Maria Nazaré da Cruz - Programa de Pós-Graduação
em Educação - UNIMEP
Introdução
Foi buscando compreender a linguagem da criança
pequena, em especial o seu papel no processo de elaboração
de conhecimento sobre o mundo, numa perspectiva histórico-cultural,
que me deparei com a sua dimensão imaginária. De maneira
geral, quando falamos de uma produção imaginária
referimo-nos a alguma coisa inventada, seja uma invenção
absoluta ou um deslocamento de sentido, onde símbolos já
disponíveis são investidos de novas significações.
Neste sentido, o imaginário separa-se do real, articulando-se no
simbólico. Por outro lado, quando falamos do processo de organização
do real, parece haver aí implicada uma idéia de organização
lógica, racional, categorial de objetos, eventos, ações
e relações. Mesmo na perspectiva de Vygotsky (1989), que
destaca o significado da palavra como unidade de interação
social e generalização, pode-se enfatizar o aspecto lógico-racional,
intelectual desse processo e do próprio significado.
No entanto, as relações entre o imaginário, o simbólico
e o real revelam-se muito mais complexas na fala da criança pequena.
A organização lógica ou categorial da realidade pode
ser considerada como apenas um dos aspectos, uma das facetas de um processo
extremamente rico, belo e intenso de descoberta do mundo pela criança.
Este processo comporta, sem dúvida, a inserção da
criança em modos culturalmente organizados de fazer, de dizer e
de pensar, mas que, nem por isso, deixa de implicar descoberta, criação,
originalidade.
De acordo com Vygotsky, é ao envolver-se em uma situação
imaginária, que a criança começa a agir numa “esfera
cognitiva”, deixando-se orientar pelos significados de objetos,
ações, situações e palavras. Isto implicaria
uma estreita relação entre imaginação e pensamento
sobre o real. Não se trata, no entanto, de simplesmente reafirmar
que no pensamento da criança pequena predomina uma tendência
lúdica, com explicações fantásticas para os
fenômenos do mundo, tendência esta que deverá desaparecer
à medida que a lógica e a racionalidade se impuserem. Ao
contrário, trata-se de procurar compreender os modos pelos quais
imaginação e pensamento se articulam, não como falta
(de lógica ou de razão), mas como produção
e criação de novos sentidos para a realidade.
Para tanto, apresentamos, neste trabalho, uma breve narrativa de uma criança
de três anos. Antes, no entanto, construímos algumas perspectivas
para a análise dessa narrativa, problematizando as relações
entre imaginário e linguagem, apoiados em autores como Vygotsky
e Castoriadis. Em seguida, analisamos como a criança parte da fala
do outro para construir a sua própria que, antes de ser mera repetição,
engendra outras e novas possibilidades de sentido. Abordamos sua narrativa
como criação da imaginação e, focando a linguagem
como criação/produção, argumentamos que o
imaginário a utiliza, não só para exprimir-se, mas
para existir enquanto tal. Ao final, destacamos algumas implicações
dessa abordagem para a compreensão do desenvolvimento da criança,
bem como desdobramentos referentes à sua educação.
As relações entre imaginação
e linguagem em Vygotsky e Castoriadis
Num dos textos em que discute o desenvolvimento da imaginação
na infância, Vygotsky (1987b) problematiza a controvérsia
entre as posições idealistas e materialistas sobre a questão.
Para ele, embora os associacionistas/materialistas tenham demonstrado
as reais bases da imaginação, a saber, a conexão
entre imaginação e impressões acumuladas na experiência
anterior, suas posições falhavam por não poder mostrar
como a imaginação representa estas impressões acumuladas
em uma forma inteiramente nova, em novas combinações. Já
os idealistas argumentavam que a imaginação criativa é
inerente à consciência, que produz formas a priori, sendo
a percepção uma forma de imaginação que constrói
imagens da realidade.
De acordo com Vygotsky, a controvérsia entre idealismo e materialismo
sobre o problema da imaginação poderia ser comparada à
controvérsia sobre o pensamento: seria a imaginação
uma característica primária da cognição, uma
característica a partir da qual todas as outras formas de atividade
mental se desenvolvem? Ou a própria imaginação deveria
ser entendida como uma complexa forma de consciência que surge sobre
a base de funções mais primárias? Em seu ponto de
vista, idealistas e materialistas falham na resolução dessas
questões porque abordam o problema metafisicamente, representando
a atividade da consciência como inerentemente reprodutiva.
