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ATIVIDADES
DE LEITURA NO LIVRO DIDÁTICO DE ALFABETIZAÇÃO: O CASO
DO LETRA, PALAVRA E TEXTO
Marília de Lucena Coutinho – UFPE
- (marilia.lc@uol.com.br)
A presente pesquisa pretendeu investigar as atividades
de leitura presentes no livro didático Letra, Palavra e Texto,
adotado pela Secretaria de Educação da Cidade do Recife
e utilizado por duas professoras que lecionavam no 1º ano do 1º
ciclo (classe de alfabetização). A análise do livro
constatou uma presença de um variado repertório textual,
mas, em relação às atividades de leitura, havia pouca
exploração de estratégias de leitura. Ambas as professoras
afirmaram que utilizavam o livro como um dos materiais de apoio à
organização do seu trabalho pedagógico, mas que este
material necessitava de modificações nas atividades de exploração
de estratégias de leitura e apropriação do sistema
de escrita.
INTRODUÇÃO
O Censo Escolar do ano de 2000 revelou que o fracasso escolar no 1º
ano do 1º Ciclo do Ensino Fundamental, no estado de Pernambuco, representou
cerca de 25%, ou seja, uma em cada quatro crianças repetiu a classe
inicial, por não ter conseguido (na grande maioria dos casos) construir
sua base alfabética.
Mas, o que, exatamente, traduz esse dado? Embora a escola tenha aumentado
suas taxas de escolarização nos últimos anos, por
qual motivo não consegue vencer o desafio de alfabetizar os alunos?
As contribuições advindas das áreas educacional,
sociológica, psicológica, lingüística e outras,
apontaram que o fracasso escolar não mais poderia estar condicionado
ao alunado, mas, sim, à própria escola, que se mostrou ineficiente
na garantia de permanência e de sucesso dos alunos: os fracassos
seriam “produzidos pela escola reprodutora” (MORTATTI, 1999,
p. 262). Esse fracasso também teria relação direta
com as práticas de leitura realizadas nas nossas escolas.
Ainda segundo Mortatti (op. cit.), foi só a partir do final dos
anos 80 e início da década de 90 que conclusões resultantes
de investigações sobre o conhecimento e evolução
psicogenética da aquisição da língua escrita
surgiram no cenário educacional, fazendo uma verdadeira revolução
conceitual, refutando as antigas práticas tradicionais de alfabetização,
seus “métodos”, materiais didáticos utilizados
e, principalmente, deslocando do eixo da discussão de como se ensina
para como se aprende.
As cartilhas, até então tidas como materiais de referência
no processo de aquisição da leitura e escrita, foram amplamente
criticadas e acabaram por cair em desuso, exatamente porque se mostraram
inadequadas na irrelevância das informações que traziam,
pela monotonia dos exercícios que propunham e pela falta de sentido
nas atividades sugeridas. Novas questões, então, surgiram:
Como realizar uma prática diferenciada? Que materiais utilizar?
E mais, com qual objetivo ensinar a ler e escrever?
Segundo Albuquerque (2002), mudanças na prática dos professores
passaram a ser exigidas. Os documentos oficiais (propostas curriculares,
por exemplo), como textos prescritivos, no geral, criticam as práticas
tradicionais de alfabetização e propõem novas perspectivas
teórico-metodológicas, embora não haja um consenso
em relação às suas denominações e interpretações
(MARINHO, 1998). Por outro lado, presenciamos, na última década,
um processo de reformulação dos livros didáticos
com vistas a contemplarem as novas perspectivas teóricas de alfabetização.
Silva (1996) aponta-nos que a escola concebe o livro como um instrumento
básico, um complemento primeiro das funções pedagógicas
exercidas pelo professor. Lajolo (1996) reafirma essa concepção
e acrescenta que, apesar do livro didático não ser o único
material de que os professores e alunos irão valer-se no processo
de ensino-aprendizagem, ele pode ter muita influência na qualidade
do aprendizado resultante das atividades escolares.
