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RECONTANDO
HISTÓRIAS: A LEITURA E A VISÃO DE MUNDO DO PRÉ-ESCOLAR
Daniela Donato - Universidade Federal de São
Carlos – UFSCAR
Ademar da Silva - Orientador- Universidade Federal de São Carlos
– UFSCAR
Contar histórias é a mais antiga das artes.
Ouvir uma história e deixar-se seduzir pelo poder mágico
das palavras foi durante séculos uma das maiores formas de entretenimento
de todos os tipos de sociedades, tanto nas mais cultas e poderosas como
nas agrárias e em sociedades de transição mais lenta
para a industrialização. Nos velhos tempos, pessoas que
viviam longe de suas pátrias contavam e repetiam histórias
para guardar suas tradições e sua língua. Era costume,
grupos de indivíduos assentarem ao redor do fogo para esquentar,
conversar e ouvir os “causos” que os mais velhos tinham para
contar. No decorrer dos tempos, contar tornou-se uma profissão...
Com o advento da imprensa, jornais e livros se tornaram os grandes agentes
culturais dos povos. As fogueiras ficaram para trás. Os velhos
contadores foram esquecidos. Mas as histórias se incorporaram definitivamente
à nossa cultura. Ganharam as nossas casas através da voz
de nossos pais, das velhas babás e dos livros coloridos, para encantamento
das crianças.
Ouvir e contar histórias é ensinamento e escola, através
delas os valores culturais são transmitidos. O ouvinte ou o leitor
encontra, na vida das personagens imaginárias que povoam a narrativa,
situações bem reais com que se defrontam no seu dia-a-dia.
É todo o universo real, social e familiar que aparece em cena,
com os seus conflitos latentes e com os fantasmas que os engendram.
Vale ressaltar que uma história bem contada ou lida possui diversas
funções: prende a atenção da criança,
entretendo-a e estimulando sua curiosidade e imaginação.
Segundo ABRAMOVICH (1991, p.18), “nela se descobrem palavras novas,
se entra em contato com a música e com a sonoridade das frases,
dos nomes. Capta-se o ritmo, a cadência do conto, fluindo como uma
canção”.
Para CAGLIARI ( 2002, p. 155-156 ), ouvir historias é uma forma
de ler:
“A leitura oral é feita não somente
por quem lê, mas pode ser dirigida a outras pessoas, que também
‘lêem’ o texto ouvindo-o. (...) Uma criança que
é muito exposta a essas manifestações tem grandes
vantagens na escola sobre aquelas crianças que não têm
a mesma chance na vida. Ouvir uma leitura equivale a ler com os olhos,
a única diferença reside no canal pelo qual a leitura é
conduzida do texto ao cérebro”.
A literatura chega à criança, principalmente,
pela oralidade e esta se constitui também em um dos atrativos da
literatura na escola, pois cria um clima de comunidade em que todos estão
envolvidos na mesma experiência imaginária. Segundo AMARILHA
(1997, p.21), “ao narrar oralmente, o professor está fornecendo
à criança a possibilidade de ampliar sua capacidade de antecipação
sobre as estratégias da linguagem literária e da construção
do sentido”.
TRAÇA (1992) afirma que, palavras, idéias, sonhos e descobertas
feitas nas primeiras canções de embalar e nos primeiros
contos vão ficar para sempre presentes. As histórias contadas
e ouvidas precedem e preparam um uso pessoal do livro e incitam o leitor,
empurram-no encantadamente, puxam-no para o livro que contém as
maravilhas ouvidas e ainda outras. As histórias arrastam o jovem
ouvinte, que brevemente se transformará em jovem leitor, para além
das fronteiras do seu domínio familiar e estreito, transportam-no
para um mundo com aspectos múltiplos e surpreendentes.
A aventura de ler, como uma aprendizagem social que ultrapassa o quadro
escolar, começa muito cedo. A criança lê o mundo que
a rodeia muito antes de ler um livro. Lê o sorriso da mãe
que se debruça no berço, lê a natureza, lê a
cor e a forma dos objetos que lhe são familiares. FREIRE (1987,
p.22) afirma que: "a leitura do mundo precede sempre a leitura da
palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele".
Do mundo da leitura à leitura do mundo, o trajeto se cumpre sempre,
refazendo-se, inclusive, por um vice-versa que transforma a prática
circular e infinita. Como fonte de prazer e sabedoria, a leitura não
esgota seu poder de sedução nos estreitos círculos
da escola.
Há que se dizer que o gosto pela leitura não se “introduz”
ou se “impõe”. Com SILVA (1991) achamos que o gosto
pela leitura nasce e se desenvolve no sujeito a partir de práticas
concretas, de experiências vividas no cotidiano, dentro e/ou fora
da escola.
Tal visão leva-nos a uma concepção de leitura que
vai além da mera decodificação do signo lingüístico.
