Eliane Santana Dias Debus - UFSC e UNISUL
Os critérios de seleção para escolha e aquisição
do livro literário destinado a crianças levam em consideração,
na maioria das vezes, os estágios de desenvolvimento infantil,
obedecendo à faixa etária ou à faixa escolar do leitor.
No caso da criança pequena (0 a 6 anos de idade), existem algumas
especificidades nos critérios que orientam o acesso e a escolha
dos livros para esse público. Este texto apresenta um levantamento
dos critérios mais adotados na escolha do livro literário
para as crianças, e, para isso, dialoga-se com vários estudiosos
da área da Educação, da Literatura e da Psicologia,
apontando os critérios mais recorrentes. Para melhor compreensão,
fez-se um levantamento das estratégias utilizadas por dez empresas
editoriais, analisando a apresentação e os critérios
adotados para a seleção de livros em seus catálogos
de Literatura Infantil do ano 2000 . Observa-se, a partir desse levantamento
e de sua análise, as concepções que norteiam e significam
o estatuto desse leitor e as práticas de leitura literária
no espaço da Educação Infantil.
Para iniciar as reflexões, gostaria de trazer as primeiras linhas
de “Canteiro de Obras”, de Walter Benjamim , escrito no final
década de 20 do século passado:
Meditar com pedantismo sobre a produção
de objetos – cartazes ilustrados, brinquedos ou livros – que
devem servir às crianças é estúpido. Desde
o iluminismo isto constitui uma das mais rançosas especulações
dos pedagogos. A sua obsessão pela psicologia impede-os de perceber
que a terra esta repleta dos mais incomparáveis objetos da atenção
e da ação das crianças.
As palavras de Walter Benjamin parecem ainda muito vivas e trazem à
tona a sempre discutida temática dos critérios de seleção
de livros para crianças e a influência da psicologia nesse
setor.
Nossa intenção neste texto é apresentar os critérios
adotados para a seleção de livros infantis destinados aos
pequenos leitores, ou seja, as crianças que estão entre
os 0 e 6 anos. A escolha desse período de vida dá-se por
dois motivos que julgamos fundamentais: o primeiro está assentado
no pressuposto de que essa criança ainda não está
no espaço escolar enquanto aprendizagem sistemática das
regras lingüísticas, e o segundo em sua condição
de leitora em formação. Ambos estão inter-relacionados
e desenham uma condição de leitura para essa criança.
A Psicologia do Desenvolvimento contribui para instituir conceitos que
“demarcam a natureza e o lugar social dos sujeitos” , seguindo
à risca os estágios/etapas de desenvolvimento ou a idade
cronológica – segmentando, classificando, ordenando as fases
de crescimento – e introduz uma idéia de homogeneidade e
linearidade, ou seja, a criança é vista como sujeito a-histórico.
Dessa forma, não vislumbra a criança em relação
com seu contexto social e cultural, no seu tempo presente, como sujeito
que modifica e é modificado, que tece as tramas do tecido-vida
e é por ele tecido.
Como observa Solange Jobim , a Psicologia do Desenvolvimento atua “ora
como reguladora disciplinar da trajetória de vida, ora como legitimadora
dos hábitos que formam o perfil psicológico do futuro consumidor”.
Nesse ponto poderíamos dizer que o instrumental teórico-científico
acaba por ditar regras, o que, segundo Jobim , “funcionou e ainda
funciona a serviço das necessidades da sociedade atual de submeter
o homem ao mais estrito controle, adaptando-o a uma sociedade regulada
e planificada pelas regras do consumo do mundo pós-industrial”.
Não gostaríamos de desapropriar os méritos e as contribuições
que as “psicologias” do desenvolvimento têm realizado
no campo das reflexões sobre infância, mas permitir um olhar
mais cuidadoso, com seguimentos por vezes muito rígidos que levam
a um contra-senso. Entre os muitos produtos culturais que são dirigidos
às crianças pequenas, e categorizados por regras para seu
uso, gostaríamos de nos deter no Livro Infantil.