Compreendendo a importância desse material e percebendo a necessidade
urgente de serem feitas reformulações nos livros didáticos
(pois muitos apresentavam trabalho bastante diferente do sugerido nas
novas perspectivas de ensino, erros grosseiros, além de posições
muitas vezes preconceituosas e discriminadoras), o MEC passou a desenvolver,
desde 1995, o PNLD , caracterizado pelo trabalho de análise e avaliação
pedagógica dos livros didáticos das diferentes áreas
de ensino, seguindo, como parâmetros, critérios cuidadosamente
estabelecidos e de acordo com as novas perspectivas educacionais (ALBUQUERQUE,
2002).
Dessa forma, o presente trabalho se propôs a analisar as atividades
de leitura presentes no livro didático adotado pela Secretaria
de Educação de Recife e utilizado pelas professoras em turmas
de alfabetização.
Para tal análise, adotamos alguns procedimentos metodológicos,
como descreveremos a seguir:
• Análise documental
A Secretaria de Educação da Cidade do Recife tem feito a
opção pelo “sistema escolha única do livro
didático” e, dessa forma, realizamos uma análise do
livro didático utilizado na rede para a alfabetização
no ano de 2003. Segundo Bardin (1977), a análise documental é
um conjunto de operações que visa a representar o conteúdo
de um documento, sob uma forma condensada, a fim de facilitar, posteriormente,
a sua consulta, referenciação e armazenagem.
• Entrevistas
A opção por entrevistas assegurou-se pelo seu “caráter
de interação, havendo uma atmosfera de influência
recíproca entre quem pergunta e quem responde” (LÜDKE
& ANDRÉ, 1986, p. 33). As entrevistas possuíram caráter
semi-estruturado (ou seja, possuindo questões abertas), exatamente
por elas permitirem que o pesquisador viesse a conhecer mais particularidades
a respeito dos entrevistados e, neste caso, o que as docentes pensavam
sobre o livro didático em suas salas e como descreveram ser o seu
uso.
Segundo Lüdke & André (1986), a entrevista semi-estruturada
se desenrola a partir de um esquema básico, não aplicado
rigidamente, permitindo que o entrevistador possa fazer as adaptações
necessárias. Fizemos uso apenas de um roteiro que guiou a entrevista
através de tópicos que considerávamos essenciais.
Com a utilização desses instrumentos de investigação,
buscamos levantar dados necessários para podermos analisar as atividades
de leitura presentes no livro didático e também o que pensavam
as professoras a respeito de tais atividades. Para a análise de
dados tomamos como referencial a análise de conteúdo temático,
pois, como bem coloca Bardin (1977), o investigador escolhe o tipo de
conteúdo a ser examinado, podendo ser ele manifesto ou latente,
cujo interesse é perceber não só o que é dito,
mas o que está oculto no discurso, buscando compreender, inclusive,
o que está nas entrelinhas das mensagens.
Algumas reflexões sobre as mudanças nos livros didáticos
de alfabetização
A importância da investigação sobre a temática
“livro didático” se intensifica quando se constata
que ele constitui, muitas vezes, o único material de acesso ao
conhecimento, tanto por parte dos professores (que nele buscam a legitimação
de seu trabalho e apoio para suas aulas) quanto dos alunos. E a escola,
principal responsável pelo ensino do registro verbal (principalmente
ler e escrever) da cultura dos dias atuais, concebe o livro (didático
ou não) como um instrumento fundamental, um material essencial
na realização das funções pedagógicas
exercidas pelo professor (Cf. SILVA, 1996; LAJOLO, 1996; CORACINI, 1999).
Segundo Batista (1999), os livros didáticos podem ser uma interessante
fonte para o estudo do cotidiano e dos saberes escolares. Eles são
a principal fonte de informação impressa utilizada por parte
significativa de alunos e professores, o que ocorre na proporção
em que as populações escolares têm menos acesso aos
bens econômicos e culturais.
