Aldiane Dala Costa - Colégio de Aplicação
PIO XII – Puc Campinas
1. Introdução
O tema dessa comunicação, “Relato
sobre a experiência de criação do espetáculo
da peça musical ‘Os sonhos não envelhecem’”,
diz respeito à reflexão desenvolvida a partir da experiência
que foi realizada em 2004 com alunos do ensino fundamental II e ensino
médio do Colégio de Aplicação PIO XII. Sobre
a relação entre o processo de criação artística
e a sala de aula é que pretendo desenvolver minha fala Vale ressaltar
que o trabalho do teatro com o coral infantil e juvenil da escola vem
sendo realizado desde o final de 2002 e que gerou outros cinco espetáculos:
Lucas(2002), Menino de olho d’água(2003), Morte e vida Severina(2003),
Cantarim de Cantará(2004) e, no primeiro semestre desse ano, o
musical Saltimbancos.
Apesar do trabalho vir sendo realizado há alguns anos, escolhi
fazer esta comunicação e análise da experiência
tendo como ponto de partida o espetáculo Os sonhos não envelhecem
pelo fato desse trabalho ter sido o mais experimental e, podemos dizer,
ousado, para nós, tanto do ponto de vista formal como do processo
de criação. Predomina no processo e no resultado desse trabalho
a simultaneidade de situações e de maneiras de expressar
espaço para o jogo, a improvisação em cena, a valorização
do trabalho coletivo, a superação de conflitos e a valorização
das capacidades individuais. Quanto ao resultado formal, esteticamente,
esta peça musical teria muito para ser trabalhada, mas justamente
por essas “imperfeições” é que ela serve
de exemplo. Os princípios estéticos: equilíbrio espacial,
corpo poético, estado extra cotidiano, unidade, progressão,
diversidade, imagem poética... etc, foram usados não só
com o objetivo de servirem de trampolim para entrarmos em um processo
criativo em que nós mesmos seríamos os instrumentos e a
matéria a ser esculpida, mas pretendiam proporcionar aos alunos
uma experiência poética.
Antes iniciar o relato, não seria demasiado esclarecer que sou
bacharel em Artes Cênicas. No entanto, a formação
que tive no teatro seguiu, ainda que só percebesse isso mais tarde,
uma linha de pensamento que tem como um de seus princípios os conceitos
de encenador pedagogo e de dramaturgia do ator. A noção
de encenador pedagogo modifica ou até mesmo substitui a noção
de diretor. Isso porque o encenador, segundo essa teoria, está
preocupado não só com o resultado da obra mas com seu processo
de construção e com os indivíduos envolvidos nela.
Nesse processo o encenador não tem uma idéia pré-estabelecida
que transmite para os atores executarem. Ao contrário, ele concebe
sua idéia de direção durante o processo levando em
consideração a criação dos atores e dos outros
participantes: músicos, artistas plásticos, iluminadores,
cenógrafos, etc. Nesse sentido, o ator e os outros criadores da
cena ganham voz ativa e autônoma no campo de sua expressão.
São estimulados pelo encenador a se posicionarem, através
da linguagem com a qual trabalham, a respeito das questões e dos
temas propostos. A idéia de dramaturgia do ator ou ator dramaturgo
também é importante porque pressupõe um ator que
possa ser sujeito de seu discurso expressivo, criando a possibilidade
de um teatro que não depende da literatura feita em gabinete pelo
dramaturgo. O ator torna-se consciente de sua expressão e, assim,
capaz de organizá-la segundo o sentido que pretende comunicar.
Isso não significa que o dramaturgo é eliminado, mas que
ele escreve na sala de ensaio juntamente com os atores.
Podemos dizer, portanto, que a idéia de encenador pedagogo assim
como a de dramaturgia do ator tem como fundamento o vínculo entre
pedagogia e arte. Os encenadores mais inquietos do século XX trabalharam
nesta perspectiva na medida em que apontam um novo olhar para o trabalho
do ator. Dentre eles podemos citar, Brecht, Stanislavski, Meyerhold, Grotowski
e os nossos contemporâneos Eugênio Barba, e, aqui no Brasil
de modo especial, Augulto Boal, dentre outros.