Os estudiosos e os critérios de seleção
nos livros infantis
Exemplo recente está nos critérios adotados
pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil para
selecionar os 106 títulos de Literatura Infantil e Juvenil que
fariam parte do acervo de 36.000 escolas públicas das primeiras
séries do Ensino Fundamental através do Programa Nacional
de Biblioteca da Escola (PNBE) – 1999. O princípio norteador
da seleção apoiou-se em estudos anteriores da FNLIJ, que
abarcavam o período de 1964 a 1978, contemplando as diferentes
fases do crescimento da criança e os diferentes níveis de
leitura e interesse – a sucessividade das fases leva ao amadurecimento
do leitor, eis a lei que rege esses critérios. O quadro correspondente
ao estatuto leitor e ao tipo de leitura é o seguinte: pré-leitor
– fase de conhecimento do mundo circundante; leitor-iniciante –
projeção da criança no mundo; leitor com alguma habilidade
de leitura – identificação com pessoas e coisas; leitor
fluente – formação de uma atitude crítica e
de um pensamento reflexivo.
Com pequenas modificações vocabulares, o mesmo quadro, acrescido
da faixa etária, é desenvolvido por Nelly Novaes Coelho.
A Psicologia Experimental é a base sobre a qual a autora desenvolve
seu raciocínio, apostando, embora a “evolução
biopsíquica possa divergir”, numa igualdade entre natureza
e seqüência e entre estágios nas crianças e adolescentes.
A categoria leitora não está vinculada somente à
faixa etária, mas há três fatores: “idade cronológica,
nível de amadurecimento biopsíquico-afetivo-intelectual
e grau ou nível de conhecimento/domínio do mecanismo da
leitura”. A autora faz a seguinte divisão: 1) pré-leitor:
a) primeira infância – dos 15/17 meses aos 3 anos; segunda
infância – a partir dos 2/3 anos; 2) Leitor iniciante –
a partir dos 6/7 anos; 3) Leitor-em-processo – a partir dos 8/9
anos; 4) leitor fluente – a partir dos 10/11 anos e 5) leitor crítico
– a partir dos 12/13 anos.
Para Betty Coelho , devem ser respeitadas as peculiaridades e os estágios
emocionais das crianças na escolha dos livros. “Alimento
da imaginação”, as histórias precisam respeitar
a “estrutura cerebral” infantil. A autora faz um quadro demonstrativo
de interesses, no qual divide os leitores em pré-escolares e escolares.
O primeiro, que nos interessa especificamente, fica assim projetado: pré-escolares:
a) até 3 anos – fase pré-mágica. A autora aconselha
os seguintes tipos de narrativas: histórias de bichinhos, brinquedos,
objetos, seres da natureza (humanizados), história de crianças;
b) 3 a 6 anos – fase mágica. São indicados os seguintes
tipos de narrativas: histórias de repetição e acumulativas,
histórias de fadas.
Richard Bamberg caracteriza as cinco fases de leitura seguindo as definições
de Schliebe-Lippert e A. Beinlich: De 2 a 5 ou 6 anos – idade dos
livros de gravura e dos versos infantis, fase de integração
pessoal; de 5 a 8 ou 9 anos – idade do conto de fada, leitura de
realismo mágico; de 9 a 12 anos – idade das histórias
ambientais, leitura relacionada com acontecimentos vivos; de 12 a 14 ou
15 anos – histórias de aventuras; de 14 a 17 anos –
a fase da maturidade: o leitor estaria desenvolvido esteticamente.
Glória Pondé leva em conta as seguintes fases do crescimento,
que poderão colaborar na “adequação”
entre obra e leitor: na primeira fase, o livro deve proporcionar ao leitor
o conhecimento do mundo que o rodeia; segue-se a leitura projetada ou
psicológica, que proporciona ao leitor a liberação
de seus medos interiores, exemplificada pelos contos de fadas e contos
folclóricos; a terceira fase corresponde à identificação
com personagens; na quarta e última fase, a literatura deve proporcionar
uma visão crítica do mundo.