De acordo com ORLANDI (1984), cada ato de leitura resulta da contribuição
do leitor ao interagir com o texto, da experiência do autor ao compô-lo
e da relação entre os textos que concorrem com ele no momento
de sua produção. Evidenciando, assim, que o significado
não se encontra apenas no texto e, sim, no leitor, no contexto,
na sua forma de “ler” o mundo.
Os estudos de PERRONI (1992) sobre a aquisição da linguagem
oral mostram como a criança, por meio da interação
com o adulto, progride de um estágio inicial em que não
constrói sozinha suas narrativas, a um estágio em que se
constitui como um narrador autônomo.
De acordo com a teoria vigotskiana, a aprendizagem sempre estabelece relações
entre as pessoas. A relação do indivíduo com o mundo
está sempre mediada pelo outro. Não há como aprender
e apreender o mundo se não tivermos o outro, aquele que nos fornece
os significados que permitem pensar o mundo a nossa volta.
Desse modo, “o aprendizado humano pressupõe uma natureza
social específica e um processo através do qual as crianças
penetram na vida intelectual daqueles que as cercam” ( VIGOTSKI,
1984, p.99 ). A aprendizagem da criança inicia-se muito antes de
sua entrada na escola, isto porque desde o primeiro dia de vida, ela já
está exposta aos elementos da cultura e à presença
do outro, que se torna o mediador entre ela e a cultura.
A teoria histórico-cultural entende mediação simbólica
como “um processo de intervenção de um elemento intermediário
numa relação; a relação deixa, então,
de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento" (OLIVEIRA,
1993, p.26).
A atividade humana, por excelência, está permeada por elementos
mediadores, já que no seu cotidiano, no contexto social, o homem
faz uso constante de recursos, complexificando suas ações
e inter-relações, o que confirma a idéia de Vigotski
de que a relação homem/mundo não é direta,
mas, sobretudo, mediada por elementos denominados por ele de instrumentos
e signos.
Neste contexto, pode-se dizer que instrumentos e signos tornar-se-ão
elementos reguladores do aprendizado infantil e, em conseqüência,
para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores,
na medida em que servirem de mediadores nos processos interativos. Assim,
conforme a concepção vigotskiana, é nesse processo
interativo, vivenciado no espaço educativo e no lar, que a criança
realiza uma tomada de consciência e adquire o controle voluntário
do conhecimento.
Portanto, no que concerne à leitura, TRAÇA (1992) destaca
que o professor é o mediador, o facilitador, que estabelece (ou
não) a ponte entre a criança e o livro, pois, quando falamos
em prazer de ler, deve existir uma partilha que só se efetiva se
professor e alunos estiverem implicados, se houver uma certa cumplicidade.
Desse modo, no entender da autora, o professor que esteja verdadeiramente
convicto da importância da educação da criança
ao nível da sensibilidade, do desenvolvimento do imaginário,
da utilização de uma linguagem rica, aberta, multifacetada,
consegue que a maioria de seus alunos, mesmo desfavorecidos familiar e
culturalmente, gostem de um determinado livro, considerado difícil
ou em desacordo com a mentalidade da criança de classe baixa.
De acordo com o trabalho de ZANOTTO (1996), o estilo dos professores ao
contar histórias, ao fazer perguntas para explorar o texto, ao
usar a linguagem, enfim, a maneira como medeiam o livro para a criança,
em resposta às suas iniciativas e reações, afeta
o modo como elas respondem aos livros e à importância da
leitura.
Assim, a leitura das histórias infantis, organizada dentro de um
espectro amplo de atividades participativas e lúdicas, pode ser
um fator decisivo não só para a alfabetização,
como também para toda a educação do leitor.
Neste contexto, a arte milenar de narrar que, segundo BENJAMIN (1986),
relaciona-se com a grandeza e a dignidade da vida, encontra, contemporaneamente,
na figura do professor e também dos pais, a possibilidade de se
manter viva, alimentando a inteligência, a sensibilidade e a imaginação
dos ouvintes.
No que diz respeito ao contexto familiar, neste início do século
XXI, ouvir uma história antes de dormir, embalado por uma voz que
traga referências confortantes é um presente raro; é
como dormir embalado por vozes angelicais. No entanto, quantas crianças
têm esse prazer satisfeito dentro da sua própria casa, ou
melhor, quantos pais se dispõem a essa tarefa?
Há que se dizer que a exaustão causada pela correria do
dia-a-dia e a praticidade da televisão e dos videogames são
alguns dos múltiplos fatores que afastam pais e filhos do prazer
de compartilhar momentos simples, mas importantes, como o contar uma boa
história para a criança antes de dormir.
Diante das considerações realizadas, cabe mencionar que
os contos de fadas e as histórias infantis fazem parte da própria
história da pesquisadora, pois estes a encantaram desde a infância
e até hoje as lembranças das histórias narradas por
seu pai com tanto carinho permanecem vivas em sua memória.
Esse contexto e a percepção da importância de atividades
de contação de histórias para o pré-escolar,
despertaram nosso interesse para o que diz respeito à formação
de leitores, ao desenvolvimento da imaginação, à
visão de mundo e, conseqüentemente, à produção
de sentidos por parte das crianças ao se apropriarem das histórias.