Esta formação caracteriza e orienta os interesses que me
motivam a desenvolver esse trabalho na escola PIO XII, tanto na construção
dos musicais como nas aulas específicas de teatro que também
ministro na escola. Minha preocupação em sala de aula é,
portanto, mais do que a de professora. É a de “encenadora
pedagoga”, ainda que, na sua essência e princípios,
a idéia de professora se aproxime da idéia de encenadora
pedagoga.
Nesse sentido, organizei a apresentação da seguinte maneira:
1. Introdução: que compreende essa breve contextualização
que acabei de fazer; 2. Descrição do espetáculo:
resultado segundo a forma e o conteúdo; 3. O processo de criação:
abordagem do tema, exercícios propostos, dificuldades encontradas.
2. Descrição do espetáculo: resultado
segundo a forma e o conteúdo
O espetáculo Os sonhos não envelhecem foi
constituído de cinco momentos: Prólogo, três Atos
e o momento final. Nos três Atos, contextualizados nos anos 60 e
70, são apresentados os sonhos de um grupo de jovens. Os personagens
são jovens anônimos, apaixonados, revolucionários
e, no final, os alunos quebram a convenção de intérpretes
da história de outros, colocando-se como intérpretes de
si mesmos, e relatam para a platéia seus próprios sonhos.
No que diz respeito aos aspectos formais e de conteúdo, o prólogo
tem o objetivo de anunciar o espetáculo e ser uma metáfora
da história a ser narrada. Abertas as cortinas, os atores já
estão em cena. O palhaço e a bailarina louca apresentam
os sonhos, tema do espetáculo. Eles pedem licença para contar
sobre a luta para conquistar seus sonhos. Neste primeiro momento os meninos
e meninas atuam como marionetes e, aos poucos, começam a cantar
Gran Circo. O tema do prólogo é, como fala a letra da música
de Milton Nascimento, o grande circo humano, espetáculo de mistério
e miséria.
Para construir este primeiro momento do espetáculo trabalhamos
com a experimentação de um corpo de boneco que é
movido por fios. Nesse trabalho é fundamental a consciência
de cada parte do corpo porque para realizar movimentos guiados por fios
imaginários cada parte do corpo deve se mover independentemente.
Experimentamos esses movimentos livremente e quando os alunos já
estavam familiarizados com essa nova maneira de se movimentar e de se
relacionar uns com os outros introduzíamos o canto, isto é,
a música que eles já tinham aprendido a cantar. Nessa fase
do trabalho eles representavam marionetes, cantavam Gran Circo e, influenciados
pelo sentido das palavras da canção, escolheram personagens
de circo (bailarina, palhaço, malabarista, mágico, etc.)
e compuseram um figurino e uma seqüência de movimentos específicos
para o personagem. Esses foram os elementos que estruturaram a cena, mas
cada vez que a repetíamos surgiam movimentos diferentes, o que
não era necessariamente um problema, pois trabalhamos com a idéia
de não fixar movimentos. A estrutura como um todo era fixa, mas,
a cada realização novos movimentos, expressões e
relações poderiam ser criadas e acrescidas à cena.
A imagem da marionete serviu de metáfora para idéias distintas
que permeavam a cena. Ao mesmo tempo que remetia à fantasia do
sonhador capaz de mover o mundo, também remetia à falta
de vontade própria vivenciada por muitos jovens de hoje. Uma metáfora
para indivíduos que sonham, muitas vezes, sonhos alheios e que
são incapaz de sustentar seus próprios sonhos e, por outro
lado, de indivíduos que por sonharem seus próprios sonhos
são, muitas vezes, marginalizados.
No Ato I é apresentado, inicialmente, um resumo do primeiro sonho
que trabalhamos. O sonho de encontrar um amor, um companheiro ou companheira.
Duas alunas falam uma poesia utilizando uma seqüência de gestos
e movimentos. No segundo momento entram duas alunas-atrizes que defendem
que qualquer forma de amor vale a pena, idéia muito comum na mentalidade
dos jovens dos anos 60 e 70 não só no Brasil, mas no mundo.