Os livros didáticos são, para significativa parte da população
brasileira, o principal impresso em torno do qual sua escolarização
e práticas de leitura serão organizadas e constituídas.
Ainda segundo Batista (1999), é preciso conhecer melhor esse impresso
que se converteu na principal referência para a formação
e inserção no mundo da escrita de um expressivo número
de docentes e discentes de nosso país e que, como conseqüência,
tem auxiliado na construção do fenômeno do letramento
no Brasil. Dados também indicam que o impresso didático
desempenha um papel bastante importante na produção editorial
brasileira geral.
Compreendendo a importância desse material, e reconhecendo que muitos
deles se distanciavam das atuais propostas curriculares e dos projetos
elaborados pela Secretarias de Educação – que, por
sua vez, contemplavam as novas concepções relacionadas ao
ensino de língua Portuguesa – e por serem também desatualizados
e cometerem erros inaceitáveis, o MEC passou a desenvolver e executar,
desde 1995, um conjunto de medidas para avaliar sistemática e continuamente
o livro didático brasileiro.
Dessa forma, todas as obras a serem adquiridas passariam por um processo
de análise e avaliação (de acordo com as áreas
de conhecimento). Apenas os livros didáticos não-consumíveis
(com exceção dos dirigidos à alfabetização
e 1ª série), com qualidades gráficas e editoriais e
que não envolvessem mais de uma área do saber, que não
exigissem a compra de outros volumes ou satélites, que apresentassem
um “guia” para o professor, poderiam ser analisados. Além
desses critérios, outros de ordem específica das áreas
do conhecimento também foram estabelecidos.
Então, desde 1996, os resultados das avaliações foram
sendo apresentados através de publicações do Guia
de Livros Didáticos, que apresenta informações sobre
eles, constituindo-se em um material que deveria orientar a escolha do
livro didático pelo professor. Nesse guia, eles são classificados
em três grandes categorias:
1- Recomendados com distinção
2- Recomendados
3- Recomendados com ressalvas
Mas, será que as propostas dos livros didáticos recomendados
pelo PNLD poderiam mesmo superar as antigas práticas usadas nos
modelos antigos? Será que esses novos manuais apresentam orientações
teórico-metodológicas que possam auxiliar o professor no
desenvolvimento de um trabalho baseado nessa nova perspectiva de alfabetização?
Será que os professores estão, efetivamente, utilizando
esses “novos” livros?
Algumas pesquisas buscaram analisar os novos livros de alfabetização,
sob diversos aspectos.
Bregunci e Silva (2002), ao desenvolverem uma pesquisa financiada pelo
MEC sobre a escolha dos livros didáticos, constataram que, do ponto
de vista de um grande número de professores, os livros disponibilizados
após a implantação do PNLD são considerados
melhores do que aqueles distribuídos e utilizados anteriormente,
pois, segundo os próprios professores, os novos materiais apresentam
conteúdos integrados e uma abordagem interdisciplinar ou conteúdos
mais criativos, próximos à realidade dos alunos. Por outro
lado, as pesquisadoras destacaram que, para a maioria dos docentes, os
livros recebidos na faixa de menções superiores –
sobretudo os Recomendados com Distinção – não
atendem à sua clientela por trazerem textos longos e complexos,
sendo “feitos para crianças que já sabem ler”.
São obras reconhecidas como “boas em si mesmas (...) mas
difíceis de serem seguidas...”.
Silva (2003), Castanheira e Evangelista (2002) investigaram o discurso
das professoras no que se refere ao uso dos novos livros didáticos
e constataram que elas trocavam os livros recomendados pelo PNLD por outros
inferiores, pois sentiam dificuldades de utilizarem os novos livros para
alfabetizar, uma vez que eles apresentavam textos complexos e longos.