Neste sentido, o presente trabalho representa um estudo realizado com
crianças pré-escolares, fundamentado pela seguinte questão
de pesquisa: quais as pistas da visão de mundo que o pré-escolar
apresenta por meio da leitura mediada pela oralidade? Nosso objetivo principal
concentrou-se em observar e analisar essas pistas fornecidas pela criança
ao se apropriar das histórias ouvidas
Desse modo, a perspectiva mais adequada e escolhida para o desenvolvimento
deste trabalho foi a abordagem qualitativa, com ênfase no estudo
de caso. Neste contexto, de modo a atingir nosso objetivo principal, o
recurso adotado para a coleta de dados foi a observação
direta em sala de aula, utilizando-se diário de campo e áudio.
Além disso, as observações foram complementadas por
conversas informais com as professoras e os alunos.
Portanto, a partir da teoria histórico-cultural e da lingüística
do texto foram analisados 58 recontos produzidos nas aulas de contação
de histórias de duas EMEIs (Escola Municipal de Educação
Infantil) da cidade de Matão-SP. Assim, detectamos quatro tipos
comuns de ocorrência, que, desmembrados, perfizeram um total de
22 subcategorias de análise.
Veja-se o quadro:
· Marcas da oralidade
|
a)Diálogo com os textos-base. Uso da memória
b)Diálogo com a temporalidade dos contos de fadas
c)Uso de marcadores de organização textual
d)Recurso
da repetição
e)Introdução da fala dos personagens
f)Exigência do final feliz |
· Maneiras de contar
|
a)Mudança
na voz e expressões faciais
b)Gestos
e efeitos sonoros verbais
c)Apoio
nas ilustrações
d)Imitação
de atos de leitura
e)Explicações/comentários
de fatos da história
f)Recontos
ricos em detalhes
g)Relação
com as datas comemorativas |
· Retomada de elementos do cotidiano
|
a)Expressões
próprias dos alunos
b)Relação
com os afazeres domésticos
c)Relação com as atividades realizadas na escola
d)Referência
à figura dos irmãos mais velhos
e)Comparação/relação
com informações do cotidiano |
· Inserção de novos elementos
|
a)Mudança
no roteiro da história. Novos personagens
b)Referência
a personagens da televisão
c)Relação
com o trabalho dos pais
d)Alternância
madrasta/bruxa |
A seguir,
apresentaremos um exemplo de cada uma das categorias e subcategorias,
seguidas da análise.
• Marcas
da oralidade
a) Diálogo
com os textos base. Uso da memória.
O diálogo com os textos-base pode constituir-se por meio da colagem
de alguns elementos desse texto/base. Neste sentido, cabe lembrar que
a memória é um dos principais recursos utilizados pelos
alunos, nesta etapa da escolarização, o que podemos verificar
em vários recontos que apresentaram frases literais do livro:
06- “Era uma vez uma princesa muito meiga e bondosa.
Seu nome era Branca de Neve.
Dela todos gostavam, menos da madrasta que sempre consultava o seu espelho”.
b) Diálogo com a temporalidade dos contos de fadas
Um exemplo recorrente da remissão à temporalidade indefinida
dos contos de fadas, suposta, pelos alunos, como uma exigência que
deve ser considerada ao contar histórias, refere-se ao aparecimento
freqüente do clássico “Era uma vez” no início
de quase todos os recontos.
04- “Era
uma vez um castelinho muito bonito...”
c) Uso de marcadores de organização textual
Quanto às marcas que remetem a uma forma de organização
textual, as mais correntes nos recontos foram o uso do aí, depois,
e, então, e daí, que são tipicamente orais, e apresentam-se
como indícios do envolvimento direto do interlocutor com o fio
narrativo e também como função de organização
do texto, na tentativa de garantir a continuidade da narrativa.
21-“E
assoprô até cansá e não distruiu a casinha.
Aí depois ele resolveu e desceu pela chaminé.
Mais só que o fogo tava aceso.
E depois ele caiu na panela e ele queimô tudo a bunda.
Aí depois eles foram felizes para sempre. Fim”.
d) Recurso
da repetição
O uso da repetição nos recontos indica a tentativa de persuadir
o interlocutor da intensidade expressiva do fato narrado, ou como assinala
KOCH (1998), baseia-se na técnica de “água mole em
pedra dura”, ou seja, repete-se como meio de “martelar”
na mente do interlocutor até que este se deixe persuadir. Além
disso, tal recurso visa oferecer ao interlocutor o status de co-participante
do relato, como se o contador estivesse monitorando o seu dizer com o
objetivo de que o interlocutor assimile as informações que
aquele julga relevantes para a continuidade temática do relato.
08-“_Porquinho abra essa porta senão vô assoprá.
E não abriu.
