável para o pesquisador iniciante. Para enfrentar o problema,
propõe um modelo - ciclo de vida do livro - que permite visualizar
os vários pontos do circuito que o livro percorre desde o momento
em que um autor compõe seus textos, até o instante em que
– na forma de livro – chega às mãos dos leitores.
Este modelo permite construir uma visão holística da história
do livro, tendo em vista a possibilidade de análise dos diferentes
segmentos que compõem o seu ciclo de vida. Para ele, este modelo
ajudaria na compreensão de “...como os livros surgem e se
difundem entre a sociedade” (Darnton, 1990, p. 112).
O contato com esse modelo de análise nos inspirou a produzir uma
apresentação dos dados desta pesquisa com vistas a reconstruir,
ainda que parcialmente, o circuito do livro escolar que se configurou
durante a segunda metade do séc. XIX, na província do Amazonas.
A escolha por esse modelo ocorreu com a consciência de que seria
preciso fazer alguns ajustes para torná-lo produtivo no exame dos
livros escolares. A inclusão de alguns personagens mais diretamente
ligadas ao contexto escolar pareceu-nos um dos ajustes imprescindíveis
de se realizar.
Além disso, tendo em vista a especificidade do estudo aqui desenvolvido
e as condições específicas de acesso à documentação,
nem todos os estágios do circuito proposto por Darnton serão
abordados nesta nossa empreitada. O exame recairá apenas sobre
os estágios de difusão e escolha/seleção dos
livros escolares. Apesar de ser uma abordagem parcial, se comparada com
o modelo proposto por Darnton (1990), ela nos situa diante de perspectiva
que põe em cena certos sujeitos e determinadas práticas
que favoreciam ou dificultavam a chegada dos livros escolares aos seus
destinatários finais.
Para mapear esses estágios de difusão e escolha/seleção
dos livros escolares na província do Amazonas utilizaremos mais
detidamente as seguintes fontes: os relatórios dos presidentes
de província e de diretores da Instrução Pública
, alguns jornais da época e as correspondências da instrução
pública.
A construção das formas de seleção
dos livros escolares: entre autorizar, selecionar, corrigir livros
Uma das dimensões considerada por Chartier (1991b) no exame da
leitura em suas variações diz respeito às normas
de leitura. São elas “[...] que definem para cada comunidade
usos legítimos do livro, maneiras de ler, instrumentos e processos
de interpretação.” (p.179). São normas confeccionadas
por aqueles que, ocupando instâncias de poder específicas,
operam no interior do pólo de produção da leitura
a partir de certas representações sobre os leitores e a
leitura que buscam alcançar. São escritores, editores, impressores
os personagens que, segundo Chartier, habitam o interior deste pólo
de produção.
No caso de nosso estudo, essas normas de leitura devem ser percebidas
como um conjunto de regulamentações ligadas, não
apenas às esferas de produção, editoração
e impressão do livro escolar, mas também, ao âmbito
de sua difusão e circulação no território
escolar. Neste sentido, é necessário situar outros agentes
e outras práticas no interior deste campo de produção
da leitura. Como sabemos cabe, de um modo geral, às autoridades
políticas e de ensino atuar na formulação das diretrizes
e normas que buscam dar forma a um certo projeto de escolarização.
Ao implementarem os dispositivos de criação e conformação
deste projeto escolarizador, criam também os contornos que irão
dar à leitura os contornos de um saber escolarizado. Isso implica
considerar as práticas de ensino da leitura e de outros saberes
escolares como resultantes de um jogo de forças entre estes dispositivos
de conformação e as práticas de outros sujeitos que
deles se apropriam.
Na definição de um projeto de escolarização
interessa, dentre outras necessidades, definir as formas como a leitura
deverá ser ensinada, vale dizer, quais os métodos a serem
empregados, quais os materiais de leitura, como deverão ser utilizados.