Assim, preferiam livros com textos curtos e com os quais já estavam
acostumadas a trabalhar.
O presente trabalho, por sua vez, buscou analisar as transformações
ocorridas no livro didático no que se refere ao ensino da leitura
e o que os professores pensam a respeito destes materiais.
Apresentação do livro didático Letra, Palavra e Texto
O livro didático Letra, Palavra e Texto (LPT) encontrava-se
organizado em nove projetos temáticos de trabalho, havendo, no
final do material, um mini-glossário que continha algumas das palavras
presentes nos textos do livro, sugestões de leitura complementar,
para cada um dos projetos e referências bibliográficas para
o professor. O manual do mestre incluía todas essas seções
e mais um encarte, intitulado “manual do professor”. Nele
estavam mencionadas as opções teórico-metodológicas
adotadas pelas autoras do livro.
O que os alunos liam?
Na tentativa de melhor conhecer o material sugerido para
leitura, dividimos as atividades (de leitura) em: Leitura de Texto; Leitura
de fragmentos de texto; Leitura de frases; Leitura de palavras/ rótulos/
nomes; Leitura de palavras com auxílio de ilustrações;
Leitura de letras/sílabas.
O gráfico a seguir, apresenta a freqüência das atividades
de leitura propostas ao longo das nove unidades (projetos) do livro:

Gráfico
1. Atividades de leitura/Projetos
Como podemos observar, há predominância de leitura de textos,
correspondendo a um total de 58% (52% de leitura de texto mais 6% de leitura
de fragmentos de texto) de todas as atividades de leitura propostas, ocorrendo
desde o primeiro projeto do livro até o final. Observamos, também,
maior concentração de propostas de leituras de texto nos
projetos de número 5 e 6 (Festas Juninas e Brincadeiras Folclóricas,
com 8 e 10 atividades, respectivamente) e acreditamos que isto se deve
ao fato de que esses projetos apresentam maior quantidade de sugestões
de atividades de confecção de brinquedos, como, também,
de preparo de receitas.
A segunda maior freqüência encontrada se refere à leitura
de palavras, rótulos e nomes, representando um total de 22%, incidindo
em maior número de vezes nos projetos iniciais (até a unidade
6). A partir da sétima unidade, as atividades que envolvem leitura
de palavras são substituídas por leitura de frases e, principalmente,
de textos. O último projeto do livro, inclusive, só propõe
leitura de textos.
Podemos concluir que, embora seja um livro destinado à alfabetização,
as autoras apresentaram clara preocupação com a perspectiva
do letramento, elegendo o texto como a principal unidade de sentido.
As autoras demonstraram possuir clareza sobre a importância do trabalho
com textos desde o início da alfabetização e assim,
elaboraram com freqüência atividades que buscavam explorar
a compreensão textual através das estratégias de
leitura.
Observamos que as autoras planejaram atividades relacionadas à
ativação de conhecimentos prévios, levantamento e
checagem de hipóteses, produção de inferências
e atividades de localização de informações.
Observemos o gráfico a seguir:

Gráfico
2. Freqüência de Estratégias de Leitura por Unidade/Projeto
Um primeiro
ponto que gostaríamos de analisar, com base no gráfico de
número 2, está relacionado ao fato de que os projetos com
maior presença de exploração de estratégia
de leitura foram os de número 4 e 7 (Brincando com Palavras e Hora
de Histórias), com freqüências respectivas de 25% e
29,17%. Acreditamos que esse fato deve-se à própria temática
dos projetos, que está pautada em gêneros textuais específicos
(poemas e histórias) e que possibilitam a exploração
de estratégias de leitura.
Analisando cada uma das estratégias, individualmente, observamos
que a estratégia de localização de informações
foi a que mais apareceu, representando 43,06% de freqüência
total. Sua incidência esteve bem distribuída ao longo de
todo o livro didático, mas, mais uma vez, a maior freqüência
ficou entre os projetos 4 e 7.