Maria Antonieta Antunes Cunha, por sua vez, baseada na psicologia evolutiva,
considera três fases: a do mito, de crianças de 3/4 a 7/8
anos de idade, com o predomínio da fantasia, colaborando para ela
leituras de contos de fadas, mitos, lendas e fábulas; a segunda
fase corresponde ao conhecimento da realidade, dos 7/8 a 11/12 anos, com
o romance de aventura em tom de verossimilhança; a última
fase, dos 11/12 anos até a adolescência, é a do pensamento
racional .
As autoras Terezinha Cassanta e Gládis E. Kaecher fazem um levantamento
específico dos interesses das crianças de 0 a 6 anos. A
primeira autora destaca as seguintes especificidades nos critérios
de escolha do livro: a partir dos 10 meses aos 2 anos – livros à
prova de brincadeiras (plástico, pano ou cartonados); dos 2 aos
3 anos, fase do aqui e agora – “ a criança é
essencialmente egocêntrica” . Sugere histórias que
se relacionem com seu mundo concreto; 4 anos, histórias com transportes,
animais e representação de crianças; 5 anos, fenômenos
físicos: dia, noite, sol, chuva, natureza. Fase do interesse e
curiosidade.
A autora aconselha evitar a narrativa de contos de fadas antes dos 7 anos,
pois “estas histórias confundem a criança, não
porque sejam infiéis ‘à realidade, pois a criança
também o é, mas porque não se relacionam com coisas
que ela tenha vivido em primeira mão e não se esforçam
por apresentar o mundo de acordo com as relações que a própria
criança estabelece”.
Já Gládis E. Kaecher realiza a seguinte diferenciação
nas fases da Educação Infantil: 0 a 2 anos – livros
de borracha, livros de pano, livro-brinquedo para aproximar a criança
do objeto livro; 2 anos – livros com narrativas curtas, poucos personagens
e enredos curtos, grandes ilustrações que auxiliem a criança
a narrar a história sem ajuda; 3 anos – contos de fadas;
4 a 6 anos – lendas e narrativas mais longas e poesias.
A flexibilidade é uma palavra recorrente no discurso de todos os
indicadores. Observa-se um cuidado quase que imperceptível para
que não se generalizem as informações, que podem
diferenciar-se de indivíduo para indivíduo segundo fatores
internos e subjetivos e externos. Essas informações, portanto,
devem ter a função de orientar, não de enquadrar
as crianças e jovens num receituário padronizado de desenvolvimento.
A recorrência à psicologia do desenvolvimento remete a seu
principal representante: Piaget. Para ele, os processos de desenvolvimento
estão ligados aos processos maturacionais, ou seja, a aprendizagem
só se concretiza em função do desenvolvimento ou
maturação do indivíduo. Orientada por essa concepção,
a criança não deve receber informações além
de sua capacidade de desenvolvimento, haja vista não estar preparada.
Já Vygotsky considera a aprendizagem formal e informal como processo
decisório para o desenvolvimento das atividades cognitivas, rejeitando
a idéia de estágios comuns a todos os indivíduos,
pois, na sua concepção, a aquisição social
precede a aquisição cognitiva. Levanta assim as características
dos dois níveis de desenvolvimento mental na criança: o
real e o potencial. O primeiro diz respeito à atividade que as
crianças podem desenvolver, independentemente do adulto e de mediações
de terceiros, pois se refere às funções que já
amadureceram; para o segundo, o nível de desenvolvimento potencial,
a criança necessita da mediação ou de interferências
de terceiros para solucionar algum problema, e diz respeito àquelas
funções que ainda estão em processo de maturação.
A zona de desenvolvimento proximal, um dos conceitos principais dos estudos
de Vygotsky, corresponde à distância entre os dois níveis.
Assim, não será desejável voltar-se somente para
as funções psicológicas desenvolvidas, mas também
para as funções psicológicas emergentes.