Vygotsky (op. cit.) questiona também a idéia da imaginação,
presente em Freud e nos psicanalistas, como forma de consciência
da criança existente desde o início e que dá origem
à consciência da personalidade. Como conseqüência,
a consciência da criança desenvolver-se-ia como a consciência
de um sonhador: não havendo percepção da realidade,
sua consciência seria alucinatória. Da mesma forma, ele vê
no pensamento egocêntrico, tal como Piaget o concebe, a forma de
transição entre imaginação e pensamento sobre
o real. Na perspectiva piagetiana, inicialmente a criança não
diferencia entre impressões externas e internas, entre o eu e o
mundo e é apenas através de uma forma intermediária
de egocentrismo que a consciência da criança gradualmente
se desenvolve em direção à lógica do adulto,
ao pensamento adaptado ao real.
Neste quadro, a forma inicial de imaginação seria subconsciente,
diferindo do pensamento realista que é uma atividade consciente.
Além disso, o desenvolvimento realista da consciência relacionar-se-ia
ao princípio de realidade; a imaginação, ao princípio
do prazer. E o pensamento realista seria verbal e social, enquanto a imaginação
seria individual e não comunicável. Em resumo, em suas formas
iniciais, a imaginação é vista, numa perspectiva
idealista, como uma atividade subconsciente, como uma atividade condicionada
não pela cognição da realidade, mas pela obtenção
de prazer, como uma forma de atividade não-social e não-comunicável.
A visão vygotskiana sobre a imaginação opõe-se
a essas concepções, já que ele argumenta que, de
um ponto de vista biológico, é difícil imaginar que
o pensamento tenha surgido, filogeneticamente, primeiro, como uma função
servindo ao prazer e não como cognição da realidade.
Além disso, na criança, a obtenção de prazer
e satisfação está estreitamente relacionada com as
suas reais necessidades, satisfeitas em atividades reais, e esta é
a forma inicial da consciência.
A imaginação é, então, compreendida como uma
forma especificamente humana de atividade consciente que, enquanto base
de toda atividade criadora, manifesta-se em todos os aspectos da vida
cultural, possibilitando a criação artística, científica
e técnica.
Neste sentido, absolutamente tudo o que nos rodeia e que
tenha sido criado pela mão do homem, todo mundo da cultura, diferentemente
do mundo da natureza, tudo isto é produto da imaginação
e da criação humana, baseado na imaginação
(VYGOTSKY, 1987a, p.10).
Ao possibilitar a reordenação dos elementos
extraídos da realidade, organizando-os de maneiras novas, a imaginação
não se caracteriza como uma atividade oposta àquela de domínio
do mundo exterior, sendo ambas de natureza fundamentalmente social. Toda
a atividade humana que não se restrinja à reprodução
de fatos, impressões e ações, mas que cria novas
imagens, novas ações é resultado da imaginação.
A percepção - externa ou interna – seria, então,
a base da experiência do homem e o primeiro ponto de apoio para
a atividade da imaginação, que age dissociando as impressões
percebidas. Essa dissociação é, ao mesmo tempo, condição
necessária à atividade de criação e base do
pensamento abstrato. Os elementos dissociados são ainda modificados
pela atividade criadora, para compor com estes elementos modificados novas
associações, que se cristalizam como produtos da imaginação.
Imaginação e realidade estão, portanto, sempre estreitamente
relacionadas entre si, e de muitas formas. Nenhuma cognição
acurada da realidade é possível sem um certo elemento de
imaginação e, por outro lado, os processos de criação
artística ou de invenção demandam a participação
tanto da imaginação quanto do pensamento “realista”.
No entanto, não é possível identificar imaginação
e pensamento sobre a realidade, negligenciando tudo aquilo que os opõem.
O aspecto essencial da imaginação é
que a consciência afasta-se da realidade. A imaginação
é uma atividade da consciência comparativamente autônoma,
na qual há um distanciamento de qualquer cognição
imediata da realidade... Em níveis avançados no desenvolvimento
do pensamento, nós encontramos imagens que não são
encontradas de forma completa na realidade... Uma penetração
mais profunda da realidade demanda que a consciência alcance uma
relação mais livre com os elementos da realidade, que a
consciência saia dos aspectos aparentes e externos da realidade
que são dados diretamente à percepção (VYGOTSKY,
1987b, p. 349).