Consideramos de fundamental importância essa estratégia ter
sido comumente acionada, uma vez que se trata de um livro de alfabetização,
cujos alunos estão se apropriando de sistema de escrita e, nesse
sentido, “localizar informações” dentro de um
texto significa poder “auto-controlar” sua leitura e, também,
possibilita que o professor verifique se o aluno já está
lendo.
A segunda estratégia com maior freqüência foi a de produção
de inferências, com 36% do total ao longo de todo o livro. Podemos
visualizar que os projetos 4 e 7 também apresentaram maior concentração
das estratégias de leitura de “produção de
inferência”. Voltamos, mais uma vez, a salientar que esses
dois projetos destinaram-se à exploração de gêneros
textuais específicos (poemas e contos). Assim, a exploração
dessa estratégia de leitura fez-se presente para contribuir na
interpretação e compreensão dos gêneros, como,
também, na produção de outros poemas e contos.
Chama-nos a atenção o fato de estratégias como levantamento
de conhecimentos prévios, tanto de temática quanto gênero
e autor, terem sido pouco exploradas. O livro didático se propôs
a trabalhar a partir de projetos com temáticas e gêneros
textuais (como, por exemplo, quadrinhos) relacionados com o cotidiano
das crianças; trouxe, em seu repertório textual, produções
de autores brasileiros consagrados e contemporâneos, além
de apresentar os mesmos gêneros textuais por diversas vezes, mas
não esteve preocupado em explorar os prováveis conhecimentos
prévios dos alunos sobre esses aspectos.
Outras atividades:
Embora nesta
análise nosso foco tenha sido nas atividades de leitura propostas
pelas autoras do livro Letra, Palavra e Texto, ainda gostaríamos
de considerar dois outros pontos que, embora não estivessem relacionados
diretamente à leitura, são de extrema significação,
se levarmos em conta que esse é um livro de e para alfabetização
e que a linguagem que se escreve (compreensão e produção
textual) é tão importante como a apropriação
do sistema de escrita.
Gráfico
3 Atividades de Apropriação do SEA/Projetos
Como pudemos
observar no gráfico 3, as atividades que se destinam à apropriação
do sistema de escrita são limitadas, concentrando-se nos projetos
de números 4 e 6. Ainda assim, a freqüência individual
de cada uma delas é baixa. A categoria que mais apresentou atividades
foi a de “escrita/formação de palavras sem ou com
letras dadas” (33,33%), mas atividades que explorassem as habilidades
de análise fonológicas, que são fundamentais para
o processo de alfabetização, apresentaram um quantitativo
mínimo de 4,17%, insuficiente para auxiliar os alunos nesta reflexão.
Isto se torna ainda mais grave quando levamos em consideração
que esse é um livro que tem como propósito alfabetizar.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Historicamente
os livros didáticos têm se configurado em objetos de investigação
importantes, seja no que está relacionado às concepções
ideológicas geralmente veiculadas, seja na qualidade das atividades
propostas. A partir do advento do PNLD, esse material veio sofrendo alterações
e o uso de livros didáticos recomendados pelo PNLD tem sido priorizado,
inclusive, pelo próprio discurso oficial.
Assim, concluindo este trabalho, gostaríamos de levantar alguns
pontos no que se refere às atividades nos livros didáticos
e à opinião das professoras sobre este material.
Em relação aos livros didáticos de alfabetização,
a partir da análise do livro Letra, Palavra e Texto, observamos
que eles têm se preocupado, principalmente, em contemplar as discussões
sobre letramento, ao inserirem textos de variados tipos e gêneros.
Quanto às atividades de leitura, a indicação do contexto
de produção dos textos propostos para serem lidos, assim
como a exploração de estratégias de leitura, ainda
é pouco freqüente. Por se tratar de um livro de alfabetização,
é importante destacar que as atividades que possibilitam a apropriação
do sistema de escrita alfabético são reduzidas. Estes resultados
– que apontam para uma priorização da perspectiva
do letramento, em detrimento das atividades de reflexão sobre as
palavras, nos livros didáticos recomendados pelo PNLD – têm
sido apontados por outros estudos (MORAIS e ALBUQUERQUE, 2004).