Refletindo sobre esse prisma, esfacela-se a idéia de leitura voltada
somente para as potencialidades já alcançadas das crianças,
emergindo uma nova postura: a criança é capaz de ir além
do seu comportamento costumeiro, possibilitando a leitura de livros que
a despertem para o novo, para o não-conhecido, tanto no que diz
respeito à temática quanto à linguagem.
Os catálogos das editoras trazem indicações etárias
ou por série escolar, e isso acaba tornando-se uma faca de dois
gumes, pois considera todas as crianças de uma idade determinada
aptas a um tipo de leitura, sob o mesmo padrão de desenvolvimento,
desvinculando o sujeito infantil do mundo em que está inserido.
Os catálogos editoriais
As empresas editoriais brasileiras, em especial aquelas
que trabalham com uma linha editorial voltada para o público infantil
e juvenil, utilizam-se da mediação dos catálogos
na divulgação de suas obras. Os catálogos editoriais
cumprem o papel de comunicar aos professores o conjunto de publicações
da editora. A expansão dessa indústria cultural levou os
produtores a desenvolverem uma infinidade de estratégias que buscam
validar a importância da escolha e adoção de determinada
obra e, em contrapartida, orientar o professor sobre a sua utilização.
Apresentamos o levantamento das estratégias utilizadas por dez
empresas editoriais – Ática, Ediouro, Melhoramentos, Moderna,
FTD, Dimensão, Brinque-Book, Scipione, Global e Atual –,
observando-se a apresentação e os critérios adotados
para a seleção de livros em seus catálogos de Literatura
Infantil do ano 2000.
Os catálogos apresentam pontos comuns, que são seguidos,
em regra, por quase todas as outras editoras brasileiras. Eles apresentam
em formato reduzido a fotografia da capa do livro que recomendam (respeitando
o colorido da imagem); comunicam a autoria do texto e da ilustração;
indicam o número de páginas do livro; trazem um pequeno
resumo da narrativa; sintetizam em uma ou duas palavras a temática
que envolve a narrativa e buscam destacar os assuntos que fazem relação
com os temas transversais, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais:
Ética, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Saúde
e Pluralidade Cultural.
Os títulos e autores são organizados por temáticas
em séries e coleções, muitas vezes reunindo títulos
menos qualificados com outros melhores, fazendo com que os primeiros tenham
um público consumidor pela demanda dos segundos, conforme observa
Marisa Lajolo : “os pacotes são emblema da necessária
racionalização do processo de produção”.
A par das semelhanças estéticas na apresentação
dos títulos, existem pontos diferenciadores que merecem ser destacados
e que colaboram, sem dúvida, para que se visualizem de forma mais
nítida as relações estabelecidas e o programa seguido
para o atendimento dos pequenos leitores.
A editora Ática apresenta seus títulos orientando-se pelo
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Assim, eles são
classificados de acordo com as seguintes categorias: brincando com o livro
(iniciação ao mundo da leitura); lendo para aprender a ler
(fase de pré-alfabetização e alfabetização);
aprendendo a ler o mundo e a se conhecer (estímulo à observação
e à auto-expressão); lendo e ouvindo poesia (fruição
lúdica); lendo e ouvindo histórias (experiência com
a língua escrita); lendo e pensando sobre a vida (reflexões);
narrativas tradicionais I e narrativas tradicionais II; lendo para se
divertir: o humor; lendo para se divertir: a aventura, e trabalhando com
os temas transversais.
A editora Moderna apresenta uma classificação de “categorias
de leitor” desenvolvida por Nelly Novaes Coelho, que traz a idade
correspondente a cada categoria e a cada série escolar: pré-leitor
(2 a 5 anos), período anterior à alfabetização,
com a descoberta do livro através de imagens e objetos-livros;
leitor iniciante (a partir de 6/7 anos – pré e 1a. e 2a.
séries), quando se torna aprendiz do código escrito e da
leitura; leitor em processo (a partir dos 8/9 anos – 3a. e 4a. séries),
com o domínio relativo da leitura; leitor fluente (a partir de
10/11 anos – 3a. e 4a. séries), com a consolidação
do domínio da leitura, e leitor crítico (a partir dos 12/13
anos), com o domínio total da leitura.
