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DISCURSO SOBRE A LEITURA E O LEITOR NO JORNAL GAZETA DO POVO NO PERÍODO
DE 1970 A 1985
Luiz
Augusto Ely - Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Paulo Freire, em uma entrevista concedida em 1982, revela que, sob o seu
ponto de vista, é mal compreendido quando avalia os problemas relativos
à leitura. Segundo ele, “o aspecto mágico da palavra
se expressa em uma leitura quantitativa: quanto mais livro eu compro,
quanto mais livro eu olho, quanto mais livro eu penso que estou lendo,
tanto mais eu estou sabendo”.(BARZOTTO, 1999).
Levando em consideração essas palavras, quando se presta
atenção na forma como a leitura é tratada na mídia
de uma maneira geral, é possível perceber que as observações
do educador ainda procedem, na medida em que a idéia de “quantidade”
relativa à leitura, está intrinsecamente associada à
importância da leitura e da formação de leitor na
construção de um hábito, (do quantitativo, indiretamente),
e que parece ocupar o nosso imaginário e talvez possa ser responsável
por grande parte dos mitos e crenças que temos e reproduzimos diante
de temas como leitura, livro ou leitor. Esse(s) discurso(s) que alimentamos
sobre tais conceitos apontam para uma visão redutora da leitura
e do leitor, localizando o conjunto de todo o fenômeno exclusivamente
no livro (quase sempre o literário) e numa quantidade em relação
a ele, o que proporciona um “mecanicismo” ao ato de ler, já
que se esbarra sempre na idéia de que a problemática da
questão pode ser encarada e resolvida com o estímulo e o
desenvolvimento do hábito de leitura, o que parece estar vinculado
à idéia de quantidade.
Evidentemente, não se trata de abominar ou falar mal dos livros,
ou de deixar de incentivar sua presença importante e inquestionável
no mundo da cultura e da educação, mas também é
preciso avaliar até que ponto a nossa crença e o nosso dizer
sobre leitura remete a uma contribuição efetiva para o estímulo
desse hábito de um modo geral, e não só de livros,
e ainda, para a expansão do número de leitores no país.
Ou seja, em que medida o nosso discurso sobre leitura – discurso
que conceitualiza o que realmente compreendemos sobre o que seja ler de
fato, o que é a leitura e o que vem a ser mesmo um leitor -, que
efetivamente chega às pessoas de uma maneira geral, por meio da
televisão, dos jornais e das revistas, e até mesmo pela
escola, tem contribuído para que essas mesmas pessoas compreendam
melhor a sua trajetória escolar de leitor e sua postura atual como
alguém que lê eventual ou continuamente toda a gama de imagens
e material escrito produzidos na sociedade, e não apenas livros.
Hoje, no Brasil, comparado ao que se produzia há vinte ou trinta
anos, existem muitas pesquisas sobre o tema. Há uma grande preocupação
em se entender os mistérios e mecanismos do ato de ler em si, de
como se desencadeia a compreensão na relação leitor-texto
(KLEIMAN, 2001). Daí existirem inúmeras publicações
buscando discutir formas de estimular o ensino de leitura e literatura
especificamente (SILVA, 2003; BARZOTTO, 1999; MAGNANI, 2001), assim como
se registra a ocorrência de trabalhos sobre a história brasileira
da leitura (LAJOLO e ZILBERMAN, 1999), havendo, inclusive, propostas de
se debater o tema a partir de perspectivas discursivas (ORLANDI, 1998).