O livro didático, na prática das duas professoras, era apenas
um material a mais que elas utilizavam no desenvolvimento do trabalho
de alfabetização, o que se relaciona com os resultados de
outras pesquisas (ALBUQUERQUE, 2002; BREGUNCI e SILVA, 2002; RIBAS, 2003;
NUNES-MACEDO, MORTIMER e GREEN, 2003). O que elas mais usavam do livro
eram os textos, o que foi observado, também, por Albuquerque (2002).
Assim, diferentemente das cartilhas, baseadas nos métodos tradicionais
de alfabetização (analíticos e sintéticos),
que eram usadas de forma seqüenciada e exaustiva por alfabetizadores,
de um modo geral, os novos livros não têm sido utilizados
na forma como, estrategicamente, os seus autores conceberam-nos. As professoras,
sujeitos da presente pesquisa, afirmaram criar táticas de uso desse
material, que rompiam com a seqüência proposta e com a realização
de todas as atividades do livro:
”A gente faz os planejamentos da gente baseado nas datas comemorativas.
Então, de acordo com as datas, a gente vai vendo tanto os nossos
materiais como os do livro. A gente vai vendo e complementando (...) Ele
é cheio de projetos e, aí, você trabalha tanto a questão
da alfabetização como das outras disciplinas. (...) Você
vai pegando o seu programa e vai conciliando, né?” (Professora
1).
A Professora
2 também apontou sobre a importância de complementar as atividades
presentes no livro didático:
“Ele (o livro didático) não traz esta questão
da decodificação, né?; do sistema alfabético.
Ele, praticamente, não trata, né? E, aí, a gente
tava sentindo necessidade disso. Ele é um livro que… Ele
começa já com projetos de trabalho, né? E os meninos
não conseguiam fazer. Eu precisei fazer outras coisas.” (Professora
2).
Ainda em
suas falas, ambas as professoras afirmaram gostar e usar o livro didático
Letra Palavra e Texto, mas também demonstraram compreender que
o ofício de um professor não pode estar centrado exclusivamente
em um material e que o uso do livro vai sofrer influência de vários
fatores e entre eles, as necessidades da prática:
“Eu também não tenho aquela expectativa, nem aquela
vontade de ter um livro ideal, porque eu acho que o livro é um
suporte do trabalho da gente e se o livro não tá dando certo,
usa dentro das coisas boas que ele traz e você completa com seu
trabalho, com atividades diferentes em sala de aula, o que você
acha que tá faltando, que tá deixando a desejar. Ele não
traz esta questão da decodificação, né? do
sistema alfabético; ele praticamente não trata (...) E,
aí, a gente tava sentindo necessidade disso (...) Os livros de
agora, muitos dão mais questão ao que se chama de letramento,
que é a seção, a função social da língua,
etc., e não se deparam que a criança tá tendo que
ter uma aquisição; ela tá formulando uma aquisição
do código alfabético; que ele tem normas cultas, tem normas
fixas, tem coisas que são explicadas e outras que são regras.
E eles não tão levando muito isso em conta. Por isso que
eu acho que um meio termo seria... “ (ela interrompe a sua fala)
(Professora 2).
As professoras,
sujeitos da presente pesquisa, criam táticas de uso desse material,
que rompem com a seqüência proposta e com a realização
de todas as atividades do livro. O mais interessante é perceber
que, na construção de suas práticas de alfabetização,
elas recriam as atividades propostas nos livros e acrescentam outras que
constituem suas práticas profissionais, como foi o caso específico
da Professora 1que, a cada texto lido, desenvolvia uma seqüência
de atividades de reflexão fonológica de palavras do texto.