Soprô, assoprô, assoprô e não conseguiu”.
e) Introdução
da fala dos personagens
Conforme GOMES-SANTOS (2003), a introdução da fala dos personagens
caracteriza-se como um fenômeno de transmissão da palavra
de outrem, em que o narrador procura dar visibilidade ao fato narrado,
ou seja, a representação da fala, como se estivesse ocorrendo
no momento do reconto, torna-a ponto de referência central, dando
não só proximidade ao enunciado passado, como tornando a
atividade mais expressiva.
Neste caso, o procedimento mais comum por meio do qual se designa a natureza
desse tipo de ação é o de introduzi-la com verbos
como falar e dizer ou, em menor escala,
com verbos como perguntar e responder, relacionados de algum modo ao nome
da personagem que executa as ações verbais.
7-“Aí
a Chapeuzinho andô, andô e encontrô o lobo.
E o lobo disse:
(Mudando a voz)
_Onde cê vai Chapeuzinho?
E ela falou:
_Eu vô na casa da minha vovozinha, eu vô levar doces para
ela, ela tá muito doente”.
f) Exigência
do final feliz
O final feliz das histórias que, de certa forma, tem a ver com
o item (b) temporalidade dos contos de fadas, apresenta-se como uma exigência
unânime das crianças, devido, principalmente, ao grau de
envolvimento com estas histórias.
27- “A
rôpa da bruxa começaro a queimá.
Ela correu e nunca mais voltô.
João e Maria encontraro o caminho de casa e acharo os seus pais
e foram felizes para sempre”.
•Maneiras
de contar
a) Mudança
na voz e expressões faciais
A mudança no tom de voz e as expressões faciais foram constantes
nos recontos, o que demonstra o envolvimento emocional e a identificação
da criança com os personagens destas histórias.
7-“_
Nossa vovó, que boca tão grande!
(Mudando a voz e franzindo as sobrancelhas)
_ É pa te comer melhor minha netinha!
Aí a Chapeuzinha correu, correu, o lobo saltô da cama e correu
atrás dela”.
b) Representando com gestos e efeitos sonoros verbais
Numa tentativa de dar maior expressividade ao fato narrado, como se a
ação estivesse acontecendo naquele momento, as crianças
fazem os sons dos objetos e gesticulam, como se estivessem encenando a
situação.
38-“A
vovó falou para a Chapeuzinho Vermelho:
(Gesticulando com as mãos na cintura e apontando o dedo)
_ Nunca desobedeça a sua mãe!”
c) Apoio
nas ilustrações
As ilustrações dos livros são fundamentais para as
crianças pré-escolares, visto que, muitas vezes, lêem
as histórias por meio das figuras.
24-“Aí
um dia eles tavam jogano grão de milho.
Aí os passarinho comero.
Aí eles se perdero e encontraro um castelo.
Aí depois aqui (mostrando o desenho do livro) morava um bicho papão,
ele e a empregada dele”.
d) Imitação
de atos de leitura
No decorrer dos recontos, alguns alunos, com o livro em mãos, passavam
o dedo indicador sobre as letras, comportando-se como se estivessem lendo.
Vale dizer que alguns realmente liam algumas palavras.
2-“E
aí com quinze anos as fadas falou que a prencesa podia furá
o dedo ne uma máquina.
(Passando o dedo indicador sobre as letras como se estivesse lendo)
Que possa furá o dedo...de costurar roupa”.
e) Explicações/comentários de fatos da história
Uma grande parte dos recontos foi enriquecida com comentários e
explicações dos alunos a respeito de fatos da história,
de modo que os colegas pudessem entender melhor o que estava sendo narrado.
Tal atitude pode nos mostrar o processo de construção de
sentidos das crianças ao se apropriar das histórias.
32-“Aí
depois, quando a bruxa foi embora, o príncipe falou:
_ Rapunzel jogue suas trança para mim!
Aí ela jogou sabendo que era um homem”.
f) Recontos ricos em detalhes
Uma característica marcante que se pôde observar é
a riqueza de detalhes presentes nos recontos das crianças.
25-“Aí
ela empurrô a porta, entrô e viu treis tigelas de...mingau
quente na mesa.
Um ela isprementô e tava muito quente.
Outro ela esprementô tava muito gelado.
E a outra tava gostosa e ela comeu.
Aí ela foi se sentano.
Na primera cadera, uma tava muito dura.
Outra tava muito mole.
Outra tava melhor”.
g) Relação com as datas comemorativas
As crianças utilizam datas comemorativas para tornarem seus recontos
mais claros, ou melhor, para se fazer entender.
17-“Era
uma vez a mamãe mandô Chapeuzinho Vermeio levá os
ovinho pa vovó”.
(Reconto realizado às vésperas da Páscoa).
•Retomada
de elementos do cotidiano
a) Expressões
próprias dos alunos
Ao recontar as histórias, os alunos utilizam palavras e expressões
comuns presentes em seu cotidiano, que fazem parte do processo de construção
da linguagem dessas crianças.
09-“Daí a mamãe falô pra não ir pelo
caminho do lobo mau.
E ela teimô e foi.
(...)
_Nossa vovó, que boca tão grande!
_É pa te comeeee!