Este afastamento da realidade, próprio da atividade
da imaginação, parece ser explicado por Vygotsky a partir
do papel que ele atribui à linguagem. Para ele, o domínio
da linguagem representa um passo fundamental no desenvolvimento da imaginação
na criança, já que a fala possibilita-lhe libertar-se da
força das impressões imediatas, indo além de seus
limites. “A criança pode expressar em palavras algo que não
coincide com o arranjo preciso de objetos ou representações”
(VYGOTSKY, 1987b, p. 346), o que lhe confere uma grande mobilidade no
campo das impressões, bem como uma incomparável liberdade
em relação a ele. E é na brincadeira que, pela primeira
vez no desenvolvimento da criança, os objetos perdem sua força
determinadora e “é alcançada uma condição
em que a criança começa a agir independentemente daquilo
que vê” (VYGOTSKY, 1984, p.110), dirigindo seu comportamento,
não mais pela percepção imediata de objetos, mas
pelo significado da situação.
É através dos gestos e da linguagem que a significação
da situação imaginária se produz. Ou melhor, a própria
situação imaginária ganha forma quando um gesto ou
uma palavra transforma um objeto em outro, uma ação em outra,
produzindo novos sentidos. Ou ainda, é pela palavra que a criança
assume seu lugar, em relação ao outro, dando forma à
situação imaginária. É a palavra que, para
a criança, opera a mágica de transformá-la de filha
em mãe, por exemplo, em uma brincadeira de mamãe e filhinha.
Não basta agir como mãe: preparar comidinha, cuidar do outro.
É preciso chamar o outro de filho e ser chamada de mãe.
Pela palavra, a criança se afasta daquilo que é, construindo
um novo lugar para si e para o outro, criando uma situação
imaginária. A palavra é fundamental para que a criança
possa se orientar pelo significado da situação, transcendendo-a.
Vygotsky (1984, 1987b, 1994) se reporta, em diferentes momentos de sua
discussão sobre a imaginação, a estudos sobre a afasia
que demonstraram que certos pacientes eram incapazes de agir independentemente
da situação imediata (e dos estímulos sensoriais)
e de repetir frases que não correspondessem à realidade.
Para ele, isto seria uma evidência de que a liberdade em relação
ao contexto imediato e o desligamento das significações
em relação aos objetos, que se encontra nas crianças,
a partir de uma certa idade, e nos adultos, é resultado de um longo
processo de desenvolvimento. Além disso, indicariam que distúrbios
severos na capacidade de produzir e compreender a fala seriam acompanhados
de uma incapacidade do indivíduo de imaginar o que não está
vendo, de um declínio importante na imaginação e
na fantasia.
Tais apontamentos reforçam a idéia de imaginação
como distanciamento da realidade, como produção de imagens
que não existem na realidade, ou seja, como criação,
possibilitada graças ao poder da linguagem, que nos liberta do
imediato, do aqui-e-agora dos sentidos e das percepções.
Mas a criação, embora pressuponha a liberdade em relação
ao já dado, não pode ser totalmente explicada por essa liberdade.
Deste modo, se Vygotsky indica uma relação entre imaginação,
como criação, e linguagem, esta relação não
nos parece suficientemente explorada, explicitada, em suas formulações.
Na tentativa de estabelecermos uma possibilidade de melhor compreensão
dessa relação, no interior das concepções
vygotskianas sobre imaginação, linguagem e significação,
recorremos às formulações de Castoriadis sobre o
imaginário. Este autor trata das questões do imaginário
em sua dimensão social-cultural, em suas relações
com as instituições e o simbólico, particularmente
com a linguagem, mas também tematiza alguns pontos sobre sua dimensão
psicológica, subjetiva, individual como imaginação.
Em suas formulações, a capacidade produtiva, criativa do
imaginário é reconhecida como sua principal característica.
O imaginário de que falo não é imagem
de. É criação incessante e essencialmente indeterminada
(social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens,
a partir das quais somente é possível falar-se de ‘alguma
coisa’. Aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’
são seus produtos (CASTORIADIS, 1982, p.13).
Criação é a capacidade de fazer surgir
o que não estava dado, e a imaginação, a capacidade
de colocar uma nova forma – capacidades que são comuns a
todos os homens. Embora pressuponha uma certa indeterminação,
criação não é indeterminação.
