Maria Teresa Esteban - Universidade Federal Fluminense
- Programa de Pós-Graduação em Educação
Introdução
As análises feitas sobre a escola anunciam a possibilidade de suas
práticas servirem à democratização do conhecimento,
enquanto denunciam seus vínculos com os processos de seleção
e exclusão social. A escola, dando as mesmas oportunidades a todos,
exclui ao não reconhecer a diferença; a escola, ressaltando
as diferenças, exclui ao segregar e discriminar, ocultando, sob
neutros conceitos, velhos e potentes preconceitos. A escola defendida
como direito, através de uma histórica luta da classe trabalhadora,
também é percebida como um espaço de reprodução
das desigualdades sociais.
O cotidiano da escola, inventado e tecido com os sujeitos e processos
que nele se entrecruzam e se interpelam, se constitui nos espaços
liminares de suas tantas fronteiras, sendo, portanto, ambivalente. Ambivalência
expressa na complexidade dos acontecimentos diários em que se entrelaçam
atração e repulsa, possibilidades e obstáculos. A
escola está constituída por desejos opostos.
Trabalhando com professoras sobre a avaliação na escola
organizada em ciclos , encontro a ambivalência e a complexidade
do cotidiano escolar, que abriga projetos, percepções, produções
e percursos diferentes, opostos, contraditórios, excludentes, complementares.
O compromisso com a alfabetização das crianças das
classes populares, na perspectiva freireana, nos convida a explorar a
potencialidade inscrita na ambivalência – permite, enquanto
nega; deseja, enquanto afasta – e nos desafia a preenchê-la
com práticas e significados vinculados à dinâmica
social de emancipação.
Nessa escola, ambivalente, focalizo a diferença como uma noção
especialmente relevante no estudo sobre a organização em
ciclos, pois essa proposta de reordenamento escolar ressalta a diferença
presente, embora muitas vezes submersa, no cotidiano. O discurso sobre
a diferença, na escola, é uma das expressões de sua
ambivalência, especialmente em sociedades mestiças constituídas
por intensos processos de hibridização cultural (Bhabha,
1998). A diferença é aceita no processo ensino-aprendizagem:
todos são diferentes; as pessoas têm diversos ritmos de aprendizagem;
há vários modos de ensinar e aprender.
Expressões cotidianas indicam a compreensão de que a prática
pedagógica precisa conviver com a diferença. Porém,
uma leitura atenta das práticas escolares revela a diferença
como fator que atua na dinâmica de inclusão e justifica atos
que excluem e segregam. A proposta hegemônica de escolarização
se vincula a um processo social em que a homogeneidade de parâmetros
é necessária à configuração de hierarquias,
que se constrói pelas diferenças. A diferença inclui
e exclui simultaneamente; no discurso e na prática docentes deve
ser considerada no início do processo e evitada ao final de cada
etapa, pois, nos momentos de avaliação dos resultados, a
diferença exclui.
Aproximo a ambivalência da escola, ao lidar com a diferença,
à análise feita por Bhabha (1998) do sujeito colonizado
como quase o mesmo, mas não exatamente, marcado pela falta por
ser diferente do colonizador; o que autoriza a subalternidade enquanto
produz formas silenciosas de não submissão. O papel ambivalente
da diferença conduz, neste momento, minha análise do processo
de avaliação realizado na escola.
Inclusão/Exclusão: questão inesgotável?
O sistema de ciclos é apresentado, no discurso das professoras,
como um projeto ambivalente: simultaneamente possibilidade e impossibilidade.
Em suas declarações, que se entrecruzam, percebem-se modos
diferentes de apreensão da organização em ciclos,
tendo em comum a visibilidade da diferença como fio que atravessa
práticas e discursos e a inscrição da proposta de
reorganização da escola como parte da dinâmica inclusão/exclusão
escolar.