Chapeuzinho Vermelho saiu vazado”.
b) Relação
com os afazeres domésticos
Devido à identificação da criança com os personagens
e à sua apropriação das histórias, alguns
recontos apresentaram relação com as atividades domésticas
que ela realiza. De acordo com informações fornecidas pelas
professoras, várias crianças costumam ajudar os pais em
casa.
05-“Era
uma vez a Branca de Neve que limpava a casa dela.
(...)
Aí depois os anãozinho chegaram.
Um limpava o banheiro, outro limpava a casa, outro passava pano no chão,
outro limpava o armário”.
c) Relação com as atividades realizadas na escola
Algumas ações dos personagens dos recontos foram modificadas
pelos alunos que, de acordo com seus referenciais, acabavam por relacionar
tais ações com as atividades que realizam na escola.
56- “Aí
o príncipe só ficava dançano com ela.
Aí tocô o sinal meia-noite”.
d) Referência
à figura dos irmãos mais velhos
As crianças pré-escolares tomam a figura dos irmãos
mais velhos como referências, o que pode ser observado em alguns
recontos.
40-“_
Quando fazer deis anos ela vai vim e colocá o dedo na máquina
de costurá!
Aí quando completou deis anos, ela foi lá e furô o
dedo”.
(Dez anos: idade da irmã do aluno).
e) Comparação/relação
com informações do cotidiano
Vários recontos foram permeados por comparações e
relações que as crianças fazem com o que elas já
conhecem do mundo.
48-“E
fez aquele vestido velho num vestido novo e bonito.
E catô uma abóbora e fez uma carroçagem”.
(Carroçagem = carroça/carruagem)
•Inserção
de novos elementos
a) Mudança
no roteiro da história. Inclusão de outros personagens
O texto-base foi combinado com outros elementos extraídos de outras
histórias ou da história de vida das crianças, caracterizando-se
como uma relação intertextual. Conseqüentemente, um
considerável número de histórias teve seu roteiro
mudado e personagens acrescentados pelas crianças, visto que o
desfecho dos recontos acontecia de acordo com o que o narrador esperava/desejava
que acontecesse.
35-“E
quando o bebê nasceu ela estava com vontade de comer rabanete.
E o pai do bebê foi lá e pegô.
Aí a bruxa tinha um cachorro.
Aí o cachorro começô a lati”.
b) Referência
a personagens da televisão
Nos recontos analisados, alguns vilões e heróis receberam
nomes iguais aos dos personagens de programas da televisão, bem
como de desenhos animados.
13-“Pai
de treis rapazes morreu.
Um dexô um... num sei o quê, pra um dexô um burro, outro
um cato chamado Lion”.
(Lion é um homem-gato de um desenho animado chamado Thundercats)
c) Relação
com o trabalho dos pais
O trabalho realizado pelos pais serviu de referência às atividades
de alguns personagens dos recontos. De acordo com informações
fornecidas pelas professoras, o pai da criança trabalha na safra
da laranja (na roça).
12-“Era
uma vez o pai de João e de Maria que trabalhava na roça.
Ele teve uma idéia deles cortá lenha”.
d) Alternância
madrasta/bruxa
Em seus recontos, os alunos mostram a visão negativa que têm
da figura da madrasta, como uma mulher má, geralmente de presença
indesejável, sendo relacionada, em alguns casos, com a figura da
bruxa.
29-“Era
uma vez um lenhador que morava numa casinha no bosque.
A esposa dele morreu e veio uma mulher.
Aí se casou com ela.
Aí falou:
_ Melhor abandonar essas crianças na floresta, aí sobra
mais comida.
(...)
Aí João e Maria empurrô a bruxa no calderão.
E aí eles voltaro pra casa, aí o pai deles mandô a
madrasta embora”.
*****
No percurso realizado com os recontos, deparamo-nos a todo momento com
a apropriação das histórias pelas crianças,
sua releitura e produção de sentidos e, nesse “reescrever”
oral das histórias ouvidas, vemos que as crianças ultrapassam
o texto escrito, interpretando-o à sua maneira, de acordo com os
referenciais e idealizações de mundo que possui.
A análise nos mostra que as pistas da visão de mundo estão
presentes em todo o processo de contação de histórias.
No entanto, começam a surgir mais intensamente quando a criança
insere no reconto o seu jeito de ser, ou seja, a partir da categoria Maneiras
de contar em diante, vai deixando marcas das coisas que permeiam sua vida,
enfim, de sua percepção de mundo.
Apesar da exigência do final feliz estar na categoria inicial de
nossa análise, ela tem muito a ver com a visão de mundo
da criança. Veja-se o exemplo (10):
“Eles
construíram seu castelo e viveram felizes para sempre”.
Nesse reconto,
podemos observar que está implícita a idéia da construção
da casa para o casamento que será uma união feliz, muitas
vezes diferente da realidade em que se encontra a criança, mas
de acordo com o que ela realmente espera da vida. Desse modo, tal exigência
não representa uma simples expressão congelada que fica
de seu diálogo com os contos de fadas. Percebe-se que essa expressão
significa muito mais para a criança.