É, antes, posição de novas determinações,
criação de novas formas. Um conjunto de determinações,
de leis, de possíveis e impossíveis é definido a
partir do momento em que a nova forma é colocada. Deste modo, as
sociedades, as obra e os indivíduos que surgem no decorrer da história
humana, são criações e não atualizações
de possíveis já postos. “Eles são criações,
a partir das quais aparecem novos possíveis que anteriormente não
existiam, pois eram privados de sentido” (CASTORIADIS, 1992, p.
87).
Para Castoriadis, é o imaginário social enquanto capacidade
criadora do anônimo coletivo, que cria a linguagem, as instituições,
os costumes. Mas a liberdade da sociedade para constituir seu simbolismo
não é absoluta: “o simbolismo se crava no natural
e no histórico (ao que já estava lá)” (1982,
p.152). Em sua perspectiva, a linguagem é, então, “uma
criação do coletivo anônimo, é o imaginário
instituinte, é o imaginário social” (CASTORIADIS,
1992, p. 91). Temos aqui uma complexa relação entre o imaginário
e a linguagem ou o simbólico de uma maneira geral: o imaginário
utiliza o simbólico, não somente para exprimir-se, mas para
existir enquanto tal; inversamente, o simbolismo pressupõe a capacidade
imaginária, a capacidade de ver em uma coisa o que ela não
é ou de vê-la diferente do que é. Castoriadis (1982)
encontra, então, uma raiz comum para o imaginário efetivo
e o simbólico: o imaginário radical, enquanto capacidade
elementar e irredutível de evocar uma imagem.
Esta proposição do imaginário radical como raiz do
simbólico coloca este último na posição de
produto do imaginário. Mas ao mesmo tempo em que o simbólico
origina-se do imaginário – é seu produto – ele
torna-se produção, à medida que é nele e por
ele que novas significações imaginárias são
criadas e encarnadas. A linguagem pode então ser compreendida como
imaginário instituinte /instituído: produto do imaginário
radical, a linguagem não é apenas meio de expressão
das significações imaginárias sociais, como é
ainda seu próprio modo de existência. Além disso,
as significações de uma sociedade são também
instituídas, direta ou indiretamente, em e por sua linguagem. Esta,
para Castoriadis, apresenta duas dimensões inseparáveis:
existe como língua, enquanto significa, enquanto se refere a um
magma de significações; e como código, enquanto organiza
e se organiza identitariamente.
A linguagem comporta, então, uma dimensão conjuntista-identitária
no que tange aos seus significados. Dito de outro modo, “as significações
são também constituídas, em parte, como código”
(CASTORIADIS, 1982, p. 282). Toda significação possui essa
dimensão lógica, mesmo as que não têm nenhuma
relação com o real ou o racional, concebidos de forma estrita.
No entanto, não é a lógica identitária–conjuntista
que tem domínio sobre a significação, “porque
uma significação, toda significação (...)
é essencialmente indefinida e indeterminada” (op. cit., p.283).
Esta característica do processo simbólico, de ser, ao mesmo
tempo, determinado e aberto, é aproximada, por Vargas (1999, p.
172), ao tratar da produção artística, à expressão
bifronte do deus romano Janus.
Conta-se que o templo da divindade romana dos bons começos
ficava orientado, na Roma imperial, no sentido leste-oeste, onde os dias
começavam e terminavam, e que tinha duas portas. Entre elas, encontrava-se
a imponente estátua de duas faces, uma velha e a outra jovem. Tal
como o deus romano, toda realização artística olha
simultaneamente para o nascer e o por do sol: sua face senil e serena
é expressão do ‘espírito do tempo’, prenhe
que está do momento histórico em que foi gerada; a outra,
jovial e enérgica, afirma novos valores, rompe com o sistema simbólico
predominante e funda novas redes imaginárias.
Assim, em Castoriadis, embora a escolha da linguagem por
uma dada sociedade seja sempre determinada “pelo que já estava
lá”, pelo sistema de significações já
constituído historicamente, ela é também aberta,
à medida que a própria linguagem permite e possibilita novas
articulações, novos sentidos e re-significações.
