Mariângela do Nascimento Sant’Ana
da Costa (UFMS)
O problema para mim não está em saber como
ensinar literatura, mas sim em se questionar a própria função
da literatura e de seu ensino. (Greimas)
Algumas Considerações Iniciais
O artigo Memória de Leitura de Machado de Assis
se propõe a discursar alguns dados obtidos de uma pesquisa de mestrado
realizada nas bibliotecas públicas e privadas da cidade de Penápolis,
estado de São Paulo.
A pesquisa se propôs a analisar a leitura, a recepção
das obras machadianas no leitor formativo (alunos que estão na
escola) e o leitor informal (não mais freqüentam a escola,
mas possuem uma biblioteca domiciliar contendo obras de Machado de Assis),
assim como o papel da escola, do professor, enquanto mediadores, e o das
bibliotecas enquanto espaço de leitura.
Inicialmente foi feito nas bibliotecas um levantamento, no período
de 2003 e 2004, dos usuários das produções de Machado
de Assis, como também foi realizado um trabalho minucioso dos dados
bibliográficos (edição, aquisição...)
das obras consultadas. Foram encontrados, no período acima especificado,
quatrocentos e cinqüenta e seis (456) leitores machadianos na Biblioteca
Pública Municipal, setenta (70) leitores nas Bibliotecas Públicas
Estaduais e quarenta (40) leitores nas Bibliotecas Privadas.
Após este primeiro passo, iniciamos a entrevista domiciliar com
os leitores formativos, os quais eram convidados espontaneamente a responder
um questionário contendo questões objetivas e dissertativas.
O questionário se dividia em duas partes, sendo a primeira voltada
ao leitor, leitura e recepção, e a segunda direcionada ao
professor, enquanto mediador da leitura.
Concomitantemente, realizamos a pesquisa com os outros dois grupos, os
leitores informais (bancário, advogado, jornalista...) e os bibliotecários,
dados esses que nos permitiram confrontar com outros resultados. Concluída
a fase de entrevista foi feita a tabulação de dados e discorrida
a parte teórica da pesquisa, utilizando como viés as contribuições
da abordagem alemã Estética da Recepção.
Faz-se importante elucidar que a discussão a que propomos tem como
fio norteador os resultados de uma pesquisa realizada em uma cidade do
interior do estado de São Paulo, no entanto é possível
transpor estes resultados locais para uma discussão mais ampla,
permitindo-nos não somente discutir a realidade de uma comunidade,
como também repensar o papel da leitura.
Revendo posturas e leituras...
Ao se dispor fazer uma avaliação da leitura
e recepção das obras de Machado de Assis é possível
observar que conquistamos avanços significativos no campo da leitura,
no entanto, ainda permeia no sistema educacional, velhas posturas tradicionais,
impossibilitando saltos mais qualitativos.
Analisando alguns resultados da pesquisa, um índice significativo
é a maneira com que os leitores conduzem sua leitura. Mais de 50
% dos entrevistados não têm o hábito de fazer anotações
em folhas, não buscam auxílio de dicionário e iniciam
a leitura do livro pelo primeiro capítulo, sem ler prefácios
e introduções.
O que se nota no aluno é que ao se dispor a leitura de uma obra,
realiza-o de uma forma simplista, objetiva, desprovida do olhar crítico.
Não se observa nesta experiência o diálogo dialético
obra/leitor, o entrelaçamento bilateral.
Calcada na teoria de que o leitor estaria movido por um ato de antecipação,
prevendo as regras do jogo, Eco, recorrendo à analogia clássica
do jogo de xadrez, tenta explicitar o processo fundamental da leitura.
O que faz o leitor? Dispõe da forma do tabuleiro,
das regras do xadrez e de toda uma série de jogadas clássicas
registradas na enciclopédia do jogador de xadrez, de verdadeiros
cenários entre partidas, consideradas tradicionalmente como os
mais frutuosos, mais elegantes. Esse conjunto (forma do tabuleiro, regras
do jogo, cenário do jogo)... representa um conjunto de possibilidades
permitidas pela estrutura da enciclopédia do xadrez. E a partir
dessa base que o leitor está prestes a propor sua solução.
Refletindo, muitas vezes, a prática pedagógica
do professor, não se observa no ato da leitura o comprometimento
de um jogador, disposto a desvendar o enigma do jogo, já que, frequentemente
as regras estão pré-estabelecidas.
Optar pela leitura de uma obra pressupõe alguns requisitos, como
alguns conhecimentos básicos literários, que nem sempre
o aluno possui. Ao se entregar aos sabores da leitura, o leitor trava
um compromisso com os elementos estruturais da obra e somente após
adquirir estes conhecimentos que a experiência se torna possível.
Compagnon, partindo do pressuposto que a obra aberta estabelece um diálogo
constante entre o autor/leitor e que o sucesso da leitura da obra depende
deste entrelaçamento, afirma:
O leitor implícito, na verdade só tem como
escolha obedecer às instruções do autor implícito,
pois é o alter ego ou o substituto dele. E o leitor real se encontra
diante de uma alternativa radical: ou desempenhar o papel prescrito para
ele pelo leitor implícito ou, então, recusar suas instruções;
consequentemente, fechar o livro.