Conforme BETTELHEIM (1980), o final feliz das histórias reconforta
e alivia as pressões internas presentes na criança. De acordo
com CUNHA (1997), se o adulto é capaz de ler um livro ou ver um
filme que acabe mal, sem deixar de apreciar o livro ou o filme, pelo aspecto
puramente artístico, ou pela realidade da vida neles apresentada,
tal não se pode esperar da criança. Normalmente ela vive
a história, identifica-se com a personagem simpática e o
final desagradável a feriria inutilmente. Além disso, a
criança espera que o futuro lhe reserva grandes feitos, que os
seus desejos virão a realizar-se e que a felicidade está
no campo dos possíveis.
Por meio da observação dos recontos pôde-se constatar
que os alunos utilizam o recurso memorialístico para compor suas
histórias. Percebeu-se que alguns deles, com o livro nas mãos
e adotando uma postura como se estivessem lendo, recontavam as histórias
usando expressões literalmente encontradas no livro.
Outros, por esquecimento ou por motivos diversos, paravam o reconto e
olhavam para as figuras do livro em busca de apoio. Essa conduta variava
de intensidade de acordo com cada criança, mas o faziam para continuar
suas histórias do ponto em que paravam. Além disso, cada
vez que uma página era virada, os colegas queriam ver tais figuras
e irritavam-se quando isso não acontecia.
Enfim, ao imitarem atos de leitura, as crianças fazem de conta
que estão lendo convencionalmente, passando o dedo sobre as letras
ou apenas acompanhando com os olhos, virando as páginas dos livros,
recontando o que já ouviram de um adulto e fazendo sua própria
interpretação ou leitura das histórias.
Esta situação enquadra-se no que VIGOTSKI (1984) chama de
memória mediada. Para o autor, tal recurso permite ao indivíduo
controlar seu próprio comportamento, por meio da utilização
de instrumentos e signos (o livro e as ilustrações, neste
caso) que provoquem a lembrança do conteúdo a ser recuperado,
de forma deliberada.
Devemos atentar para o fato de que para as crianças pequenas, o
desenho das palavras é um sinal incompreensível e esses
pequenos signos negros cabalísticos aparentemente não dizem
nada. Por isso, para as crianças nesta idade, a história
se dá nas imagens, visto que a imagem (desenho, fotografia, recorte)
é um sinal que elas “traduzem” facilmente.
De acordo com CUNHA (1997) as figuras dos livros representam um ícone
e este sinal (ou signo) mantém relações tão
próximas, na aparência, com o objeto representado, que é
imediatamente entendido pelo receptor. Desse modo, no entender da autora,
para as crianças pequenas, em quem queremos desenvolver o interesse
pelas histórias, em geral lidas para elas, as gravuras são
muito importantes e significativas.
VILLARDI (1999) salienta a importância da ilustração
por tratar-se de uma linguagem que a criança domina amplamente,
sendo plena de significado torna-se uma ponte entre o texto e a criança.
No entender da autora, cabe ao adulto que acompanha a criança,
nessa fase, fazer com que ela perceba que existe uma relação
entre o que se fala e os sinais utilizados na escrita, o que pode ser
conseguido acompanhando com o dedo a leitura dos textos. O nível
de desenvolvimento lingüístico, por sua vez, já permite
que a criança tenha “domínio” sobre as histórias
que conhece bem, motivo pelo qual é importante incentivá-la
a “ler” as histórias, o que ela fará à
sua maneira, com suporte na ilustração.
Já o recontar sem o apoio do livro mostrou-se bastante fértil
na busca das pistas da visão de mundo das crianças, uma
vez que, após terem ouvido várias vezes e se apropriarem
das histórias, as crianças mostravam-se bastante seguras
e livres para recontarem do “seu” jeito e adaptavam as histórias
de acordo com seus referenciais, acrescentavam personagens e/ou mudavam
o roteiro original.
Veja-se o exemplo (44)- Menino sem o livro:
“Aí a Branca de Neve falô assim:
_ Eu não aceito coisa de estranho...”
“Aí chamaro o médico e não adiantô.
E aí chamaro um rei pra ajudá”.
Nota-se que, neste reconto, além de utilizar o recurso da memória
para seguir o roteiro da história, a criança faz apelo à
sua imaginação e aos conhecimentos de mundo que possui,
tanto ao dizer que não aceita coisas de estranhos, o que provavelmente
é um ensinamento que aprendeu em casa, como também ao introduzir
um médico na história, pois independente da época,
para a criança sempre haverá um médico para ajudar
quando alguém não se encontra bem de saúde.