Em 21 de outubro de 1859, José Feliciano de Castilho Barreto e
Noronha, autor de Íris Clássico encaminha a seguinte carta
ao Presidente da província do Amazonas:
Ilm° e Exm° Snr: - Tendo sido honrado pela Directoria
Geral dos Estudos da Província da Bahia com o convite para formular
um livro, conveniente ao estudo, nas escolas brasileiras, e tendo-me sido
igual honra conferida pela Directoria da Província de Pernambuco
e outras, tomo a liberdade de elevar ás mãos de V. Exª
um exemplar do –Iris Clássico – obra destinada a encher
uma lacuna do ensino, onde for adoptada para uso das escolas, ás
quaes, bem como ás Directorias de Estudo, ordenei que o livro fosse
dado pelo aproximado preço de custo. Ouso pensar que assim se prestou
um serviço á instrucção, fazendo que a infância
beba um puro leite intellectual, acostumando-se, com cedo, á phrase
tersa e pollida, á palavra escolhida e appropriada, ao donoso dizer
de nossos maiores, cuja a magestade se vai afogando no dilúvio
de desmandos de ousados, e demolições de ignorantes.
Julguei do meu dever submetter este livro ao sábio juízo
de V; Exª, que, como competente juiz, decidira se n’elle concorrem,
alem d’aquellas condições, as desejáveis em
livros elementares, que não raro contribuem para formar o coração
e o espírito dos cidadãos: amor de Deus, da Pátria,
da Honra, do rei, da Virtude; e úteis conhecimentos históricos,
scientificos ou litterarios, exarados em linguagem vernácula. (Relatório,
1860, p.IV).
Este era um procedimento bastante corrente entre autores
de livros escolares e as autoridades políticas das províncias
brasileiras . É através de cartas como estas que os autores
(brasileiros ou estrangeiros) buscavam promover a difusão e circulação
das suas obras por entre os diferentes sistemas de ensino. Para isso,
enviavam junto a essas cartas um exemplar de suas obras para que pudessem
ser apreciadas pelas autoridades de ensino das diferentes províncias.
No caso da carta de José Feliciano vemos uma preocupação
em apresentar o seu livro enfatizando as vantagens pedagógicas
e econômicas de sua adoção Além disso, preocupa-se
o missivista em informar o seu destinatário de que a obra já
possui aceitação nas províncias da Bahia, Pernambuco
entre outras. Isso, de certa forma, lhe atribuiria uma imagem positiva
da obra antes mesmo que ela fosse submetida ao exame das autoridades de
ensino.
No mesmo ano, temos a carta do Doutor Cezar Augusto Marques oferecendo
seu livro Almanack de lembranças brasileiras para ser adotado nas
escolas amazonenses. Inicialmente ressalta as características discursivas
de seu livro e a adequação das mesmas ao nível intelectual
de seus leitores potenciais: “É uma collecção
escolhida de diversos factos do Brasil, divididos em leituras pequenas
e agradáveis para todos os dias do anno, escriptas em linguagem
apropriada á acanhada intelligencia dos meninos, e aptas a desenvolver
nélles o gosto pelo estudo da Historia Pátria.” (Relatório,
1860, p.IV).
De acordo com o autor, nesta sua obra de história pátria
é possível encontrar informações sobre “[...]
a fundação de diversas Cidades, Villas e Aldeias, a vida
de muitos homens illustres, a narração de muitos casos heróicos,
a descrpção dos usos e costumes de nossos indígenas,
de muitos vegetaes, de seos empregos, etc., etc.” Ao contrário
da carta anterior, Cezar Augusto assume uma posição mais
explicita em relação ao valor de sua obra e as condições
de pagamento. Propõe ao presidente da província a compra
de “[...] quatrocentos ou mais exemplares pelo módico preço
de três mil réis cada um, pagos só na occasião
da entrega dos exemplares[...] ”.
Em 02 de maio de 1860 o Presidente da província encaminha a solicitação
dos dois autores ao exame do Diretor da instrução pública.