E ao professor cabe a função de dar pistas,
lentes ao leitor, permitindo uma melhor leitura de si mesmo, e estaria
falando a todo o momento: “Experimente se vê melhor com estas
lentes, com estas, com aquelas outras”.
Nesta intermediação, resgatar-se-ia o movimento catártico
(katharsis) da leitura, a arte enquanto processo de comunicação,
de interatividade entre obra e leitor. O leitor passaria a dividir com
a arte literária suas experiências, proporcionando-lhe o
alívio ou a purgação desses sentimentos, assemelhando-se
ao efeito moral e purificador da tragédia clássica conceituado
por Aristóteles.
Outro ponto a ser destacado na pesquisa, elemento contribuidor para a
leitura mecanicista do aluno, é a prática pedagógica
do professor, enquanto mediador do processo da leitura. Ao perguntar aos
leitores quais os motivos que o levaram a ler determinadas obras, a resposta
é simples e imediata. A procura se deve, como foi constatada no
questionário (64%), a pedido dos professores para posterior avaliação
como também atender às listas de leitura exigidas no vestibular.
Nota-se neste momento a ausência da leitura espontânea, o
mero prazer de abrir um livro e compartilhar pari passu os caminhos da
narrativa. A leitura, neste grupo, não conquistou sua função
maior, uma atividade formadora de homens livres e conscientes.
Quanto à natureza das perguntas elaboradas pelo professor como
meio de avaliação, prevalecem as questões objetivas,
previamente formuladas, a procura de um sentido único, de uma verdade
unilateral. Acentua-se ainda mais este dado quando se trata do leitor
de escolas privadas que pressionado pela aprovação no vestibular,
despreza a individualidade do aluno, o caráter formador da Literatura.
Interpretar um texto não é dar-lhe um sentido,
mas apreciar que plural é feito. Em primeiro lugar, colocamos a
imagem de um plural triunfante, que nenhuma imposição de
representação vem empobrecer. Nesse texto ideal, os feixes
são múltiplos e jogam entre si, sem que nenhum possa ganhar
os outros, esse texto é uma galáxia de significantes, não
uma estrutura de significados, tem-se acesso a ele por várias entradas
das quais nenhuma pode ser declarado com certeza principal.
O ensino da literatura, nas escolas, tem sido caracterizado
como um movimento mecânico e sincronizado, que consiste em abrir
o livro didático, responder as questões previamente elaboradas
pelo professor, estudar para a avaliação e, posteriormente,
atender as exigências do vestibular. A narrativa é utilizada,
muitas vezes, como pretexto para o ensino do estudo da gramática,
servindo como apêndice didático aos objetivos escolares.
Nota-se que a partir dos anos 70, fruto de um intenso trabalho teórico
de descontrução e reconstrução no campo da
leitura, associado às mudanças no contexto histórico,
social e cultural do país, o sistema educacional tem insistido
no caráter pluriforme da leitura, apostando não ser esta
atividade um fenômeno estático, que não funciona segundo
o modo da evolução linear, mas que apresenta os seus movimentos
oscilantes, variáveis. No entanto, ao confrontar estes conceitos
com a prática docente, observa-se uma lacuna, um distanciamento,
uma assimetria entre o que se ensina nas salas de aula com o que se espera
que seja ensinado.
Zilberman, no que se refere ao caráter emancipador da Literatura,
esclarece que o ensino tem permanecido no modelo tradicional, desmentindo
a função iluminista que traz das origens. A educação
tem propagado com veemência uma utopia libertadora, pois ainda mantém
atuante nas escolas uma metodologia de leitura estruturalista, descontextualizada,
ocultando a voz do leitor.
Bosi afirma que “as unidades escolares nada mais refletem do que
o mundo do receituário que invade as instituições
acadêmicas. Há um ciclo vicioso que contamina as universidades
e, conseqüentemente, as escolas, produzindo, desta forma, professores
e alunos passivos, meros reprodutores de um sistema educacional mecânico”.
Mesmo diante de contínuos projetos, debates, conferências
enfatizando a necessidade de rever posturas, de redirecionar a prática
pedagógica, permeia com assiduidade no sistema educacional uma
concepção materialista, um ensino repetitivo, estanque,
impessoal. A Literatura, sob este prima, limita-se a função
de disciplina obrigatória na grade curricular, devendo ser cumprida,
ensinada segundo os parâmetros do plano escolar.
Segundo Candido, “a literatura assume duplo papel social, a saber:
o papel cultural e o papel informativo-formativo. Nessas duas vertentes
vê-se com clareza a função da literatura como instrumento
e meio educador, tendo como fim o homem, a formação de cidadãos
conscientes, reflexivos e comprometidos com a sociedade em que vivem e,
conseqüentemente, consigo mesmo”
A Literatura ultrapassa os limites impostos pelos muros da escola, ela
entrelaça vida e obra, trazendo para a sala de aula não
só a história do homem, da arte, mas também a própria
história singular do leitor, do aluno. Sob este novo prima, a Literatura
passa a viver em comunhão com o aluno, ambos se confraternizam
em experiências e desafios, assumindo a função humanizadora.
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