No discurso docente, a ausência de reprovação
aparece como principal característica do ciclo, porém, a
experiência na escola também produz uma compreensão
de que o ciclo reintroduz a reprovação no processo. Numa
aparente contradição, a estrutura seriada é desarticulada
apenas em algumas etapas da escolarização e são criados
momentos de transição em que há retenção
dos estudantes. Freqüentemente elimina-se a palavra reprovação,
criam-se classes para aonde são encaminhadas crianças avaliadas
negativamente. Este ponto recoloca a reprovação e a seriação
como elementos centrais do debate, expondo, mais uma vez, a ambivalência
das práticas escolares, pois, formalmente, são práticas
que deixam de existir sendo substituídas por outras que garantem
a classificação das crianças e segregação
dos diferentes.
Permanece a lógica excludente que perpassa a escola. A existência
desse lugar da reprovação, em um projeto que enfatiza a
aprendizagem como processo múltiplo, constituído pelas singularidades
dos aprendizes, também indica que as professoras vão reconhecendo
a ambivalência do discurso que sustenta a implantação
desse sistema. Oficialmente, fala-se da inclusão e da aprovação,
mas são produzidos mecanismos para interromper o fluxo escolar
e manter procedimentos de exclusão.
Outro aspecto a se notar, no discurso docente, é que a seriação,
com sua parceira inseparável, a reprovação, é
uma referência social para a escolarização, indicando
ser a série um elemento de identidade para os estudantes, suas
famílias e professores/as. Portanto, mesmo deixando de existir
formalmente, articula as interações escolares. A tradução
ao expor a equivalência entre série e ciclo anuncia ser incipiente
a compreensão de que representam projetos educacionais diferentes.
As práticas cotidianas vão tornando os projetos iguais,
embora não sejam os mesmos, são quase, mas não exatamente.
Os projetos se igualam. Se suas diferenças exigem mudanças
nas práticas, o cotidiano de ambos guarda muitas semelhanças
entre si, em especial no que diz respeito às intenções,
declaradas ou não, do processo de escolarização e
às condições que as professoras encontram para realizar
seu trabalho. A professora busca terrenos seguros, territórios
conhecidos, lugares em que se reconhece ao realizar plenamente sua função.
Historicamente, é parte da atividade docente aprovar e reprovar,
ações que se tornaram componentes de sua identidade e autonomia
profissionais. A manutenção da reprovação
como um desses lugares seguros traz indícios de concepções
de ensino e de aprendizagem que orientam a ação escolar;
fios, às vezes invisíveis, que unem as práticas dando
sentido coletivo às ações individuais.
A proposta de organização do processo pedagógico
presente no sistema de ciclos cria uma desordem na escola ao evidenciar
contradições, divergências, diferenças que
estão harmonizadas e ordenadas sob o rótulo de fracasso
escolar. As coisas saem de seus lugares, deixando aparecer dúvida,
incerteza, impossibilidade, incoerência, antagonismos. A desordem
impera, já não pode mais ser silenciada por práticas
que segregam tudo o que não se molda aos formatos previstos. Crianças
que ficavam anos a fio na 1ª série, consideradas inaptas para
avançar no regime seriado, por não estarem alfabetizadas
e que, mais cedo ou mais tarde, abandonavam a escola, alimentando os históricos
e inabaláveis índices de evasão e repetência,
acolhidos como expressão do fracasso escolar do estudante, agora
seguem nos anos escolares e chegam à 4ª série sem saber
nada, colocando em dúvida o fracasso escolar como resultado produzido
predominantemente pelo estudante e denunciando a insuficiência do
processo de escolarização. O caos produzido pelos que nada
sabem expressa a complexidade dos muitos saberes que se entretecem no
cotidiano escolar, evidenciando a insuficiência das simplificações
que buscam ordenar a escola.
Expondo, ou produzindo, o conflito, a organização da escola
em ciclos oferece possibilidades de reflexão sobre os pressupostos
que fundamentam as práticas escolares e os encaminhamentos dados
ao processo aprendizagem-ensino. A reflexão não garante
a transformação do projeto pedagógico, mas traz a
possibilidade de trabalhar os conflitos e gerar nova ordem, consoante
ao compromisso com uma escola pública de qualidade.