Em seguida entram todos cantando Girassol, de Lô Borges e Marcio
Borges, e representando uma situação motivada pela ação
de esconder um bilhete de amor. A criação dessa cena começou
em uma das primeiras improvisações. Essa ação
surgiu entre eles como uma brincadeira. Depois foi deixada de lado e só
mais tarde quando estávamos procurando um “corpo” para
a música Girassol que ela foi retomada. Essa cena também
possibilita aos alunos a improvisação, que se dá
no âmbito do deslocamento espacial onde o elemento orientador é
o equilíbrio do coletivo no espaço. O tema da cena, a música
cantada, as duplas são dados fixos mas a disposição
espacial, a seqüência de movimentos e as expressões
podiam ser recriadas a cada cena.
Quando definimos que o desejo de encontrar um amor ou companheiro seria
levado para o palco, procuramos músicas que tivessem uma poesia
que falasse sobre o tema. Seis duplas se prontificaram a fazer as cenas,
três casais cantavam a poesia fazendo uma representação
cênica e três falavam e representavam. As duplas foram trabalhadas
simultaneamente e cada uma criou a sua seqüência de movimento
tendo como base a poesia e o tema geral. Todos os casais estavam em cena
e misturavam pausas e movimentos durante todo o tempo. A voz mudava de
dupla em dupla, ora cantada ora falada. Nesse momento, a concentração
e a sustentação da cena era fundamental. Quando a dupla
não estava falando ou cantando e estava no momento de pausa a sustentação
da poesia da cena devia ser mantida. Essa é uma das questões
mais difíceis para os atores profissionais: ficar em cena sem “fazer
nada” e ainda assim não perder a energia e a concentração.
Para que isso ocorra é necessário uma mobilização
interior que justifique e dê sentido para estar em cena. Neste sentido,
a escuta se torna fundamental.
O Ato II é construído a partir de uma decepção
amorosa que impulsiona a jovem a buscar o segundo sonho trabalhado no
musical: a vontade de ser “alguém”, de ter uma profissão,
um trabalho e de ser reconhecido por isso. Por uma necessidade dramatúrgica
a personagem sai de uma decepção amorosa e vai em busca
de sua realização pessoal. O que não significa que
ela foi em busca desse segundo sonho apenas porque teve uma decepção
amorosa . A idéia enfatizada é que depois de vivenciar o
primeiro sonho ela vai em busca de outros. Uma jovem, segundo a letra
da música Travessia, onde a música conta a tristeza deixada
no peito por um amor que vai embora, a necessidade de esquecer o amor
perdido e “ir seguindo pela vida fazendo com o próprio braço
o seu viver”. Nessa cena a jovem que sofre a decepção
amorosa é estimulada a continuar a vida por vozes amigas que a
cercam no momento de maior tristeza.
A coreografia realizada buscava traduzir corporalmente a vontade de transformação
e a importância das relações de amizade. Todos aprenderam
a executar a coreografia e cada um preencheu os movimentos com o seu entendimento
sobre a idéia proposta. Depois de cantar e fazer a coreografia
segue uma seqüência de falas que retomam e enfatizam a viagem
em busca da realização pessoal. Uma atitude firme e frases
como “agora eu não pergunto mais aonde vai a estrada... agora
não espero mais aquela madrugada... deixar a luz brilhar e ser
muito tranqüilo....vai ser, vai ser, vai ter de ser faca amolada...deixar
o meu amor brilhar na luz de cada dia...”, da música Fé
cega faca amolada, representam a força da decisão de encarar
essa busca. Em seguida a música Nuvem cigana, de Lô Borges
e Rolando Bastos, também representa essa luta pela história
pessoal.
A vontade de se encontrar através da realização de
uma ação no mundo é representada, no espetáculo,
por uma banda que chega na cidade para uma apresentação.
Eles cantam Beathes, (uma vontade de nossos alunos) e um grupo de meninas
representavam as fãs eufóricas, que se concentravam para
representar a multidão. A cena das fãs foi criada quase
naturalmente pelas meninas do grupo, que queriam muito representar essa
situação. Neste sentido, indiquei-lhes que se mantivessem
atentas ao jogo que se estabeleceria dentro do grupo. Não haveria
uma líder pré determinada e qualquer uma delas poderia ocupar
esse papel ao propor uma pausa ou retomada de movimentos. Na medida em
que uma delas fizesse uma proposta todas deveriam seguir. Outra indicação
era a de que em determinado momento da música elas deveriam fazer
tudo em câmera lenta e só no final emitiriam vozes, como
gritos das fãs enlouquecidas. O resultado foi uma cena muito divertida,
e que permitia inúmeras interpretações.