Se não podemos sair da linguagem, nossa mobilidade nela é
ilimitada e possibilita “tudo questionar, inclusive a própria
linguagem e nossa relação com ela” (CASTORIADIS, 1982,
p.153). Assim, nem o indivíduo nem a sociedade são totalmente
livres na constituição do simbolismo. Mas, embora tomem
sua matéria do que já existe, ou seja, da natureza e da
história, é possível – pelo simbólico
– engendrar o novo. “Por suas conexões virtualmente
ilimitadas, o significante ultrapassa sempre a ligação rígida
a um significado preciso, podendo conduzir a lugares totalmente inesperados”
(op.cit., p.147).
A narrativa da criança: imaginação,
linguagem e significação.
A criança, em suas narrativas, é mestra
em produzir o inesperado, a partir daquilo que conhece ou daquilo que
lhe é dito. Parte da fala do outro para construir a sua própria,
que, antes de ser repetição, engendra outras e novas possibilidades
de sentido.
Inês, aos três anos, durante o almoço,
acompanha uma conversa entre sua mãe e sua tia, que é professora
e conta que estava dando aula, quando um mosquitinho (e diz: “daqueles
pequenininhos”) entrou em sua boca. Neste ponto é interrompida
por Inês:
- Tem uma escola Mini-Mundo que é minha. Eu tava lá e entrou
um mosquitão bem grande na minha boca.
A mãe pergunta:
- E o que você fez?
- Eu matei ele. Peguei o negócio igual do alfaiate (fazendo gesto
de mata-mosca) e matei ele.
A tia, sem entender: “Pegou o quê?”. A mãe explica
que Inês estava se referindo a um mata-moscas e ao filme, que ela
havia assistido recentemente no vídeo, em que Mickey é o
alfaiate valente. A tia, então:
- Ah! Do filme do Mickey?
- É. Do gigante (...) O gigante é bem grandão, responde
Inês.
Inês, como a tia, também estava na escola,
“numa escola que é sua”. Assim começa sua história.
E, também como a tia, um mosquito entra em sua boca. Mas, o “mosquitinho
pequenininho” da tia transforma-se em um “mosquitão
bem grande”. Cessam aqui as semelhanças, que já são
também diferenças, entre a fala da tia e a da criança.
Ao transformar o “mosquitinho” em “mosquitão”,
novos sentidos emergem na fala da criança, remetendo a outras significações
e a outros aspectos da realidade. A criança continua a tecer sua
própria história, instigada pela pergunta da mãe.
Sua fala “peguei o negócio igual do alfaiate” remete
a um filme de animação, anteriormente assistido, e só
com referência a ele pode ser compreendida pela mãe e pela
tia. Como o valente alfaiate do filme, que primeiro mata as moscas e,
depois, o gigante, Inês mata o “mosquitão”.
Moscas e gigante, no filme: “mosquitão” bem grande,
em sua história, que se origina de e se opõe ao “mosquitinho
bem pequenininho”, da narrativa da tia. Criação da
imaginação, que se faz e que ganha forma pela palavra, no
confronto entre palavras, na articulação de múltiplos
sentidos. Toma seus elementos de simbolismos e discursos anteriores, já
constituídos, articulando novos e inesperados sentidos. Sua fala
condensa, aglutina, re-elabora imagens, sentidos, personagens, histórias,
discursos e produz/cria uma nova história, cujo sentido remete
a outras narrativas, embora não coincida com nenhuma delas.
A significação é um feixe de remissões intermináveis
a outra coisa, na visão de Castoriadis. Deste modo, a significação
da palavra é tudo o que pode ser socialmente dito, pensado, representado,
feito, a partir ou a propósito desta palavra. Para ele, o mundo
das significações é um magma. Não obstante,
a significação só é significação
na medida em que apresenta uma dimensão que permite apreendê-la
“como se fosse algo de definido e distinto”. Sem isso, não
seria possível saber de que falamos. Assim, no feixe de remissões,
de que se constitui a significação, cada uma delas chega
a algo que é origem de novas remissões. Contudo, a significação
está longe de ser um caos indiferenciado:
... Neste magma há fundições mais
espessas, pontos nodosos, zonas mais claras ou mais escuras, pedaços
de rochas. Mas o magma não para de se mexer, de dilatar e de baixar
o nível, liquefazer o que era sólido e solidificar o que
não era quase nada. E é porque o magma é assim, que
o homem pode se mover e criar no e pelo discurso, que ele não é
aprisionado para sempre por significados unívocos e fixos das palavras
que ele emprega – ou seja, que a linguagem é linguagem (CASTORIADIS,
1982, p.284).