Os dois sistemas, série e ciclo, são percebidos, no cotidiano
escolar, como iguais, mas não os mesmos; como formas diferentes
de produção de exclusão e de ausência de qualidade.
A ambivalência dos discursos conecta um sistema ao outro e produz
invisibilidade dos nós que atam as práticas escolares cotidianas
à exclusão. O olhar se desloca das questões vinculadas
à escola como instituição constituída no embate
inclusão/exclusão, para as práticas docentes, consideradas
como exclusivamente técnicas, ou para as ações infantis,
tratadas unicamente como capacidade ou mérito individual. Porém,
submersos nas “queixas” das professoras sobre os ciclos estão
os fios por elas escolhidos para relacionar as propostas, indicando que
alternativas escolares à exclusão socialmente produzida,
também através de suas práticas, precisam ser implementadas
dentro de um conjunto amplo de procedimentos que provoquem rupturas com
a lógica seletiva que vem caracterizando o sistema escolar, notadamente
o regime seriado.
O novo, visto como quase o mesmo, mas não exatamente, produz um
espaço liminar em que a diferença se anuncia como pista
da inviabilidade da imitação de um projeto pelo outro.
A diferença como projeto
A reflexão sobre o cotidiano escolar sinaliza os diversos modos
de incorporação da diferença que percorre a sala
de aula como elementos significativos para a produção de
ações mais vinculadas às práticas de exclusão
ou aos processos de emancipação. A inexistência de
turmas homogêneas vem sendo incorporada ao discurso escolar, mantendo
a ambivalência existente no discurso sobre a diferença. Esse
aparente consenso apaga a diversidade de significados que toda expressão
comporta, pois reconhecer a heterogeneidade não significa incorporá-la
como uma positividade do trabalho. A heterogeneidade é indispensável,
por exemplo, à avaliação classificatória,
pois é a diferença que permite a comparação
entre o padrão estabelecido e o que o/a aluno/a mostra na sala
de aula, que orienta a classificação, a seleção
e a inclusão/exclusão. É preciso cuidado com o consenso
de que todos são diferentes, cada um tem seu ritmo, cada criança
aprende segundo seu próprio processo, porque esse reconhecimento
pode estar vinculado a projetos de exclusão. O reconhecimento da
diferença é produtivo quando vem acompanhado do reconhecimento
de sua potência.
A avaliação se mostra o processo escolar que capta, nomeia,
descreve e projeta a diferença, indicando desvios que devem ser
corrigidos. A idéia de que a incorporação da diferença
necessariamente nos leva a processos mais democráticos vai se desfazendo
numa leitura mais atenta das falas das professoras em que a diferença
é associada à dificuldade, à impossibilidade, à
não aprendizagem. Instrumentos construídos na lógica
do exame (Barriga, 1999) e procedimentos que visam ao diagnóstico
e ao acompanhamento dos aprendizes (Souza, 1993) com freqüência
servem, no processo de avaliação, para ocultar o valor negativo
ainda atribuído à diferença no cotidiano escolar,
criando um lugar onde ela pode se expressar como o desvio, portanto, produzindo
o outro como a-normal.
O Outro é citado, mencionado, emoldurado, iluminado, encaixado
na estratégia da imagem/contra-imagem (...) A narrativa e a política
cultural da diferença tornam-se o círculo fechado da interpretação.
O Outro perde seu poder de significar, de negar, de iniciar seu desejo
histórico, de estabelecer seu próprio discurso institucional
e oposicional (Bhabha; 1998:59)
No processo de avaliação a diferença emerge, porém
sua ambivalência dificulta que seja percebida como lugar de interdição
e alimenta a possibilidade do outro continuar a ser narrado. Circunscrita
pelo discurso que institui a norma, a criança que não percorre
os caminhos previstos pela escola e não demonstra os resultados
esperados no processo de avaliação com freqüência
vai sendo classificada como tendo problemas de aprendizagem. Não
acompanhando o ritmo proposto é apreendida, no processo ensino-aprendizagem,
como quase o mesmo, mas não exatamente.