Cabe destacar que muitos recontos apresentaram-se atravessados pela retomada
de elementos da ação cotidiana, relativos ao imaginário
lúdico infantil e, neste contexto, as pistas da visão de
mundo representam indícios da relação da criança
com o que ela conhece/deseja/espera que seja o mundo. Isso pôde
ser constatado quando as crianças, em seus recontos, explicavam
ou comentavam fatos da história, relacionavam personagens da televisão,
profissões dos pais, datas ou outras atividades cotidianas, como
as que realizam na escola ou em casa, de modo a inseri-las em “suas”
histórias; quando acrescentavam personagens ou mudavam o final
de acordo com o que lhes convinha.
Trechos dos recontos (26), (11), (38), (47) e (33) ilustram a estreita
relação da criança com as histórias ouvidas:
Reconto (26):
“Muito bem Chapeuzinho Vermeio, vai por esse lado aqui (apontando
com o dedo) que é mais perto!
O lobo mau foi esperto e cortô atalho e chegô mais primero”.
O fato narrado
em discurso direto e o gesto dão maior vivacidade ao reconto e
explicitam a esperteza do lobo que, sabendo do atalho, chegaria primeiro
à casa da vovó. Isso nos mostra o processo de produção
de sentido por parte da criança.
Reconto (11):
“Aí a bruxa Kéka robô a menininha”.
Neste trecho
temos a presença da bruxa Kéka, personagem de um programa
diário da Xuxa, que por fazer parte do cotidiano da criança,
encontra-se refletida em seu reconto.
Reconto (38):
“Sua mãe fez uns pãozinho de mel e mandou levar para
sua vovó que estava muito doente”.
Podemos observar
a ligação que a criança faz entre a história
contada e o trabalho dos pais. No reconto, os doces da cesta foram substituídos
por pães de mel. Sabemos que a mãe da narradora produz e
vende tais pães e estes representam algo valioso que a criança
tem a oferecer de presente para a vovó.
Reconto (47):
“Aí deu meia-noite e tocô o sinal pra eles ir embora
e eles nem perceberam”.
Na história,
ao dar meia-noite, tocam os sinos do castelo, no entanto, por estar habituada
com o sinal da escola, que toca tanto na entrada quanto na saída
dos alunos, a criança o insere em seu reconto de maneira a dar
sentido ao fato narrado.
Reconto (33):
“Rapunzel disse:
_ Sempre que você vim aqui na minha casa traz um shampoo seda”.
Podemos observar
neste trecho dois elementos importantes: a torre em que Rapunzel vivia
enclausurada, isolada de tudo e de todos, para a criança, independente
de ser uma prisão, representa a casa da personagem, pois “todas”
as pessoas têm um lugar para morar. Além disso, podemos observar
a referência interessante que a criança faz aos fios de seda
– que seriam usados para que a personagem construísse uma
escada para fugir da torre. Ao solicitar o shampoo, a narradora relaciona
os fios de seda e os cabelos longos da personagem com uma marca de shampoo
bastante divulgada na mídia.
Assim, pensamos que estas atitudes das crianças não são
desvios no processo de compreensão como, às vezes, é
entendido na prática escolar, mas, o contrário, são
a manifestação dos mecanismos de compreensão utilizados
pelas crianças para a construção dos sentidos do
texto. Ou seja, as “saídas” que as crianças
fazem do texto, por meio de associações com suas vivências
pessoais e com elementos presentes em seu imaginário, são,
de fato, formas de compreensão.
Desse modo, chamamos de “aproximações com o texto”
as relações que os alunos tentam estabelecer entre o que
ouviram do texto e as suas vivências pessoais ou entre o que identificam
no texto e os seus conhecimentos lingüísticos - como, por
exemplo, quando usam expressões próprias de seu grupo ou
inventam palavras - isto é, as articulações feitas
tanto em termos de uma articulação com as suas experiências,
quanto a partir do destaque de palavras isoladas e desconhecidas que são
contextualizadas com vistas à significação.
Portanto, o movimento vai sempre na direção da produção
de sentidos. Durante a realização da atividade do reconto,
pudemos observar que as crianças não só buscam a
apreensão do texto como um todo, como também fazem outras
“leituras”. Neste contexto, apreender a atividade de recontar
como uma atividade enunciativa possibilitou tomá-la também
como registro da leitura do aluno e, em conseqüência, como
atividade interpretativa, como produtora de sentidos por excelência.
Neste momento, cabem algumas considerações acerca do ponto
de partida e do ponto de chegada deste trabalho, os quais têm a
mesma referência: ouvir e contar histórias e todas as suas
implicações.
A primeira consideração que merece ser realizada refere-se
ao contato sistemático com a leitura e com os livros de histórias
que, acreditamos, permitirá à criança o desenvolvimento
de habilidades relacionadas à leitura e à escrita, tão
decisivas para o sucesso escolar e para o tornar-se leitor. No entanto,
entendemos que esta sistematicidade no trabalho com livros de histórias
infantis nas classes de pré-escolares deve vir acompanhada da busca
por fornecer atividades significativas às crianças e uma
dessas atividades é, sem dúvida, o recontar histórias.