Depois de reconhecer a validade das duas obras submetidas ao seu exame,
o Diretor assim se posiciona:
“[...] parece-me que devem ser apresentadas á
Assembléa Provincial essas propostas, que reverto, a fim de decidir
como julgar acertado; por quanto ainda que eu reconheça a utilidade
de ambas ellas, comtudo os poucos recursos, que annualmente são
arbitrados para a Instrucção Primaria, não podem
ser distrahidos para a sua acquisição.” (Relatório,
1860, p.363)
Ao consultarmos outros documentos na tentativa de acompanhar
o percurso destes dois livros não encontramos nenhuma referência
que os mesmos tenha sido imediatamente adotados no sistema de ensino da
província amazonense. É de 04 de janeiro de 1872 o ofício
do Diretor da instrução pública informando ao Presidente
da província que já havia feito o pedido de 200 exemplares
do livro Íris Clássico aos senhores Eduardo & Henrique
Lammert.
Neste breve trajeto que percorremos pelos pontos iniciais do circuito
dos livros escolar temos a idéias da sua complexidade. Com a ajuda
da documentação vimos que o caminho é longo entre
o momento em que os autores encaminham as cartas oferecendo os seus livros
para adoção nas escolas da província e a decisão
- por parte das autoridades /instâncias responsáveis - se
os mesmos estarão entre os títulos a serem comprados para
as escolas amazonenses.
Tomando essas referências iniciais, colocamo-nos como desafio investir
no levantamento dos dispositivos e das práticas que buscam regulamentar
a difusão e circulação do livro escolar no sistema
de ensino primário da província do Amazonas. Através
deles é possível identificar uma preocupação
em prescrever como serão escolhidos os livros a serem utilizados
nas escolas primárias do Amazonas e, sobretudo, a quem cabe a tarefa
de realizar estas escolhas. São essas escolhas que vão determinando
quais os livros autorizados a habitar o cotidiano das escolas. É
a partir destas escolhas que alguns livros são acolhidos e outros
não; que substituições são definidas; que
recusas são efetuadas.
Embora não tenha entrado em vigor , no primeiro regulamento organizado
para a instrução pública da província do Amazonas
já existe uma preocupação em definir antecipadamente
o que foi escolhido para ser lido por professores e alunos da escola primária.
Estabelecido de antemão o que deveria ser lido, tornou-se dispensável
qualquer referência a quem deveria realizar estas escolhas e o modo
de realizá-las. No entanto, é possível deduzir que
a responsabilidade pela escolha dos livros escolares foi do(s) próprio(s)
autor(es) do regulamento em questão.
Até o momento ainda não dispomos das leis de ensino da província
do Pará que regulavam a instrução pública
amazonense nos primeiros 6 anos de província. Isto cria alguns
limites para a constituição de um quadro menos impreciso
deste período. De acordo Primitivo Moacyr (1939) a primeira lei
regulando o ensino na província paraense é do ano de 1841,
permanecendo em vigor até fevereiro de 1852, quando um novo regulamento
é aprovado. Considerando que nos primeiros anos da província
do Amazonas deveria vigorar as leis da província do Pará
promulgadas até o ano de 1851, é possível afirmar
que a instrução pública amazonense deveria se orientar
pelo regulamento paraense de 1841. Ainda de acordo com as informações
recolhidas a partir das descrições de Primitivo Moacyr (1939,
p.78) uma das atribuições a serem desempenhadas pelo Diretor
da instrução pública era de “escolher, de acordo
com o conselho, os compêndios e modelos das aulas e dar as providencias
necessárias para que a instrução seja regular e uniforme
em toda a província.
No entanto, na consulta que realizamos aos relatórios (dos presidentes
de província e dos diretores de instrução pública)
ficou clara uma certa ineficiência da legislação da
província vizinha enquanto dispositivo regulador da instrução
pública amazonense, de um modo geral; e da definição
dos livros escolares, em particular. Vale retomar aqui trecho do relatório
que o Diretor Interino da Instrução Publica encaminhou ao
Vice-Presidente da Província do Amazonas, em abril de 1855, expressando
a sua preocupação com a ausência de regulamentação
para o ramo da educação. Segundo ele, “Nenhuma disposição
ainda há, que regule o regimen interno das escolas, estando por
isso á arbítrio dos professores admittir o methodo que lhes
agrada, e recebendo todos os livros e compêndios, que lhes parecem
melhores para o uso de cada uma delas.” (p. 444).