Decorre disso que “uma significação
é indefinidamente determinável (e este indefinidamente é
evidentemente essencial) sem que isso signifique que ela é determinada”
(op.cit., p. 392). Assim, não podemos falar em um sentido próprio
da palavra, mas apenas num uso identitário do sentido. O que existe
é somente referência identitária, que nunca é
verdadeiramente isolável, nem efetivamente isolada do magma das
significações. A dimensão identitária da linguagem
só existe num sistema completamente formalizado que, portanto,
já não é linguagem. Se assim não fosse, tudo
o que é dito seria sempre repetição daquilo que já
havia sido dito, ou seja, estaria definido e determinado pela própria
linguagem.
Mas, na perspectiva de Castoriadis, a linguagem é sempre produção,
criação. E, nesta medida, só é linguagem porque
nela emergem constantemente novas significações. Não
é possível separar estes aspectos da significação:
a definidade e a indefinidade, a determinidade e a indeterminidade, a
distinção e a indistinção, a limitação
e a ilimitação. Em suma, o mundo das significações
não pode ser pensado como réplica do mundo real, como um
sistema hierárquico de conceitos, ou mesmo como um sistema de relações
que se aporiam a objetos e/ou sujeitos, de resto, completamente determinados:
“temos que pensá-lo como posição primeira,
inaugural, irredutível do social-histórico e do imaginário
social tal como se manifesta cada vez numa sociedade dada” (op.
cit., p. 413). A instituição da sociedade é, então,
instituição de um mundo de significações,
que evidentemente é criação. A própria natureza,
o próprio homem, enquanto ser vivo, é sempre retomado no
e pelo magma de significações que a sociedade institui,
sendo alterados em seu modo de ser por seu investimento pela significação.
Se retornarmos a Vygotsky buscando, em suas concepções sobre
a linguagem e a significação, a possibilidade de atribuir
à linguagem, além do poder de distanciamento do imediatamente
percebido, um caráter de criação, de produção,
talvez possamos redimensionar as questões das relações
entre imaginação e linguagem, a partir das perspectivas
abertas por Castoriadis.
Também para Vygotsky a significação não pode
ser reduzida à sua dimensão lógica. Embora a palavra
sempre generalize, sua significação não se completa
na generalização. Aliás, talvez nem sequer possamos
falar em “completude” da significação da palavra,
já que esta se apresenta como aberta ao contexto das interlocuções,
ao jogo das motivações, dos desejos, das tendências
e posições dos interlocutores. Vygotsky (1996) se pergunta
o que move os significados, o que determina seu desenvolvimento e encontra
resposta a essa questão no processo de alteridade da consciência.
O significado é móvel, aberto, incompleto e sua significação
se constitui, se transforma e só pode ser explicada pela/na interlocução.
É Bakhtin o autor que assume, de forma mais incisiva e explicita,
a dialogia como princípio explicativo central. Para ele, a significação
só pertence à palavra como traço da união
entre os interlocutores e, assim, a significação da palavra
não é fixa e determinada. Ao contrário, por trazer
a significação como marca da interlocução,
articula múltiplas vozes, sentidos e perspectivas. A significação
da palavra é, portanto, múltipla e polissêmica. Então,
para Vygotsky e Bakhtin, assim como para Castoriadis, a questão
da significação se resolve no falar, atividade dos homens
com e na linguagem.
A linguagem, assim concebida, reveste-se do caráter de criação,
de produção, que procurávamos encontrar na concepção
vygotskiana. E, por este caráter, pode provocar, pode mover criações
imaginárias, mesmo no momento em que a criança apenas começa
a se apropriar da linguagem. A criança brinca com as palavras,
tanto com sua dimensão sonora, quanto com os seus sentidos. Algumas
vezes, é como se as palavras lhe escapassem e a conduzissem –
“trabalhando por si” – a novos sentidos. A natureza
da palavra - não-transparente, polissêmica, aberta, não-determinada
- é que possibilita à criança a capacidade de criação
e de produção, reconhecida por Vygotsky, Bakhtin e Castoriadis.
Para todos eles, o homem é o homem produtor. Produtor das condições
de sua existência, das relações sociais, da história
e da cultura. Produtor de sistemas simbólicos, de linguagem, de
signos e de sentido. Produtor de si mesmo, na exata medida em que é
também produto das condições que cria. “Indivíduo
social”, para Castoriadis, é constituído/constituinte:
constituído na/pela sociedade, ao mesmo tempo em que a constitui.