Contudo, apesar dessa variedade de abordagens, desconhece-se na bibliografia
atual, alguma análise que busque compreender qual é efetivamente
o conteúdo de nosso conhecimento sobre leitura que aparece na mídia
de um modo geral, e na escrita em particular. Em virtude disso, é
extremamente válida uma análise histórico-discursiva
sobre a leitura e o leitor na mídia escrita, especialmente a dos
últimos trinta anos, pois foi durante esse período que tivemos
um grande progresso no que tange à mídia, sobretudo a de
imagem, tanto acusada de nos roubar tempo de leitura. Esse confronto estimulou
ainda mais a nossa preocupação com a formação
da leitura e do leitor, transformando o tema em uma focalização
tensa e constante que nos obrigou, de inúmeras maneiras, a afirmar
e reafirmar a importância do livro, e de como interpretamos o fato
da leitura e do leitor. Para verificar tal discurso (ou discursos), buscamos
inspiração na idéia de discurso e enunciado de Michel
Foucault, a fim de apreender e descrever, nos mais diversos tipos de enunciados
que ocorrem no presente, qual é o discurso preferencial a respeito
do tema. A hipótese inicial que apresentamos aqui é que,
contemporaneamente, na grande maioria das vezes em que falamos de ou em
leitura, independentemente do contexto em que isso acontece, e dos sujeitos
que enunciam, abordamos o tema de um ponto de vista quantitativo e erudito;
isto é, pensar em leitura, ou em leitor, é pensar exclusivamente
no livro como objeto preferencial de leitura, é pensar em quantidade
de livros lidos, em outras palavras, é pensar o livro e a leitura
como uma erudição.
Foucault, especialmente nas obras A arqueologia do saber e A Ordem do
discurso, deixa um legado de pensamento em torno das nossas relações
com os discursos, sendo o conceito de enunciado central para a compreensão
do que seja discurso e sua relação com as posições
que podem ocupar os sujeitos:
(...) apercebi-me
de que não podia definir o enunciado como uma unidade do tipo lingüístico
(superior ao fenômeno e à palavra, inferior ao texto); mas
que tinha que me ocupar de uma função enunciativa, pondo
em jogo unidades diversas (elas podem coincidir às vezes com frases,
às vezes com proposições; mas são feitas às
vezes de fragmentos de frases, séries ou quadros de signos, jogo
de proposições ou formulações equivalentes);
e essa função, em vez de dar um “sentido” a
essas unidades, coloca-as em relação com um campo de objetos;
em vez de lhes conferir um sujeito, abre-lhes um conjunto de posições
subjetivas possíveis; em vez de lhe dar limites, coloca-as em um
domínio de coordenação e de coexistência; em
vez de lhes determinar a identidade, aloja-as em um espaço em que
são consideradas, utilizadas e repetidas. Em suma, o que se descobriu
não foi o enunciado atômico – com seu efeito de sentido,
sua origem, seus limites e sua individualidade – mas sim o campo
de exercício de uma função enunciativa e as condições
segundo as quais ela faz aparecerem unidades diversas (que podem ser,
mas não necessariamente, de ordem gramatical ou lógica).
(FOUCAULT, 1995, p. 122).
Ou seja,
o fato de que um enunciado possui uma textura bastante particular que
o diferencia das noções tradicionais de palavra, frase ou
texto, nos mostra que, mais que o seu caráter verbal ou lógico,
o que mais importa não é a sua semelhança ou a textura
do material significante utilizado na sua construção, mas
sim a unidade discursiva que eles compõem, na medida que agregam
uma ordem de verdade conceitual sobre um determinado objeto, através
de uma repetição de símbolos variados que podem emanar
de diferentes sujeitos e em diferentes lugares do tempo e do espaço.
Diante de tais pressupostos, foram buscadas fontes no jornal Gazeta do
Povo, entre o período de 1970 e 1985, a partir de toda e qualquer
manifestação a respeito de leitura e leitor, sendo consideradas
como fontes, matérias sobre:
? educação
em geral;
? reportagens e dados estatísticos sobre educação;
? entrevistas com especialistas ou não;
? propagandas de coleções e lançamentos de livros;
? fotos e capas de matérias em que uma perspectiva de leitura seja
afirmada;
sendo privilegiados,
portanto, os momentos em que mais poderiam surgir matérias relacionadas
ao tema pesquisado: volta às aulas (fevereiro-março-agosto);
Dia do Livro (abril); Semana do Livro e da Biblioteca (entre os dias 23
e 29 de outubro). Durante o período estudado há, nas enunciações
a respeito da leitura na mídia, uma visão quantitativa,
focada de maneira parcial no livro, que reforça o debate sobre
o tema da leitura e do leitor no Brasil, além de afetar indiretamente
o ensino sobre leitura como um todo. De uma maneira geral, é possível
perceber que o assunto que mais predomina nas fontes colhidas é
a questão do hábito e a formação de leitores.