Três anos depois, incomodado com a falta de regulamentação
que ainda perdurava, o mesmo Diretor resolve chamar para si a responsabilidade
de escolher e propor o método de ensino e os livros que deveriam
ser adotados a serem adotados nas escolas elementares:
Antecipo-me portanto a propor o methodo simultâneo,
que o mesmo visitador poderá no gyro da sua visita pô-lo
em execução em todas as escolas; e enquanto não são
determinados melhores compêndios, proponho para servirem, unicamente
o methodo Facílimo e manual encyclopedico por E. A. Monte Verde;a
Constituição Política do Império; os Mysterios
do Christianismo e o pequeno compendio da Doutrina Christã, pelo
Snr.Bispo José Affonso de Moraes Torres; nestes compêndios
se achão todas as matérias, que os meninos devem aprender.
(Relatório da Instrução Publica, ago/1858, p. 101)
Vemos que o critério adotado pelo Diretor leva
em consideração a validade dos livros em função
dos conhecimentos que ele acreditava serem imprescindíveis na formação
das crianças que freqüentassem as escolas de primeiras letras.
Neste caso, a decisão de indicar certos livros (e não outros),
esteve intensamente marcada pela sintonia entre os conteúdos veiculados
pelos livros que o Diretor examinou e as crenças que ele tinha
acerca dos conteúdos que deveriam compor o currículo das
escolas primárias. Ao mesmo tempo que recomendava o que devia ser
lido, indicava o que deveria ser ensinado.
A Lei n° 90 (26/out./1858), que reforma a instrução
pública da província do Amazonas, limita-se a dizer que
o governo provincial fica autorizado, entre outras coisas a “approvar
compêndios e modelos para uso dos allumnos de qualquer dos gráos
da Instrucção primaria ou secundaria.” (Art. 3°
§ 7°). Chama-nos a atenção que este artigo fala
em aprovação (e não em adoção) dos
livros escolares, o que nos leva a crer em dois momentos distintos permeando
a definição sobre os títulos que seriam utilizados
pelas escolas da província: o momento da seleção/escolha
e o momento da aprovação. Embora a lei não especifique
quem seria(m) a(s) pessoa(s) do governo responsável(eis) pela escolha
dos livros escolares e como isso seria feito, ela estabelece a instância
“autorizada” a dizer com quais livros ensinar nas instituições
educativas da província. Certamente que este artigo tem a finalidade
de exercer um maior controle sobre os livros que circulavam nas escolas,
na medida em que implicitamente ele “desautoriza” as práticas
dos professores de continuarem lecionando com os livros que melhor lhes
pareçam.
Com o Regulamento da Instrução Pública (n° 09
06/mai./1859) fica explicitamente definido que será atribuição
do Diretor da Instrução Pública “Rever os compêndios
adoptados nas escolas e propor a substituição d’elles
quando julgar necessário.”( Art. 3° §7°). Esta
atribuição é reafirmada pelo Regulamento n° 12,
destinado ao disciplinamento do regime interno das escolas primárias
(09/fev./1860), que em seu Art. 4° prescreve que os “[...] compêndios
serão adoptados pelo Director da Instrucção.”.
Analisando conjuntamente estes três últimos documentos legais,
uma vez que os mesmos se complementam, vemos que não existem elementos
suficientes para confirmar inteiramente a hipótese levantada anteriormente
de que a aprovação era apenas um dos momentos do processo
de definição sobre os livros escolares a serem adotados
nas escolas. Podemos apenas afirmar que não deixa de ser possível
que em um primeiro momento o Diretor da instrução pública
realizasse o trabalho de examinar os livros escolares que vinham sendo
utilizados pelos professores e recomendar, quando julgasse conveniente,
as substituições necessárias. A partir daí,
encaminharia ao Presidente da província a lista com os livros que
deveriam ser adotados para que os mesmos passassem pela sua aprovação.
