Denise FRAGA (UNESP- IBILCE)
Em setembro de 1894, um capitão francês de
origem judia, Alfred Dreyfus, é acusado de espionagem: ele teria
entregue segredos militares franceses ao exército alemão.
Baseado em uma única e insipiente prova, uma carta não assinada
e não datada, cuja caligrafia apresentava semelhanças com
a do capitão, o Conselho de Guerra condena-o à expulsão
do exército e ao degredo perpétuo na Ilha do Diabo, colônia
penal francesa situada na América do Sul. Anos depois, em 1897,
descobre-se que a carta havia sido escrita pelo comandante Esterhazy,
conde da velha nobreza húngara, afeito ao jogo e à vida
boêmia. A condenação de Dreyfus foi estratégica:
ela desviaria o olhar das autoridades, ocultando os verdadeiros traidores
e colocando em cena o suspeito ideal num período de forte anti-semitismo
na França. O capitão só seria totalmente inocentado
em 1906, quando foi reintegrado ao exército e condecorado como
Cavaleiro da Legião de Honra.
O “Caso Dreyfus” (L’Affaire Dreyfus) teve grande repercussão,
dividiu os partidos políticos, a imprensa e a sociedade em dreifusistas
(petencentes à esquerda liberal e favoráveis à revisão
do processo) e antidreifusistas (simpatizantes da direita conservadora
e anti-semita, que se opunham à revisão do processo, invocando
a honra do exército). O Caso também transforma-se em tema
de uma vasta produção literária, sendo retomado por
escritores como Anatole France, Émile Zola, Charles Péguy,
Marcel Proust, Maurice Barrès e Roger Martin du Gard.
O engajamento de Zola na campanha dreifusista acontece em novembro de
1897. Quando o Caso eclodiu, em 1894, o escritor estava em Roma e, por
ter pouco acesso aos jornais franceses, desconhecia o processo movido
contra Dreyfus, que lhe era então totalmente indiferente. Somente
ao retornar à Paris ele tem a oportunidade de conhecer alguns documentos
e esses modificam sua interpretação dos fatos. Pela primeira
vez em trinta anos de sua carreira de escritor, Zola vê uma razão
de agir que o leva além de sua paixão de criar: trata-se
de denunciar um crime cometido diante de toda uma nação.
Para ele, Dreyfus era, sem dúvida, inocente e essa convicção
transparece, de modo intenso, em seus artigos, favoráveis, sobretudo,
à revisão do processo.
O artigo intitulado “Carta ao Sr. Presidente da República”,
de 13.1.1898, é publicado no jornal “L’Aurore”.
Posteriormente, devido às várias acusações
feitas por Zola àqueles que julgava culpados pelas injustiças
cometidas contra Dreyfus, e por sugestão de Clemenceau, redator
do jornal, a carta passou a ser intitulada “J’accuse”.
O autor aí retoma, a partir de seu ponto de vista, todo o Caso,
desde seu início. Embora consciente do processo a que fatalmente
seria submetido, Zola dirige acusações aos generais do Exército
com a audácia e a força de um grande polemista, afirmando,
metaforicamente, ser a “luz”, ou seja, a verdade, sua única
paixão. Ao redigir “J’accuse”, ele utiliza procedimentos
retóricos, objetivando persuadir seus leitores, mostrando-lhes
seu engajamento pessoal no Caso.
Para conferir um tom enfático a seu discurso, o escritor utiliza
um certo tom hiperbólico, empregando expressões como “explosão
da verdade”, “campanha abominável”, recurso esse
que lhe possibilita dramatizar e conferir grande solenidade a sua declaração
de guerra contra a injustiça. O uso de metáforas como “paixão
da luz”, “o grito de minha alma”, demonstra também
um forte envolvimento afetivo. Ao demonstrá-lo, Zola coloca todo
seu status de reconhecido homem de letras na batalha pela revisão
do processo de Dreyfus.