A homogeneidade, buscando a reprodução do padrão,
desqualifica o que se apresenta como quase, nomeando crianças que
não aprendem conforme os modelos como crianças que não
aprendem. Aqui se inscreve a possibilidade de manutenção
das práticas de exclusão nas entrelinhas do discurso que
expressa a positividade da diferença e na utilização
dos instrumentos de avaliação que se pretendem democráticos.
O reconhecimento da qualidade da aprendizagem, do ritmo, do desenvolvimento,
dos conhecimentos que tece enquanto vive – dentro e fora da sala
de aula - é dada quando a criança se mostra não como
o outro, o diferente, mas como a reprodução do mesmo; exatamente
o modelo assumido no processo pedagógico.
Como a diferença é inerente aos seres humanos, o modelo
prevê alguma flexibilidade, definindo o limite a partir do qual
o outro se anuncia, mesmo que não se evidencie, permitindo sua
percepção como quase, garantindo sua inserção
nos espaços escolares de normalização dos sujeitos,
vista como inclusão. Essa apreensão da diferença
é profundamente excludente, é preciso romper com ela.
Na seriação, a homogeneidade é a referência
inequívoca, porém, no sistema de ciclos a heterogeneidade
é uma referência ambivalente. A ambivalência constitutiva
do quase anuncia a possibilidade de ruptura: ao não ser exatamente
o mesmo, há possibilidade de não pretender ser o mesmo,
o que impulsiona a busca de caminhos para ser o outro. A diferença,
reinscrita como alternativa, emerge como nova possibilidade de sair do
quase que nega para assumir-se como diferença que potencializa
como outro, como diferente que assume não ser igual, deixando de
pretender a reprodução que o aproxima de, mas não
o torna, o mesmo e justifica sua desqualificação pela diferença.
Encontro na escola ações que dialogam com a ambivalência,
permitindo a configuração de práticas não
só de exclusão, mas, também, de emancipação.
Ao produzir um lugar de reprovação, nomeado nos casos que
estudei como classes de progressão e de reorientação,
a escola dá visibilidade ao processo de interdição
e de explicitação da diferença, produzindo um lugar
para os iguais, pelo discurso, mas não os mesmos, pela experiência
na sala de aula que, atravessada pela proposta de aceitação
da diferença, os identifica como quase os mesmos, mas não
exatamente. O quase convida a tentar a correção dos desvios,
podendo torná-los os mesmos, o que demanda a existência de
salas de aula apropriadas a esse fim. A escola produz não só
sujeitos, mas, para abrigá-los, lugares que são quase os
mesmos, mas não exatamente.
Excluído do processo “normal” da escola, e justificado
pela intenção de normalizar para incluir, esse lugar vai
sendo apreendido pela professora como uma possibilidade de inclusão.
Os lugares de reprovação, oficialmente denominados classes
de aceleração ou de reorientação, são
batizados em algumas escolas como turma do CTI . A turma do CTI é
o lugar da exclusão, ninguém a quer, por ser dos repetentes,
dos que estão há muitos anos na mesma etapa, é o
lugar indicado por todos para aqueles que estão à beira
da morte. Nesse contexto, encontramos uma professora agindo com astúcia
(Certeau, 2002): ao aceitar o rótulo de sua turma – Turma
do CTI – consegue reduzir o número de alunos, criando uma
situação mais propícia ao processo pedagógico.
Tendo, nesse caso, sua turma reconhecida, por todos na escola, como o
lugar da reprovação, a turma dos que têm dificuldade
de aprendizagem, prefere a tática (idem) de assumir sua “fraqueza”
e nela produzir processos que levem seus alunos e alunas a aprender. Estaria
com esse posicionamento transgredindo a ordem ou reforçando as
práticas que incluem os quase num lugar de exclusão?