Para esse processo de construção da prática envolvendo
a recriação das atividades propostas no livro, um ponto
que precisa ser destacado é o conhecimento/familiaridade que o
professor tem desse material. Se o livro escolhido pelo professor (aquele
sobre o qual ele tinha um certo conhecimento e via possibilidades de uso)
não foi o que chegou à escola, isso pode, de alguma forma,
dificultar o uso que o professor poderia fazer dele. Foi o que aconteceu
com a Professora 2, que somente no início das aulas é que
veio a conhecer o livro que iria usar e, mesmo assim, não teve
acesso ao manual do professor. Ela precisou de um tempo para entender
as propostas do livro e, muitas vezes, quando realizava atividades, estas
precisavam ser redimensionadas. Já Professora 1, como estava utilizando
o livro pelo segundo ano consecutivo, parecia ter uma segurança
maior e antecipava algumas dificuldades que seus alunos poderiam apresentar
no desenvolvimento de algumas atividades.
As duas professoras não possuíam o curso de pedagogia, o
que parece indicar que a formação inicial delas não
influenciava diretamente no desenvolvimento de práticas “inovadoras”
em alfabetização, de acordo com os novos referenciais teórico-metodológicos
para o ensino de língua portuguesa. Não estamos aqui defendendo
que a formação inicial em pedagogia não seja importante,
mas, sim, estamos apontando para a valia dessa formação
em constante reflexão com a prática.
Por outro lado, é importante destacar a ênfase que ambas
as professoras deram aos cursos de formação continuada.
Tanto Professora 2 quanto Professora 1 fizeram referências positivas
aos cursos de capacitação promovidos e ambas apontaram-nos
como momentos privilegiados de troca/construção de saberes:
“Estas sugestões (ainda se referindo aos livros sobre a prática
pedagógica) vêm basicamente da biblioteca da minha mãe,
das compras esporádicas que faço e das capacitações
da prefeitura (...). Eu acho que estes momentos de capacitações
são importantíssimos, agora, eu ainda acho que são
poucos, pouquíssimos. Acho que eles ajudam, e muito, e os que dão
oportunidade de ouvir e ser ouvido são os melhores” (PROFESSORA
2).
A professora
Professora 1 complementou:
“Eu acho as capacitações excelentes, com todas as
letras maiúsculas. Eu acho que a prefeitura de Recife, há
muitos anos, vem preparando os professores com muita capacitação
(...). Eles (os formadores) dão, realmente, coisas, para a gente,
muito interessantes, muito ricas, entendeu? Eu gosto demais. Elas SEMPRE
me ajudaram. Todas as capacitações, que eu vou, tem sempre
alguma coisa que me enriquece… e a troca de experiência com
os professores?! E… gosto que você registre isso, aí,
como o mais importante. A troca da gente é a coisa que a gente
aprende mais, porque você, nessas capacitações, quando
têm as oficinas, você fica louca! Eu mesma fico doidinha,
porque cada uma que tenha uma coisa diferente para lhe ensinar, entendeu?;
para lhe passar. Então, é riquíssima esta troca;
muito; eu aprendi muito, muito, muito, muito, muito com elas, com as colegas.
Realmente, a rede tem muitas professoras boas, com muito compromisso (...)”
(PROFESSORA 1).
As docentes
também lembraram que suas práticas são constituídas
de elementos de práticas de outros professores, coletados nos momentos
de socialização de experiências, como afirmado por
Professora 1 no depoimento anterior, ou em conversas informais, partilhadas
com colegas de trabalho. As experiências de outras professoras,
da época em que as docentes investigadas eram alunas, também
correspondiam àquelas presentes nas suas memórias. Professora
2, por exemplo, recordou que realizava, em sua sala de aula, atividades
de leitura desenvolvidas por antigas professoras:
“Eu tive uma professora de português, muito boa, chamada Rosário,
que me acompanhou várias séries. Então, ela gostava
muito de fazer crônicas. A gente lia várias crônicas
e discutia. Me lembro muito bem disso; foi uma coisa que me marcou muito!