Em matéria da Gazeta do Povo de 21/03/1977, a diretora da Biblioteca
Pública do Paraná, Danúsia Zelak, afirma que “o
homem já não busca mais os livros, apesar das inúmeras
fontes de pesquisa; prefere os meios rápidos e de fácil
compreensão como jornais, revistas e televisão, o que comprometeu
seu nível cultural, atrofiando o vocabulário...”.
Defende ainda a imperiosidade do estímulo à leitura, da
boa leitura, “principalmente agora quando é implantada no
vestibular, a prova de redação”. Ela argumenta também
sobre a necessidade dos pais estimularem seus filhos desde pequenos, “dando-lhes
o exemplo”, deixando um apelo: “Os jovens deveriam deixar
de ler tanto fotonovelas e revistas em quadrinhos, assim não só
o nível cultural de cada um elevar-se-ia, mas também o do
Brasil. A gente acaba sempre, mais cedo ou mais tarde, convertendo-se
no que pensa, no que escreve, no que vê, no que ouve e no que lê”.
Mais adiante, ainda na Gazeta do Povo, em 23/10/1983, o professor João
Wanderlei Geraldi, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), diz
que a escola não forma o aluno para ser um leitor, pois o estudante
é obrigado a ler simplesmente para responder perguntas de interpretação
de textos, levando em consideração que, nas primeiras séries,
a leitura é confundida como uma mera codificação,
exigindo somente a capacidade do aluno de transformar letras em sons,
sem que ele se preocupe com os aspectos da mensagem; ou seja, o estudante
é obrigado a ler e aí, essa atividade se torna uma “tortura”,
pois é uma exigência imposta pela escola. O professor classifica
a escola de “elitista”, que define padrões de leitura,
impõe certos autores e tipos de linguagem e não dá
liberdade para que o aluno escolha a leitura que quer fazer como atividade
“agradável”; admite ainda que é preciso impor
certos limites para que o aprendiz não leia qualquer coisa, mas
lembra que é muito importante que esses jovens se tornem leitores
de forma independente, já que não gostam das leituras recomendadas
pelos professores.
E, a título de curiosidade, é interessante observar e comentar
uma matéria, de 19/03/1970, e outras que eventualmente foram publicadas,
em que são divulgados números que têm como origem
o movimento da Biblioteca Pública do Paraná. É possível
perceber o caráter que se dava às bibliotecas: elas detinham
a identidade de um espaço cultural, em que, mais do que servir
como acervo, eram realizados eventos, palestras, audições
musicais e exposições em suas dependências.
Embora poucos exemplos tenham sido explanados, esperamos que tenham sido
suficientes, ao menos, para despertar a importância de buscar uma
análise discursiva da temática que envolve leitura e leitor,
como forma de entendermos melhor o nosso olhar e o nosso falar sobre esses
conceitos, de uma determinada maneira e não de outra; esse “caminho”
pode, talvez, nos ajudar na compreensão acerca dos desencontros
que existem com relação à nossa condição
de leitor.
Referências:
1. BARZOTTO, V. H. (Org.) Estado da leitura. Campinas:
Mercado de Letras, Associação de Leitura do Brasil, 1999.
2. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
3. _______. A ordem do discurso. Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 1996.
4. GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux na análise do discurso
– diálogos & duelos. São Carlos: Claraluz, 2004.
5. KLEIMAN, A. Leitura: ensino e pesquisa. 2ª ed. Campinas: Pontes,
2001.
6. LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. A formação da leitura no Brasil.
São Paulo: Ática, 1999.
7. MAGNANI, M. da R. M. Leitura, literatura e escola. 2ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
8. ORLANDI, E. P. A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998.
9. SILVA, E. T. Leitura e realidade brasileira. 5ª ed. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1997.
10. _______. Leitura em curso – trilogia pedagógica. Campinas:
Autores Associados, 2003. |
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