O tema da fama esteve presente tanto pela referência aos Beathes
como por esta questão ser tema de uma novela na época. Depois
do show a poesia da música Nos bailes da vida, falada pelas fãs,
remete a uma idealização do artista que por amar a profissão
não se importa com as condições em que realiza essa
arte. Por outro lado, a música Tudo o que você podia ser
cantada revela o medo de arriscar e do futuro, de que o que se sonha não
possa ser realizado. As frases “com sol e chuva você sonhava
que ia ser melhor depois / você queria ser o grande herói
das estradas / tudo o que você queria ser... tudo o que você
consegue ser, ou nada” revelam a angústia vivida pelos jovens
quando, a partir dos 25 anos, aproximadamente, começam a perceber
que muitos dos sonhos que tiveram se perderam, porque a vida, de alguma
maneira, criou outros caminhos. Acredito que, para os nossos alunos, esse
é um ponto de vista que estaria mais ligado aos jovens dos anos
60 e 70 e aos jovens de hoje que estão nesta faixa etária,
do que à realidade deles que estão na fase dos 12 aos 16
anos, ainda tomando consciência dos primeiros sonhos. O Ato II termina
com a fala da letra Eu, caçador de mim onde é enfatizado
a necessidade de superar o medo e enfrentar a luta para encontrar um caminho.
Destaca também que a verdadeira busca e conquista é o conhecimento
de si mesmo.
No Ato III o sonho trabalhado é o de viver em um mundo melhor.
Também é contextualizado nos movimentos estudantis dos anos
60 e 70. Na sua busca de transformação política,
social e de valores que poderia levar à um mundo melhor. Para dar
conta desse tema colocamos em cena, simultaneamente, um conjunto de diferentes
vozes e pontos de vista. A construção da cena é feita
a partir da idéia de colagem e polifonia. Uma colagem de textos,
letras de músicas e frases musicais que polifonicamente dão
forma à poesia da cena. São visões sobre o momento
político de 1968. De um lado, o discurso poético, de outro,
o discurso jornalístico. No centro do palco os estudantes e a sua
expressão corporal de luta, ao fundo os instrumentos musicais e,
circulando entre esses pontos, uma canção que comenta a
situação representada.
Para construir essa cena trabalhamos com cada fragmento individualmente,
isto é, com cada grupo de alunos e, aos poucos, fomos descobrindo
o sentido que cada pequena célula tinha na construção
da realidade histórica da época que queríamos lembrar.
Essa foi uma cena que demandou bastante esforço e concentração
tanto de nós que estávamos orientando a colagem dos fragmentos
como a dos alunos que a realizavam. Da mesma maneira que na cena dos casais,
nesta cena a voz passava de um grupo para o outro e nos momentos de silêncio
era preciso sustentar a cena e estar atento para o momento de retomar
a fala.
A cena chega no seu momento limite com a poesia de Milton Nascimento e
Ruy Guerra, Canto Latino, onde a revolução é estimulada.
A partir desse poema realizado com bastante emoção pela
aluna que era apoiada pelas batidas do tambor que simulava as batidas
do coração que iam aumentando a velocidade do ritmo. A idéia
era levar a tensão da cena ao máximo para desencadear o
momento seguinte que era a revolução. Quando ela termina
a fala as imagens de manifestações de estudantes e trabalhadores
são projetadas. No mesmo momento entram em cena dois grupos que
representam ideologias opostas na época. Um grupo canta Pra não
dizer eu não falei das flores, de Geraldo Vandré e o outro
grupo canta Pra frente Brasil. Essas músicas são intercaladas
enquanto passam as imagens. Para construir essa cena primeiramente nós
e os alunos vimos o Documentário chamado Golpe de 64, da Nativa
estúdio. Vimos e nos impressionamos com as cenas do filme.
Como sabemos, historicamente o desejo dos revolucionários (sejam
eles estudantes ou comunistas filiados a partidos, muitas vezes os dois
ao mesmo tempo) foi profundamente reprimido pela ditadura. Essa era uma
realidade da qual não poderíamos nos furtar, pois estávamos
falando sobre a história do Brasil. Nesse sentido, optamos por
levar para o palco a morte do estudante. Com a imagem do estudante fixada
no telão eles falavam a poesia Sentinela de Milton e Fernando Brant
e, em seguida, cantavam a música Menino de Milton e Ronaldo Bastos
que enfatizava a idéia de que “quem cala sobre teu corpo
consente na tua morte... quem cala morre contigo e quem grita vive contigo”
.