Quando em situação interativa em sala de aula, estando a
professora e outras crianças mediando a compreensão do aluno,
este fenômeno pode ser o início de um processo que leva o
aluno a aproximações cada vez mais adequadas aos sentidos
do texto. Desse modo, mesmo caracterizando a situação como
sendo um fenômeno de “apropriação do texto”
que, em princípio, levará a criança a se distanciar
dos sentidos construídos pelo autor, os seus desdobramentos posteriores
– a compreensão do texto – poderia fazer com que fosse
encarado como algo inevitável no processo que conduz à compreensão
efetiva.
Neste contexto, acreditamos que o leitor até pode ir ao encontro
da intenção do autor, mas a leitura não se esgota
nisso porque também provoca o encontro com outros textos. Cabe
dizer que, quando as crianças estão conversando sobre uma
história lida, também constroem outras histórias
a partir das motivações que os conteúdos temáticos
desta história lhes despertam. O diálogo na “leitura”
das crianças aparece na forma dos recontos e dos outros sentidos
que constroem e produzem, levando em conta as suas experiências
e vivências sociais e culturais.
Pode-se dizer, então, que o reconto de uma história por
uma criança provoca um diálogo dela consigo mesma, uma vez
que leva a criança a novas elaborações de pensamento
e a outros sentidos, portanto, a outros textos e a outras histórias
que refletem a sua realidade concreta, a sua experiência de vida
e os dos conhecimentos que já tem construídos, enfim, a
sua “visão de mundo”.
Se aceitarmos a compreensão da leitura como um processo que ultrapassa
o limite do texto escrito, ou do contexto lingüístico, e avança
para a vida, ou seja, para outros contextos que estão relacionados
com as vivências sociais de cada criança, então o
texto escrito, quando “lido” pelas crianças, possibilita
uma multiplicidade de sentidos, só captada porque estão
interagindo entre si e em torno do mundo da leitura, conseqüentemente,
recuperando histórias e acontecimentos da própria vida.
Poderíamos concluir que, do ponto de vista do trabalho com a leitura
na escola, numa proposta em que se possibilite uma discussão coletiva,
os momentos de apropriação das histórias são
inevitáveis. De um lado, é o caminho percorrido pelo aluno
para a construção de sentidos, de outro, pode e deve ser
incorporada pelo ensino, tornando-se o ponto de partida da ação
e da intervenção pedagógica.
Desse modo, vale ressaltar que impedir a criança de experimentar,
vivenciar este processo de leitura é impedi-la de ser sujeito,
é considerá-la um ser abstrato inteiramente limpo de influências
externas e das particularidades das interações específicas
de cada grupo social a que pertence.
Há que se dizer, ainda, que o trabalho realizado tornou possível
formular a idéia de que a falta de conscientização
da importância da estimulação à leitura no
contexto escolar (e familiar), no sentido de mostrar que o ato de ler
é uma atividade prazerosa para as crianças, e principalmente
de realizar atividades que proporcionem um melhor desempenho neste aspecto,
podem ser vistos como alguns dos obstáculos para a evolução
dos alunos em relação aos vários aspectos da linguagem
oral e escrita, bem como da formação de leitores.
Assim, pensamos que uma possível alternativa seria inverter a ótica,
ou seja, deixar de investir no hábito – que é o que
a escola faz quando obriga a ler, apostando na imobilidade, como se, uma
vez adquiridos, os hábitos não se perdessem em desvios do
caminho – e investir no gosto, no prazer, numa predisposição
que se realimentasse, por ela mesma, a cada leitura.
Acreditamos que ensinar a gostar de ler é ensinar a se emocionar
com os sentidos e com a razão (porque, para gostar apenas com os
sentidos, não há necessidade da interferência da escola);
e, para isso, é preciso ensinar a enxergar o que não está
evidente, a achar as pistas e a retirar do texto (seja oral ou escrito)
os sentidos que se escondem por detrás daquilo que se escreve ou
diz.
Ao colocar o centro da questão no desenvolvimento do gosto pela
leitura, passamos a lidar, especificamente, com a formação
do leitor, o que envolve a criação de estreitos vínculos
entre a criança e o livro. Se o que buscamos é a formação
de um leitor para toda a vida, nada mais lógico que permitir que
tal formação tenha início muito antes de a criança
ser capaz de ler, sem a ajuda de um adulto.
Portanto, quanto mais cedo a criança tiver contato com livros,
melhor; e quanto mais for capaz de ver no livro um grande brinquedo, ou
seja, uma fonte de prazer, mais fortes serão, no futuro, seus vínculos
com a leitura.
Acreditamos serem estas as contribuições que decorrem das
reflexões que buscamos explicitar neste estudo, porém, parafraseando
GOMES-SANTOS (2003), nosso texto é somente uma reentrância
desse tecido cheio de já-ditos, não-ditos e ditos-por-dizer
que constitui toda prática de produção do saber.
Tendo em vista estas considerações, entende-se que “Sherazade”
deveria visitar mais vezes nossas salas de aula, não para sustentar
a disciplina, nem para preencher um vazio pedagógico, mas para
proporcionar sistematicamente o contato com as possibilidades significativas
da leitura.
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