A editora Dimensão e a Global utilizam como referência a
idade cronológica e a idade escolar. A primeira, embora apresente
um discurso introdutório que traz o leitor-bebê (0 a 3 anos),
em nenhum momento do catálogo aponta livros para esse grupo leitor;
os livros são indicados a partir da pré-escola (3 a 6 anos).
A editora Brinque-Book faz a seleção de seus títulos
pela idade cronológica do leitor. As divisões são
um pouco estranhas, ficando assim: 2 a 9 anos; 2 a 7; 6 a 9; 6 a 12; 3
a 7; 6 a 8; 8 a 10; 8 a 12; 4 a 7; 5 a 7; etc. Talvez por isso, como veremos,
essa editora é uma das que mais contempla a criança pequena
na indicação total de seus títulos.
As editoras Ediouro, FTD, Scipione, Melhoramentos e Atual utilizam a série
escolar como critério na seleção dos títulos,
isto é, dividem-nos em Educação Infantil e Ensino
Fundamental (1a. a 4a. série); as duas primeiras dividem o Ensino
Fundamental em 1o. Ciclo (1a. e 2a. séries) e 2o. Ciclo (3a. e
4a. séries). E a Atual só faz referência ao leitor
que está nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Do total de 598 títulos da editora Ática, 154 são
indicados às crianças da Educação Infantil,
e dos 147 títulos da Ediouro, 53 são indicados a esse nível
de ensino. Dos 186 títulos da Melhoramentos, 34 são indicados
às crianças pequenas. Do total de 300 títulos da
Moderna, 85 são indicados às crianças da Educação
Infantil. Do total de 191 títulos da FTD, 31 são indicados
para os pequenos. Dos 175 títulos da Dimensão, 30 são
indicados a crianças que estão na pré-escola, juntamente
com a recomendação para aqueles que estão na 1a.
série. Dos 130 títulos da Brinque-Book, 78 são destinados
à Educação Infantil. Dos 307 títulos da Scipione,
são indicados 82, e dos 98 títulos da Global, 10 são
indicados. Dos 85 livros da Atual, nenhum título é indicado
para a Educação Infantil.
Constatou-se que somente a Ática e a Moderna fazem a subdivisão
ao apresentar os livros para crianças pequenas: na Ática,
dos 154 títulos recomendados, 36 livros são para crianças
a partir do maternal e 118, a partir da pré-escola. Desses 36,
4 são livros de panos (para criança até 2 anos),
13 livros-brinquedos (a partir de 1 ano) e 10 somente de imagens. Os demais
títulos apresentam textos curtos com letras graúdas, e alguns
possuem uma cartonagem mais resistente. Os textos destinados a crianças
a partir do pré-escolar se caracterizam por narrativas curtas e
com muita imagem.
A Moderna apresenta 85 títulos para os pré-leitores; para
as crianças que estão entre 2 e 5 anos de idade são
indicados 10 títulos que apresentam somente imagens. São
indicados 75 títulos às crianças de 6 anos, inseridas
na categoria leitor iniciante, obras essas também indicadas a crianças
de 1a série. Não é apresentado nenhum título
individual para a pré-escola, porém são indicados
outros títulos ao leitor iniciante que não contemplam os
leitores de 6 anos.