Terminamos o espetáculo retomando a caminhada e a idéia
de estrada como fala a música Clube da esquina 2 de Milton e Ronaldo
Bastos, para chegar no momento em que os alunos contariam para a platéia
os sonhos que tinham em seus corações e mentes.
3. O processo de criação: abordagem do tema,
exercícios propostos, dificuldades encontradas
Inicialmente a pergunta sobre os sonhos da juventude dos
anos 60 e 70 e o livro Os sonhos não envelhecem, de Márcio
Borges, sugerido pela professora Liana, foram os elementos unificadores
do trabalho. A partir disso, começamos a buscar músicas
e poesias de Milton Nascimento e de seus amigos do Clube da esquina que
pudessem construir uma narrativa sobre o tema: os sonhos. Ao mesmo tempo,
buscamos diferentes meios de estimular os alunos a pesquisarem sobre o
tema com familiares, professores, livros, outras músicas da época
e, também, que falassem sobre os seus próprios sonhos e
sobre as idéias que eles tinham a respeito de revolução,
censura, liberdade de opinião, etc. Perguntávamos sobre
os sonhos deles e os sonhos dos jovens de 60 e 70, numa tentativa de estimular
neles uma relação entre passado e presente. Entre os sonhos
comentados surgiram, repetidas vezes, os sonhos de encontrar um amor,
um companheiro ou companheira. Alguns sonhavam em formar uma família.
Outros sonhavam em ter uma profissão e ser reconhecido por isso,
e outros, ainda, em ver um mundo melhor.
Do ponto de vista técnico, trabalhamos, coletivamente, paralelo
a essa pesquisa de idéias e sentidos, no desenvolvimento de uma
consciência corporal. A partir dessa consciência buscamos
criar diferentes maneiras de expressão corporal e vocal.
As aulas do teatro sempre começam com exercícios ou jogos
que tentam despertar a consciência de si, corpo e sentimento, e
a consciência do outro. E, assim, busca-se construir um corpo expressivo,
denominado de corpo poético. O corpo poético é esse
corpo que nos permite ver a alma (independente de como a representamos,
explicamos, ou compreendamos). Corpo sensível que desenha no espaço
com seus gestos, que canta, que se liberta dos padrões cotidianos
e cria um novo ritmo, um novo caminho, que não tem pressa, que
consegue ver e escutar o outro.
Quando começamos a misturar as duas linguagens (música e
teatro) trabalhamos com a idéia de apropriação de
conhecimento a partir da junção de elementos novos. O processo
se resumiria, de alguma forma, no seguinte: primeiramente os alunos se
familiarizam com um padrão expressivo, por exemplo a música:
cada aluno aprende a cantar a música segundo a sua voz, pois trata-se
de um coral, e quando ele já domina essa canção a
ponto de se tornar independente dos outros cantores introduzimos um elemento
novo, a expressão corporal, através de jogos, de uma coreografia,
ou de uma improvisação que já foi de algum modo experimentada
por eles em outro momento. O desafio do ator-cantor é o de conjugar
em si o canto, a movimentação e a atenção
para dar continuidade à cena. Importante ressaltar que não
se trata de construir um aluno de artes virtuoso que canta, dança,
representa, dá piruetas. O resultado dessa mistura de habilidades
feito pelo aluno não é o nosso objetivo último e
sim conseguir que, através desses elementos sensíveis, ou
seja, o canto e a representação, que o aluno consiga se
envolver com o universo representado e se experimentar. O que percebo
é que o envolvimento na realização dos exercícios,
das improvisações e, mesmo, na pesquisa teórica é
fundamental para criar o sentido daquilo que se está realizando.
O sentido individual é necessário para que quem comunica
algo sinta prazer em fazê-lo. E muitas vezes o que parecia complexo
se tornava simples e integrado.