Entendo que a professora trabalha a ambivalência desse lugar e,
sem negar a exclusão presente, busca, silenciosamente, tecer uma
rede que potencialize a possibilidade de inclusão que também
o constitui. Ela se joga na exclusão – é a turma do
CTI – para poder ter, como afirma, “liberdade para fazer o
que quiser”, podendo “garantir essa coisa da aprendizagem”,
o que faz com que dos 18 estudantes, 12 possam ir à frente. Mas
ela segue com eles no ano subseqüente, porque no momento em que são
avaliados como a turma do CTI são marcados como aqueles que não
aprendem. Vê a si mesma como a única capaz de ensinar a alguns
deles, pois não podemos desconsiderar que, segundo a professora,
não foram à frente.
Alcançar o êxito na aprendizagem não foi suficiente
para que as crianças fossem retiradas do lugar de exclusão;
permaneceram, todas as 18, identificadas como quase os mesmos, mas não
exatamente, não sendo autorizadas a ingressar nas classes regulares.
A professora, em seu trabalho, explora a ambivalência da avaliação.
A avaliação que nomeia, expõe e exclui também
deixa algumas partes na invisibilidade, que podem ser usadas na perspectiva
da inclusão. O trabalho com crianças que se mostram diferentes
dos padrões, nomeadas na escola como as que não aprendem,
ocupa um lugar de interdição e a ele dá visibilidade
expressando “um discurso na encruzilhada entre o que é conhecido
e permitido e o que, embora conhecido, deve ser mantido oculto, um discurso
proferido nas entrelinhas e, como tal, tanto contra as regras quanto dentro
delas” (Bhabha; 135)
Avaliação com entre-lugar
Para avaliar as crianças que se mostram diferentes dos padrões
sem estigmatizá-las, freqüentemente a professora admite as
regras para opor-se a elas e vai aprendendo a utilizar o que está
oculto. A avaliação como processo que expõe para
classificar e controlar também tem a possibilidade de expor as
interdições que vêm constituindo a aceitação
da diferença no processo ensino-aprendizagem.
A avaliação como processo que emoldura e ilumina o outro
– a criança – se realiza através de instrumentos
que silenciam o sujeito avaliado só permitindo que ele se exponha
dentro dos limites predefinido. Porém, muitos outros aspectos se
mantêm presentes na relação aprendizagem-ensino, mesmo
que ocultados e silenciados, indicando que as fronteiras erguidas não
podem isolá-los, ainda que esta seja sua aparência. A avaliação
emerge como entre-lugar (Bhabha, 1998), de modo que o que é aceito
e o que é negado dialogam na produção dos valores
atribuídos às crianças.
A avaliação que classifica nega as diferenças que
fogem às normas, procurando simplificar um processo complexo, porém,
como o negado não é apagado a criança diferente é
excluída, ou incluída em um lugar de menor valor na escolarização.
A avaliação classificatória é o processo em
que a professora descreve a criança tendo como referência
uma aprendizagem infantil vista como efeito do ensino. Nesta perspectiva,
a avaliação demarca os limites entre o ensino e a aprendizagem,
linearmente relacionados; através dos instrumentos de avaliação
o aluno ou aluna expõe sua aprendizagem, através desses
mesmos instrumentos a professora apreende o aluno ou aluna e o nomeia,
para emoldurálo/a em categorias previamente estabelecidas.
Entendendo que negar a diferença é produzir exclusão,
as professora comprometidas com a aprendizagem de todos os seus alunos
e alunas propõem outras possibilidades para a avaliação,
muitas vezes buscando nas práticas instituídas espaços
e atos que possam ser re-significados. Encontro a possibilidade de a avaliação
deixar progressivamente de ser classificatória ao percebê-la
como entre-lugar, que significa aceitá-la em seu movimento que
impossibilita uma definição que fixe o outro, porque tanto
suas práticas como os sujeitos que a compõem estão
em permanente movimento fazendo com que toda descrição,
como todo conhecimento, seja parcial e provisória.