Na seleção dos títulos para as crianças pequenas,
as editoras ora apresentam um tipo de gênero, ora outro, a seu critério,
sem maiores explicações do porquê da escolha de um
gênero em detrimento de outro. Os contos de fadas são um
exemplo – a Ática apresenta para o leitor da 2a. série
as suas coleções dos contos dos Grimm, Andersen e Charles
Perrault, embora faça uma indicação paralela que
no próximo parágrafo comentarei; a Ediouro apresenta os
contos de fadas como leitura viável para crianças pequenas
nos “Contos para todas idades”; a Melhoramentos não
possui contos de fadas na sua relação, mas as lendas indígenas
e contos africanos são indicados para leitores de 3a. e 4a. séries;
a Moderna, em sua belíssima coleção Clássicos
infantis, que reúne os contos clássicos recontados em versos,
indica-os para o leitor iniciante e o leitor em processo. No entanto,
sinaliza que são dirigidos para as crianças de 1a a 4a série,
excluindo a criança de 6 anos.
A indicação dos títulos pela faixa escolar adotada
pela editora Ática apresenta uma flexibilidade que à primeira
vista é contraditória, pois coloca duas informações
– a de série, que vem de forma destacada, e a de faixa etária,
que aparece de forma indicativa abaixo do título de cada coleção.
Vejamos como exemplo os livros que abarcam a fruição lúdica
(Lendo e ouvindo poesia): são apresentados 11 títulos, que
obedecem a duas orientações – uma em destaque, que
recomenda livros para crianças a partir da 1a série, e outra
menor, que indica as obras para crianças a partir de 4 anos. As
duas informações aparecem durante todo o catálogo,
e, do total dos 598 títulos, somente 26 estão no campo exclusivo
de leitores a partir de 7 anos.
Tal fato é decorrente, a meu ver, do enfrentamento com o novo.
Isto é, a editora, que até então primava exclusivamente
pela classificação etária e pela faixa escolar, agora
destaca a flexibilidade das indicações, entendendo a participação
leitora ativa da criança pequena pela mediação do
adulto – o professor –, e isso se deve, sobretudo, às
exigências oriundas do Referencial Curricular para a Educação
Infantil , como pode ser constatado no seguinte trecho:
A criança que ainda não sabe ler convencionalmente
pode fazê-lo por meio da escuta da leitura do professor, ainda que
não possa decifrar todas e cada uma das palavras. Ouvir um texto
já é uma forma de leitura. É de grande importância
o acesso, por meio da leitura do professor, a diversos tipos de materiais
escritos, uma vez que isso possibilita às crianças o contato
com práticas culturais mediadas pela leitura.
A análise dos catálogos permite verificar
que o mercado editorial visa a um público leitor específico,
aquele que domina o código escrito, não contemplando o professor
como mediador, já que restringe a leitura das crianças de
0 a 6 anos a poucos títulos. Porém algumas transformações
vêm ocorrendo, mesmo que lentamente, apontando para uma flexibilidade
e multiplicidade de títulos e temas para as crianças pequenas,
a fim de que elas não fiquem circunscritas a um mundo de imagens
e letras garrafais.
Não ouso desprezar a linguagem iconográfica, mas ela não
pode adquirir foro de critério de seleção, pois muitos
títulos que o professor poderia mediar são descartados por
sua construção, como os textos longos e com poucas ilustrações.
Ao professor cabe o papel de interceptar esses textos, lê-los e
trazê-los à criança pela oralidade, dissipando, assim,
a questão da faixa etária. Exemplo disso são os contos
de fadas, que não entram na listagem de zero a seis anos de muitas
editoras e freqüentemente são usados pelo professor, o que
demonstra que o problema não está no tamanho do texto e
sim no conhecimento do texto, pois essas narrativas provavelmente fazem
parte do repertório literário do professor, que traz para
as crianças um texto já seu conhecido e que não exige
maior assimilação do enredo para narrá-lo.
Uma das fontes de consulta para orientação do professor
na seleção do livro literário são os catálogos
das editoras. Embora seu fim seja o comercial, apresentam ao consumidor
toda a produção da editora para a infância, possibilitando-lhe
uma relação de proximidade, mesmo que fugaz, com títulos
e autores. Porém, as crianças de zero a seis anos ficam
submetidas a um pequeno número de títulos, como se inexistissem
livros literários para Educação Infantil. Uma constatação
fica evidente: esses catálogos priorizam, na maioria das vezes,
as crianças alfabetizadas, aquelas que têm o domínio
do código lingüístico. Assim, as crianças da
Educação Infantil, em especial as que ainda não desvendaram
os segredos das letras, ficam submetidas, segundo esse referencial, a
livros de imagens, de pano, de plástico e outros materiais mais
atrativos que literários. Às crianças da pré-escola
são sugeridos títulos em que prevalecem a imagem e as narrativas
curtas com letras em caixa alta.