Para Vygotsky, o homem – “personalidade social = o conjunto
de relações sociais, encarnado no indivíduo”
– torna-se o que é através do que produz para outros.
Para Castoriadis, o aspecto fundamental da natureza do homem é
justamente a capacidade, a possibilidade de fazer existir formas outras
de existência social e individual. Isto significa que há
pelo menos um ser “que cria alteridade, que é fonte de alteridade
e que se altera a si mesmo”. Ou seja, o que faz a essência
do homem é a imaginação criadora e não a lógica
e a racionalidade; a característica essencial do homem é
a imaginação e o imaginário social. Ele argumenta
que, da mesma forma que uma tribo selvagem, uma polis grega ou uma nação
moderna são o que são por suas instituições,
por aquilo que criam, também os homens – suas necessidades,
seus desejos e seus objetos – são o que eles próprios
fazem, inventam.
Vygotsky, ao propor, no manuscrito de 1929, uma psicologia concreta do
homem, defende idéia semelhante:
O mais básico consiste em que a pessoa não somente se desenvolve,
mas também constrói a si. Construtivismo. Mas “contra”
o intelectualismo (compare construção artística)
e o mecanicismo (compare construção semântica) (Vygotsky,
2000, p. 33).
Em que pese o fato do texto citado não ser suficientemente
explícito, podemos pensar nessa construção “artística
e semântica” como algo que se faz no campo do simbólico
e do imaginário, como nos aponta Pino (2000). E é esta centralidade
do simbólico e do imaginário o que abre possibilidades interessantes
para repensarmos a questão da elaboração de conhecimento
sobre a realidade pela criança, bem como a questão da direcionalidade
de seu desenvolvimento, já que ela não permite que nem uma,
nem outra sejam reduzidas à perspectiva da lógica e da racionalidade.
Considerações finais
Alguns desdobramentos podem ser suscitados por essas reflexões,
mas indicarei apenas um dos que considero mais relevante para a educação
infantil: a importância do processo de desenvolvimento da imaginação
na criança em contraposição à normatização/disciplinarização
a que é submetida, em especial na escola, pela instituição
social do pensamento como razão.
Conhecimento e imaginação não são opostos.
Se o conhecimento de mundo elaborado pela criança lhe provê
as bases sobre as quais constrói o seu “edifício da
fantasia”, ele não prescinde da imaginação
no processo mesmo de sua elaboração. O conhecimento do mundo
não é obra só da razão. Implica operações
da lógica e da racionalidade que, no entanto, por si mesmas não
podem dizer o que será conhecido e para quê e, muito menos,
qual o sentido das regularidades que elas encontram.
Como nos lembra Vygotsky:
As conexões internas que existem entre imaginação
e pensamento sobre o real levam-nos a um novo problema associado à
volição ou à liberdade na consciência e na
atividade humana. O potencial para a ação livre (...) é
estreitamente conectado com a imaginação, com o cenário
psicológico único da consciência frente a frente com
a realidade, que é manifestado na imaginação. Então,
interconectados neste único nó, nós encontramos três
dos maiores problemas da psicologia contemporânea, e particularmente
da psicologia da criança contemporânea: o problema do pensamento,
o problema da imaginação e o problema da vontade (1987b,
p. 349).
Diríamos, ainda, que estes problemas são
também problemas da educação de nossas crianças,
que tem se constituído em império do cognitivismo. Em nossas
escolas, o pensamento está instituído como razão.
Os “para quês” e sentidos do conhecimento, e todas as
construções imaginárias aí implicadas, via
de regra, permanecem à margem do processo educativo da criança.
Os aspectos cognitivos da elaboração de conhecimento, parecem
estar sendo privilegiados, em detrimento dos seus aspectos éticos
e estéticos, que a relação com a imaginação
põe em evidência. Busca-se conter a imaginação,
disciplinando-a, o que talvez produza, entre outras coisas, um saber (saber?)
que se constitui pela lógica ou pela repetição e
que passa ao largo de motivações, desejos e necessidades
das crianças - que, afinal e sempre, são crianças
que vivem - “na carne” - relações com o mundo
e a cultura.
Referências bibliográficas
BAKTHIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São
Paulo, Hucitec, 1990.
CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginária da Sociedade.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
CASTORIADIS, C. A Criação Imaginária. Porto Alegre,
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