Na 4ª série do primário – na época era
primário – a gente fez uma roda de leitura, que, depois,
eu vim a usar nas minhas salas de aula e cada aluno comprou um livro,
né? Não era o livro das bibliotecas da escola; cada um comprou.
Eu não me lembro [sic] o nome da coleção; e você
lia e tinha que emprestar para um colega. Então, nisso, eram 40
alunos na sala. A gente leu, se não os 40, mas, uns 30 livros;
20 por aluno, nesse esquema. Isso, eu me lembro bem que era assim, a recomendação
com o cuidado com o livro do colega, do não estragar, do não
riscar (...)” (PROFESSORA 2).
Professora 1 também afirmou sentir falta, atualmente, de algumas
atividades do tempo em que era aluna e que eram, freqüentemente,
realizadas por suas antigas professoras:
“Têm umas coisas que faziam, quando eu era aluna, que é
muito difícil fazer, hoje em dia. Difícil é ver um
professor botar um menino para ler em voz alta; e, no início, as
pessoas liam em voz alta, né? Eu acho a leitura em voz alta importante,
por causa da entonação, para você saber o que é
que você tá lendo; para a expressividade, porque quando você
tá lendo, pode ser um parágrafo um pouco grande, de uma
frase pouco grande. Então, a gente se preocupa até para
saber se vai ser uma interrogação; se tiver uma interrogação
você vai fazer uma pergunta, né?” (PROFESSORA 1).
Assim, concordamos com Chartier (1998) que os professores privilegiam
as informações que utilizam diretamente, o “como fazer”
mais do que “o porquê fazer” e seu trabalho pedagógico
se “alimenta”, freqüentemente, da troca de “receitas”,
coletadas em encontros ou, até mesmo, por acaso, e elas são
validadas pelos colegas com os quais se pode discutir sem embaraço
e que são relativamente flexíveis para autorizar variações
pessoais.
Por fim, consideramos importante refletirmos sobre as experiências
de leitura das professoras e sobre o como elas podem se relacionar com
suas práticas de ensino de leitura. Ambas as docentes vivenciaram,
desde a infância, práticas de leituras no ambiente familiar
e na escola. Relataram que as leituras ultrapassavam o livro didático.
Assim, de certa forma, essas experiências podem contribuir para
que tentem, com seus alunos, realizar atividades de leitura que extrapolam
o livro didático, com privilégio dos livros de literatura
infantil.
Dentre as suas experiências de leitura, ambas as professoras mencionaram
que, em relação à atualidade, realizavam leituras
profissionais e citaram alguns livros na área de Língua
Portuguesa e Alfabetização que se relacionavam com as perspectivas
teóricas contempladas nos documentos oficiais, como os Parâmetros
Curriculares Nacionais. Essas leituras eram sugestões dos cursos
de formação continuada (capacitações da rede
ou curso de extensão oferecido pela UFPE) ou de colegas de trabalho.
Assim, tanto Professora 2 como Professora 1, tentavam se manter atualizadas
e as leituras que faziam, juntamente com os cursos de formação
continuada que freqüentavam e as trocas com os colegas, pareciam
ter papéis fundamentais no desenvolvimento de uma prática
na perspectiva de “alfabetizar-letrando”.
Podemos concluir que as professoras afirmaram usar o livro como mais um
elemento constituinte de seu fazer pedagógico. Salientaram que
as trocas com as parceiras de trabalho foram importantes na construção
dos seus saberes na ação e que os cursos de formação
continuada exerceram papel importante no desenvolvimento de suas práticas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALBUQUERQUE
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de leitura por professores: o caso do Recife. 2002. 361 f. Tese (Doutorado
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BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições
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BATISTA, A. A. G. Um objeto variável e instável: textos,
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