Ora, sabe-se que os catálogos têm por fim apresentar ao professor-adulto
o número de títulos que a editora oferece para que o professor
trabalhe com a criança-criança. A palavra “criança”
recebe aqui a sua verdadeira conotação, pois uns dos critérios
de apresentação e seleção do livro encontra-se
na série escolar do leitor. A contradição reside
exatamente nisso, pois a orientação se direciona ao professor,
sem, no entanto, contemplar a sua posição de mediador da
leitura literária e sem considerar as crianças que não
dominam o código escrito.
Creio que um dos problemas das editoras e de muitos estudiosos que refletem
sobre a literatura infantil esteja em obedecer a uma psicologia evolutiva
ou a uma exposição conteudística das divisões
por série ao fazerem a ponte entre o texto e o leitor. É
necessário, no entanto, pensar que a criança de zero a seis
muitas vezes ainda não decodifica o código lingüístico,
e que ela se faz leitor e se apropria da leitura pela mediação
do professor. Desse modo, todos os livros de uma determinada editora,
ou quase todos (aí entram questões morais e pedagógicas
que cabem ao professor discernir), podem adentrar na Educação
Infantil através do ato de contar histórias, pelo olhar
e pela voz do professor.
No período que antecede o domínio do código escrito,
a imagem auxilia na leitura e dá à criança a sensação
de estar construindo a história. A história do livro de
imagens no Brasil é recente o que não desmerece a qualidade
desse acervo. Marcado pela ironia do destino o primeiro livro brasileiro
só de imagens, de autoria do artista plástico catarinense
Juarez Machado, denomina-se Ida e volta. Título sugestivo pelo
próprio percurso que o livro seguiu. Desenhado no último
ano da década de sessenta o seu criador não encontrou receptividade
das editoras brasileiras, descrentes da existência de leitores para
um livro composto só de gravuras.
Em 1975 o livro ganha asas, ou melhor, editoras. A primeira publicação
foi o resultado de uma co-edição Holanda/Alemanha, seguidas
de edições paralelas em outros países como França,
Holanda e Itália. No Brasil, o livro chega ao público em
1976, pela editora Primor, depois de vencer a barreira de publicação
somente em países do exterior.
Esse exemplo demonstra o quanto recente é a consciência da
importância da ilustração nos livros infantis e o
descrédito de consumo em relação a uma obra que traga
em suas páginas somente a linguagem pictória, mesmo que
constituída de uma narrativa seqüêncial. As editoras,
raras exceções, não divulgam a técnica utilizada
pelo ilustrador. Para o leitor infantil fica fácil de identificar
técnicas próximas ao seu cotidiano, como lápis de
cor, recorte e colagem; outras, no entanto, por sua complexidade mereceriam
mais atenção do editor que deveria, por respeito ao público
consumidor, nomeá-las, o que não acontece.
O descaso com a ilustração é visível em particular
quando um livro infantil é citado bibliograficamente, pois na maioria
das vezes a menção do ilustrador não figura como
participante desse processo, restando somente a referência ao criador
da narrativa escrita.
Segundo Nelly Novaes coelho, o livro para crianças com predomínio
exclusivo da imagem é propagada de forma especializada na Europa
Central entre 1929 e 1931 por Pane Fancher. Imbuído dos princípios
escolanovistas os livros são projetados para tornar a criança
leitora participativa do seu processo educacional, através dos
livros “álbum de figuras/ álbuns du Père castor”
que pudessem “tocar diretamente a imaginação e a inteligência
das crianças”. Primeiramente a produção editorial
deteve-se a álbuns-jogos e progressivamente o “elemento literário”
foi incorporado com o intuito de que a linguagem iconográfica e
a verbal formassem um par perfeito.