A avaliação se configura como entre-lugar quando a professora
reconhece ser esse processo constituído no diálogo entre
aprendizagem e ensino, entre alunos/as e professores/as, entre culturas
– estando a cultura escolar aí incluída. A avaliação
emerge como um processo dialógico em que mesmo narrando o outro
cada um está também narrando a si mesmo. A avaliação
como entre-lugar é um processo dialógico, marcado pela reflexão
compartilhada sobre os modos singulares de se participar do coletivo em
que se realiza a dinâmica aprendizagemensino no cotidiano escolar.
O entre-lugar, por sua fluidez, impede a demarcação de barreiras
que a classificação demanda. Essa mesma fluidez potencializa
a investigação do processo aprendizagemensino, pois a multiplicidade
abre sempre a possibilidade para o novo, para o ainda não pensado,
para o imprevisto. As professoras vão reconhecendo nas ações
cotidianas de suas salas de aula inúmeras possibilidades de investigação
da dinâmica pedagógica que são invisibilizadas pelos
instrumentos e procedimentos tradicionais de avaliação.
Em busca de uma prática transformada, no caso citado, a professora
entende ter que se manter dentro da regra para a ela se opor. Expressa
sua percepção de dois momentos da avaliação:
a avaliação burocrática e vinculada ao controle,
que não pode deixar de ser feita; mas também a necessidade
de uma avaliação que intensifique o diálogo com a
criança, conectando a relação aprendizagemensino
ao permanente processo em que se tecem novos conhecimentos. Não
há, nessa proposta, momentos específicos para avaliação
ou instrumentos construídos com essa finalidade, todas as produções
infantis oferecem informações significativas para uma melhor
compreensão de seu processo, desde os exercícios que realiza
até as brincadeira que inventa ou o modo como soluciona problemas
no recreio. Todas as situações apresentam informações
sobre o conhecimento, a aprendizagem e o desenvolvimento da criança
e dão indícios dos trajetos realizados, dos percursos evitados,
dos caminhos através dos quais seu modo peculiar – diferente?
– de aprender e de expressar seus conhecimentos vai sendo produzido.
A avaliação, assim considerada, assume a complexidade da
relação aprendizagemensino e do cotidiano escolar no qual
se realiza.
Através de um diálogo intenso com seus alunos e alunas a
professora pode recolher essas informações, sendo o diálogo
igualmente indispensável para fazer desse maior conhecimento que
a professora obtém de cada um de seus alunos e alunas, de sua turma
e de si mesma diante do trabalho que realiza um elemento que potencializa
a relação aprendizagemensino. A avaliação
como entre-lugar tece um diálogo necessário e nele se tece
quando se realiza como uma prática de investigação
(Esteban, 1999) que estimula a reflexão, incorporando a diferença
à dinâmica pedagógica.
A diferença enriquece o processo aprendizagemensino, trazendo possibilidades
de ampliação permanentemente do conhecimento. Acolher a
diferença convida à permanente reflexão sobre o conhecimento
e sobre o processo de conhecer, pois só se vê o que se compreende,
como nos ensina Von Foerster (1996). Sendo assim, não só
o conhecimento e a aprendizagem da criança alimentam os processos
investigativo e reflexivo, pois a compreensão da professora sobre
os processos infantis e sobre as relações estabelecidas
também está constituída por seus conhecimentos prévios,
preconceitos, pressupostos, desconhecimentos. Também é importante
acrescentar a relevância da filiação de cada uma a
projetos com ênfase na regulação ou na emancipação,
na perspectiva apresentada por Boaventura Santos (2000), e dos significados
que vão sendo produzidos nos muitos diálogos estabelecidos
na escola. A compreensão que a professora adquire, pela avaliação,
do processo aprendizagemensino precisa ser objeto da reflexão.
Na configuração da avaliação como uma prática
de investigação, constituída pelo diálogo
que conecta o coletivo no qual a relação aprendizagemensino
se realiza, a diferença mostra-se especialmente relevante. Não
porque o processo pedagógico precise transformar a diferença
em igualdade; sua relevância está na possibilidade da diferença
transformar o processo pedagógico, contribuindo para sua articulação
a um amplo processo social de emancipação humana.
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