O desafio de aprender a cantar, a construir imagens com o corpo, a falar
de maneira clara, estava intimamente ligado com outros desafios ainda
maiores: o envolvimento e a responsabilidade com o trabalho; a sensibilização;
a superação dos preconceitos com o próprio corpo
e do medo de ser “ridículo” e, por isso, não
ser aceito; aprender a ouvir e respeitar o outro; e, por fim, a construção
de um trabalho coletivo, ou seja, sem exclusão, contemplando todos
os desejos e com liberdade. O primeiro desafio, pela natureza dos exercícios
exigia que enfrentássemos o segundo.
Muitas vezes tivemos conflitos, pensamentos e vontades que não
se entendiam. Algumas vezes precisamos parar o ensaio para nos perguntar
(alunos, alunas e professoras) se era isso mesmo que queríamos,
se esse era o caminho e se conseguiríamos realizá-lo. Discussões
sobre a postura de cada um no trabalho, as ausências, o cansaço
e as expectativas que não se realizavam, muitas vezes, fizeram
com que nos perguntássemos: vale a pena? Estávamos falando
de sonhos e das dificuldades de realizá-los e estávamos
vivendo isso. Desejávamos construir um espetáculo e vivíamos
as dificuldades de sua criação. Esse era um problema que
tínhamos que resolver coletivamente.
Como conseguimos chegar ao final desse percurso de trabalho? Acredito
que a resposta a essa questão é a mesma que se daria à
questão: como um cego consegue andar em um lugar desconhecido?
Tateando, escutando, sentindo, tropeçando mas sempre seguindo em
frente. Acredito, ainda, que o grande desejo de compartilhar com os outros
a poesia que havíamos construído em cena, com matérias
que surgiram de nós mesmos, era outro grande motivador.
Olhando, agora, à distância, percebo que o trabalho teve
uma conclusão quando conseguimos levá-lo ao palco compartilhando
seu resultado com pessoas para as quais gostaríamos de falar alguma
coisa. Mas não terminou, continua em processo e esta minha fala
hoje representa uma forma de continuidade.
Ao pensar sobre os saberes constituídos no processo de construção
do espetáculo Os sonhos não envelhecem me perguntei sobre
quais saberes transcenderiam as habilidades de cantar, representar e se
expressar corporalmente. Esses saberes poderiam ser objetivamente verificados
na realização da cena, pois os alunos haviam desenvolvido
habilidades, em maior ou menor grau, que poderiam ser vistas por todos.
No entanto, essas habilidades não deveriam estar alienadas de outros
saberes que transcendem a cena. Sobre isso, eu só poderia responder
a partir da minha experiência.
Gostaria de terminar esta comunicação, portanto, relatando
que nesse caminho percebi que fazer teatro na escola não é
completamente diferente de fazer teatro em um grupo amador ou em um grupo
profissional. Os conflitos, desejos e satisfações são
da mesma natureza. Isso porque o teatro possui como matéria e instrumento
de seu fazer a própria pessoa que o faz, o corpo e a alma, a paixão
que move e a razão que dá contorno a esse movimento. Nesse
sentido, a construção do aprendizado é contínua
e entendo que o aprendizado do canto, da expressão corporal, do
jogo da cena é fundamental. Mas esse conhecimento não serve
para muita coisa, assim como no percurso de nossas vidas não serve
para muita coisa resolver contas, escrever sem erros gramaticais ou descrever
as partes de uma célula, se a experiência desses atos não
estiverem acompanhados de uma grande sensibilidade para perceber o que
se passa dentro de nós mesmos, o que se passa com quem está
do nosso lado, com o mundo que nos cerca, ou, em última instância,
para refletir sobre o mundo que nós mesmos estamos construindo.
Nesse momento, entendo que a experiência de realizar um espetáculo,
dentro de uma perspectiva pedagógica, só tem sentido se
for instrumento para sermos mais humanos, para sermos mais lúdicos
e críticos.
Referências Bibliográficas
BORGES, M. Os sonhos não envelhecem: Histórias
do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial,
2002.
BURNIER, L. O. A arte do ator: da técnica à representação.
Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
GUINSBURG, J. Stanislavski, Meierhold e Cia. São Paulo: Perspectiva,
2001.
RANCIÉRE, J. O Mestre Ignorante – cinco lições
sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica,
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SPOLIN, V. Improvisação para o teatro. São Paulo:
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