Assim como também é possível supor que esta sistemática
tenha sido adotada apenas para a adoção dos livros destinados
às escolas secundárias, uma vez que no Regulamento n°
9 (1859) fica estabelecido que cabe ao Diretor da instrução
pública “Resolver com os lentes do ensino secundário
sobre a adopção dos compêndios para as respectivas
aulas, solicitando da Presidencia da Província a sua approvação.”
(Art. 3° §13). Além disso, o Regulamento n° 12 quando
se refere especificamente aos livros para as escolas primárias,
apenas diz que “Os compêndios serão adoptados pelo
Director da Instrucção.”. Não existe, portanto,
nenhuma menção de que os mesmos deveriam passar pela aprovação
do Presidente da província.
Independentemente dos procedimentos adotados para a escolha dos livros
com os quais os professores primários deveriam desenvolver seus
ensinamentos, em algumas escolas do interior estes mecanismos de regulamentação
sobre os livros escolares não alcançaram pleno êxito.
É o que mostra o relatório que Gonçalves Dias produziu
sobre a situação das escolas primárias de várias
localidades do Rio Solimões. Reportando-se especificamente a situação
do ensino primário da localidade de Tefé, Gonçalves
Dias relata que:
Não há uniformidade nos compêndios;
nem por tanto pode haver methodo para os alumnos no ensino. O menino leva
á escola o livro que lhe dão – o primeiro que achão
mais á mão, o methodo facillimo – o manual encyclopedico
– o thesouro de meninos e outros As escolas são fornecidas
de cartilhas, taboadas, traslados &c., mas isto para os alumnos pobres.
E os que não forem considerados pobres onde as hão de comprar.
(Relatório, 1861, p.555).
Note-se portanto, que a falta de uniformidade nos livros
empregados nas aulas da escola de Tefé não decorre de uma
desobediência do seu professor, o Pe. Luiz Gonçalves de Souza,
que ignorando os títulos indicados/aprovados pelo governo provincial
insistisse em trabalhar com livros de sua preferência. A variedade
de títulos que circulavam em sua sala de aula parece ser resultante
das próprias circunstâncias que cercavam o trabalho de ensino
do professor. Vemos que o professor tinha diante de si crianças
em condições diferenciadas de acesso e posse dos livros
escolares. Ele teria, portanto, que ensinar às crianças
pobres que recebiam, gratuitamente, livros do governo provincial (vale
dizer, livros oficialmente adotados pela Diretoria da instrução
pública) e às crianças classificadas como não
sendo pobres mas que talvez por alguma dificuldade de acesso aos livros
oficiais, resolvem levar outros títulos disponíveis em sua
casa.
Novas formas de encaminhar a escolha dos livros escolares são propostas
no Regulamento n° 13 de (31/ago/1864). Ainda temos dúvidas
se o referido regulamento chegou a entrar em vigor , mas a quantidade
de artigos (6) voltados para a regulamentação do processo
de definição dos livros escolares a serem adotados no sistema
de instrução primária da província revela
uma preocupação em intensificar o controle sobre esta dimensão
do ensino.
No Regulamento n° 13 incumbe-se o Diretor da instrução
pública de “Rever os compêndios adoptados nas aulas
publicas, corrigil-os ou fazel-os corrigir e substituir quando necessário.”
(Art. 3° § 4°). Comparando-o com os documentos legais anteriores,
vemos que a tarefa do Diretor da instrução ficou mais abrangente
uma vez que, a partir de então, teria a incumbência de, também,
corrigir ou fazer corrigir os livros que vinham sendo adotados nas escolas
amazonenses. Isso acena com a possibilidade de uma revisão dos
textos com vistas a atualizá-los, corrigi-los de erros de escrita
ou, mais provavelmente, daqueles decorrentes do trabalho de impressão.
Tomando os termos postos no artigo em questão, este trabalho de
correção poderia ser executado pelas mãos do próprio
Diretor, ou então, através de um trabalho de reimpressão
da obra ou de parte dela. A necessidade de correção dos
livros escolares ganha força ao nos depararmos com as críticas
que Gonçalves Dias faz em seu relatório aos traslados utilizados
por algumas das escolas primárias do interior do Amazonas que teve
a oportunidade de visitar.