Contudo, a linguagem iconográfica acabou ganhando foro de critério
de seleção, e muitos títulos que o professor poderia
mediar são descartados por sua construção, como os
textos longos e com poucas ilustrações. Ao professor cabe
o papel de interceptar esses textos, lê-los e trazê-los à
criança pela oralidade, dissipando, assim, a questão da
faixa etária. Exemplo disso são os contos de fadas que não
entram na listagem de zero a seis anos de muitas editoras e freqüentemente
são usados pelo professor, o que demonstra que o problema não
está no tamanho do texto e sim no conhecimento do texto, pois essas
narrativas provavelmente fazem parte do repertório literário
do professor, que traz para as crianças um texto já seu
conhecido e que não exige maior assimilação do enredo
para narrá-lo.
Neste momento torna-se necessária a reflexão sobre a teoria
que está dando suporte ao fazer pedagógico, pois, se o professor
crê que a criança se constrói nas relações
com o outro, pela interação social com os objetos culturais,
não pode privá-la de algumas narrativas, que muitas vezes
são inviabilizadas pelo recorte etário. A seleção
do livro implica bom senso e conhecimento do grupo de crianças
com que se está dialogando. Desse modo, as crianças pequenas
podem estar manuseando livros-objetos, ouvindo histórias e cantigas
de roda e ouvindo leituras em voz alta.
Partindo da idéia de que a criança se constitui leitor bem
antes de dominar o código escrito e de que nesse processo a interação
com o professor e as outras crianças do ambiente educacional é
fundamental, a constituição do acervo da educação
Infantil não deve se restringir somente a livros-objetos, livros
só de imagens ou livros com poucos textos; além desses,
é salutar que existam narrativas encantatórias (contos de
fadas, fábulas), poemas e textos mais longos, que muitas vezes
não serão manuseados pelas crianças, mas farão
parte do seu repertório por intermédio do professor. Como
argumenta Luiz Percival Leme Britto,
Se (...) entendemos que a leitura é mais que decodificação,
podemos assumir sem medo que a criança é capaz de ler mais
do que esses textos de frase, de palavras soltas, de letras grandes. A
criança lê, sobretudo com os ouvidos. É no momento
em que o professor, intermediando com sua leitura de adulto a leitura
da criança, faz com que ela se insira num universo discursivo denso,
que ele certamente estará contribuindo para sua formação
intelectual e sua visão de mundo.
Fica explícito que o leitor do código lingüístico
e escolarizado é o público-alvo do mercado editorial. Não
compreendendo o professor que atua com crianças pequenas como mediador;
sacraliza-se um tipo de texto ideal para esse leitor: muita imagem e pouco
texto. Em contrapartida, define-se uma visão escolarizada dos catálogos
que expulsa o leitor em formação do território literário.
Romper com critérios de seleção estabelecidos pelos
manuais e catálogos exige do professor o risco, a ousadia de se
aventurar na escolha, no ato de experimentar com o grupo de crianças,
percebendo seus gostos e desgostos. Se a escolha do livro for mediada
por critérios conteudísticos, do tipo: “eu quero ensinar
sobre animais mamíferos e procuro um livro que traga essa temática”,
entra-se num campo em que a visão escolar prevalece.
Embora estejamos falando aqui especificamente da leitura literária
e do contato com o livro, a criança deve ser apresentada a outros
materiais escritos. Daí que, a composição do acervo
deve ser a mais diversificada possível, juntamente com os títulos
de literatura, o ideal seriam estar revistas de notícias, revistas
em quadrinhos, jornais, enciclopédias, biografias, dicionários
infantis... e todas as outras modalidades de texto impresso, para que
a criança, desde cedo, tenha acesso e possibilidade de interagir
com outras formas de texto e outros tipos de leituras.
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