Alguns delles não forão de certo submettidos
á approvação do ilustrado Director da instrucção
publica na província. Um entre outros que começa por estas
palavras ‘meu Deos salvai-me’ é notável pela
ortodoxia de seos princípios, como, pelos muitos erros de ortographia
e lastimável emprego de letras grandes. É de suppor que
a maior parte dos alumnos das escolas do Solimões nunca chegarão
a escrever com menos defeitos: mas não parece conveniente que elles
desde o começo, tenhão deante dos olhos modelos de cacographia
em vez de traslados.(Relatório, 1861, p.563).
Suas críticas, além de indicarem os tipos
de problemas detectados em alguns traslados, sinalizam as repercussões
que elas podem trazer para a formação das crianças
que aprenderem através deles.
Talvez por isso e para tornar mais criteriosa a escolha dos livros escolares,
o Regulamento n° 13 resolve dividir a responsabilidade pela indicação
dos livros que teriam autorização para serem utilizados
no ensino primário. Propõe em seu artigo 4°, que as
decisões do Diretor em relação aos livros escolares
teriam que ser submetidas ao exame do Conselho Diretor e encaminhadas
ao Presidente da província para aprovação. Parece-nos
que esta regulamentação, que relativisa o poder do Diretor
em relação ao material de leitura das escolas primárias,
resulta de uma tendência que pelo menos implicitamente já
constava nos 3 regulamentos anteriores.
Não tanto por reconhecer uma falta de competência das autoridades
do ensino para opinar sobre os livros destinados ao ensino de conteúdos
religiosos, mas para evitar tensões com o clero local, o Regulamento
n° 13 institui um tratamento especial para essa modalidade de livro.
Sua adoção não poderá ser feita sem que prelado
diocesano manifeste sua aprovação.
Todo estas etapas a serem observadas no processo de escolha e definição
dos livros escolares davam a alguns títulos (e a outros não)
um status de livros oficialmente adotados pelo governo provincial, garantindo
que sua utilização fosse uma exigência legal: “Nas
escolas publicas só poderão ser admittidos os livros competentemente
autorizados.” (art. 11).
A preocupação em exercer um controle sobre os livros escolares
se estende para as escolas primárias particulares. Apesar de o
regulamento franquear a abertura de escolas ou outro qualquer estabelecimento
privado destinado ao ensino primário ou secundário, independentemente
de autorização especial do governo provincial (art. 108);
ele estabelece algumas normas a serem observadas pelos diretores e professores
dessas escolas. No Art. 112, por exemplo, vemos o delineamento de uma
“liberdade vigiada” em relação as escolhas que
estes profissionais poderiam realizar em relação aos métodos
de ensino e livros escolares a serem utilizados: “Os professores
e directores de estabelecimentos particulares poderão adoptar quaesquer
compêndios e methodos que não forem expressamente prohibidos.”
Além disso, o mesmo regulamento estabelece a obrigatoriedade da
remessa de relatórios trimestrais onde os professores ou diretores
dessas escolas informem, dentre outras coisas, os compêndios adotados.
Pela primeira vez é explicitada em lei essa preocupação
em também exercer algum tipo de controle sobre os livros adotados
pelas escolas primárias particulares.
Vemos, portanto, o estabelecimento de uma categorização
para os livros escolares: livros adotados/aprovados X livros não-adotados/não-aprovados
(no caso das escolas públicas) e livros não-proibidos X
livros proibidos (no caso das escolas particulares).
Grande parte desta proposta de regulamentação do processo
de escolha e definição sobre os livros escolares desaparece
no Regulamento n° 16 confeccionado para a instrução
pública da província. Aprovado pela Lei n° 143 de 04
de agosto de 1865, o referido regulamento restabelece a autonomia para
o Diretor da instrução pública definir os livros
escolares para o ensino primário de escolas públicas e particulares.
Além disso, reafirma que nas escolas “Somente se admittirão
[...] os livros e compêndios autorisados pelo director geral.”
(art. 45); e que nas escolas particulares “Os professores particulares
poderão adoptar qualquer compendio, uma vez que não se achem
expressamente prohibidos pelo director geral.”
A responsabilidade em decidir a respeito dos livros escolares a serem
adotados no ensino primário da província volta novamente
a ser dividida entre o Diretor da instrução pública
e o Presidente da província, tendo em vista o que determinava o
Regulamento n° 24 (16/mar/1872) no §19 do artigo 6°.
Já em 1874, um novo regulamento, o de n° 28, indica a Congregação
dos Professores do Liceu Provincial como a instância encarregada
de proceder “Á revisão e approvação
dos compêndios e livros para o ensino primário e secundario.”
(art. 8° §2°)
Esta tendência de atribuir a uma instância coletiva a responsabilidade
pela escolhas dos livros escolares permanece no interior do Regulamento
n° 42 (14/dez/1881) que reforma a instrução pública
amazonense. A diferença em relação ao regulamento
anterior é que esta instância será o Conselho de Instrução
que, ao contrário da Congregação dos Professores
do Liceu, não será composta apenas por professores. Além
de alguns profissionais mais diretamente ligados ao campo educativo (Diretor
da instrução pública, Diretor da escola normal, um
lente do Lyceu, um lente da Escola Normal e um professor do ensino primário),
neste Conselho terá também assento o Presidente da Câmara
Municipal, o Juiz de Paz mais votado e dois cidadãos de notória
idoneidade. Chama a atenção esta composição
mais diversificada do Conselho que teria a função de decidir
sobre vários aspectos ligados ao cotidiano de ensino das escolas
da província. Figura como “[...] obrigatória a audiência
do Conselho de instrucção sobre as seguintes matérias:
I. Adopção, substituição ou revisão
do methodo do ensino, e dos compêndios , livros e instrumentos de
estudo usados na instrucção.” (Art.8°; I). Suas
decisões seriam ainda submetidas à aprovação
do Presidente da província.
Outro elemento que atrai a nossa atenção no Regulamento
n° 42 diz respeito a indicações de alguns cuidados a
serem observados no momento de decidir sobre a adoção dos
livros escolares:
Na adopção, revisão ou substituição
de methodos de ensino, e dos compêndios e livros, velará
o Conselho, para que haja unidade no ensino em todas as escolas e estabelecimentos
públicos, e para que não sejam adoptados livros, que preguem
idéas subversivas das leis do paiz, da moral e da Religião
do Estado. (art. 9°).
Estes cuidados acabam por se constituir em critérios
de seleção a partir dos quais os livros seriam examinados.
Mas também, formas de interdição às obras
consideradas subversivas pelas autoridades da instrução
pública. Estava explicitada uma perseguição aos livros
que difundisse idéias que de algum modo colocasse em perigo a ordem
religiosa/política/moral em vigor. Portanto era preciso redobrar
os cuidados para que os professores e as crianças das escolas primárias
mantivessem afastados dessas.
Em 1883, com a aprovação do Regulamento n° 56, a forma
pela qual os livros escolares são escolhidos apresenta algumas
variações se comparadas com o regulamento anterior. Cria-se
o Conselho Fiscal da Instrução Pública que ficará
incumbido de emitir parecer “Sobre a adopção e revisão
ou substituição de compêndios, livros e objectos de
ensino.” (§2°do art. 207). Sua composição
volta a ser marcadamente de profissionais da educação, mas
permanece a exigência de cidadãos de reconhecida idoneidade,
agora em número de 3.
Mas a dinâmica de escolha dos livros a serem adotados como material
de leitura das escolas da província passa, a partir de então,
a contar com uma participação mais significativa dos professores
primários, pelo menos daqueles que lecionavam nas escolas da Capital.
De acordo com Uchoa (1966, p.157) esta dinâmica funcionava da seguinte
forma:
Em primeiro lugar, o Conselho Fiscal da Instrução
aprovava a lista dos livros selecionados; depois uma reunião de
professores primários da capital, sob a presidência do diretor
geral indicava, na lista já aprovada, os livros de sua preferência;
a anuência do chefe do Governo constituía a última
instância na aprovação definitiva.
Ainda que seja uma participação assistida
através da qual apenas seja permitido aos professores escolherem
os livros de sua preferência a partir dos títulos previamente
selecionados, é possível interpretá-la como sendo
uma mudança na relação das autoridades do ensino
com a categoria dos professores.
O circuito do livro escolar vai muito mais além do que esta etpa
que aqui decidimos retratar. Mas ao nos debruçarmos sobre os regulamentos
de ensino foi possível identificarmos as tentativas dos dirigentes
políticos e da instrução pública em institucionalizar
este circuito do livro escolar, estabelecendo, dentre outras coisas, os
sujeitos e as práticas que seriam acionados no momento de selecionar
quais livros poderiam circular nas escolas primárias. Podemos perceber,
também, o modo como o aparato de escolha e controle dos livros
escolares vai se sofisticando ao longo do tempo. Várias tentativas
são feitas até que o modelo ancorado na figura de um Conselho
seja criado e se estabeleça pelo menos nos vinte primeiros anos
da República como a forma oficial de se proceder a seleção
e acompanhamento dos livros que circulam nas escolas primárias
do Amazonas.
Referências bibliográficas
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história.
Porto Alegre, Artmed, 2001.
___________. O mundo como representação. Estudos Avançados,
11(5), 1991.
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo. Companhia da
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MOACYR, Primitivo. A instrução e as províncias. São
Paulo: Nacional, 1939. (vol).
Fontes citadas
AMAZONAS, Regulamento n° 1 (de 8 mar de 1852) que
organiza a instrução primária na província
do Amazonas. Manaus: 1855.
____________¬¬¬ Lei nº 90 (de 26 de out 1858) que reforma
a Instrução Pública da Província. Manaus:
1858.
___________ Lei n.º 103 (de 9 de jul de 1859) que aprova o Regulamento
n.º 9 (de 6 de Maio de 1859) para a Instrução Pública
da Província. Manaus, 1859.
____________ Lei n.º 103 de 9 (de abr de 1859) que aprova o Regulamento
Interno para as escolas de Primeiras Letras n° 12 (de 09 fev 1860).
Manaus, 1860.
____________ Regulamento n° 13 (de 31 ago 1864) que reforma a instrução
pública da Província. Manaus, 1864.
____________ Lei n.º 143 (de 4 de agosto de 1865) que aprova o Regulamento
n.º 16 confeccionado para a instrução publica da província.
Manaus, 1865.
____________ Regulamento n° 24 (de 16 de março de 1872) que
reforma a instrução pública da Província.
Manaus, 1872.
____________Regulamento n° 28 (de 31 de dezembro de 1873) que reforma
a instrução pública da Província. Manaus,
1872.
____________ Regulamento n° 42 (de 14 de dez. de 1881) que reforma
a instrução publica da Província do Amazonas. Manaus,
1881.
____________ Lei n° 720 (de 08 de mai de 1886) que aprova o Regulamento
n° 56 (de 17 de março de 1886). Manaus, 1886.
RELATORIO do Director Interino da Instrucção Publica Cônego
Joaquim Gonçalves de Azevedo 16 Ago de 1858. Anexado ao Relatório
do Presidente da Província do Amazonas Dr. Francisco Furtado de
06 set
de 1858.
___________ da Directoria da Instrucção Publica 15/set/1860
(Diretor da Instrucção Publica – Cônego Joaquim
Gonçalves d´Ázevedo) Anexado à Falla do 1º
Vice-Presidente em exercício Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda.
___________ apresentado por Antonio Gonçalves Dias sobre as visitas
que foi incumbido de fazer às escolas primárias do interior
por ocasião de sua excursão ao Rio Solimões. In:
Relatório do Presidente de Província Sñr. Manoel
Clementino Carneiro da Cunha 1861.
Correspondências da Instrução Pública. 1872.