O léxico agressivo, evidenciado em palavras como “mentiras”
e “fraudulento”, e em expressões como “crime
jurídico”, “roubar o direito”, é responsável
por imprimir ao manifesto um tom polêmico e traduzir a indignação
do autor face à leviandade de acusações baseadas
em tão frágeis provas e de um julgamento realizado a portas
fechadas pelo Ministério de Guerra.
A insistente repetição “J’accuse”, título
do manifesto, no início dos parágrafos, confere um ritmo
vigoroso ao texto, sugerindo ao leitor a determinação e
a urgência das acusações feitas pelo autor. Tal repetição
produz, simultaneamente, um efeito de ritmo e de sentido. Quanto ao ritmo,
a repetição propõe um “martelar” enérgico
e decidido. Quanto ao sentido, evidenciando o termo “acusar”,
Zola compacta numa única palavra a intenção e o tom
provocativos do texto, chamando para si a responsabilidade das acusações.
Ao longo do texto, transparecem os valores em nome dos quais o escritor
ousa questionar uma decisão da Justiça. Primeiramente, podemos
destacar, na expressão “paixão da luz”, uma
ligação com o ideal racionalista do século XVIII,
no qual as “luzes” simbolizavam a razão, o espírito
crítico em oposição ao obscurantismo e o dogmatismo
ideológico. Em seguida, ao afirmar que suas acusações
são feitas “em nome da humanidade que tanto sofreu e que
tanto tem o direito à felicidade”, Zola deixa implícita
sua fé no progresso: oposição do passado, ligado
ao sofrimento, com o futuro, responsável por conceder aos homens
o direito à felicidade. Esse é o ideal democrático
e humanista da revolução francesa de 1789, baseado nos direitos
fundamentais do homem e da igualdade entre eles, sobretudo perante a Justiça.
Por fim, o escritor enfatiza a questão da liberdade de consciência
em sua expressão indignada “meu protesto inflamado é
apenas o grito de minha alma”. Nessa frase, ele reivindica o direito
à desobediência civil face ao estado quando o indivíduo
possui a íntima convicção de ter razão contra
a lei. Os valores expressos no manifesto (razão, progresso e liberdade
de consciência), são partilhados pelos franceses e pelos
demais europeus. Colocá-los, habilmente, em evidência colabora
para uma maior adesão dos leitores a seus argumentos.
Pouco antes da publicação de “J’Accuse”,
o Caso havia tomado consideráveis proporções. Ele
era o assunto principal da imprensa, que se pronunciava contra ou a favor
de Dreyfus. “J’Accuse” foi responsável por reforçar
esse movimento e também por impulsionar a revisão do processo
do capitão.
“J’Accuse” faz o Caso sair do estreito quadro jurídico
e ir para as ruas, para o debate popular. Ainda mais, esse artigo fazia
nascer verdadeiramente o Caso, que ultrapassava o drama do capitão
e da revisão de seu processo, para colocar o debate sobre a questão
essencial das escolhas feitas pela sociedade. Zola, sozinho, agiu contra
o Estado, o exército, o governo e a opinião pública
e obrigava cada um a tomar uma decisão. Sua postura audaciosa encorajou
os intelectuais e a juventude literária a tomar partido, pois,
muitos, mesmo convencidos da inocência de Dreyfus, abstinham-se
de o declarar abertamente, temendo as repressões sociais advindas
aos que assumiam uma postura dreifusista. Zola vale-se de sua habilidade
retórica a fim de combater a intolerância, a injustiça:
ele coloca sua celebridade a serviço da causa defendida.
L’Île des pingouins (A ilha dos pingüins), de 1908, é
uma narrativa alegórica da história da França: nessa
obra, a sociedade francesa é representada sob a forma de uma tribo
de pingüins transformados em homens. Enganado por problemas de visão,
o apóstolo Maël batiza os pingüins de uma ilha na qual
aportara, confundindo-os com homens de pequena estatura. Tal fato gera
discussões no reino dos céus, levando santos gregos e latinos
a decidirem-se, depois de muitas discussões acerca das substâncias
conformadoras da alma humana, a conceder-lhes uma alma imortal. Assim,
a História da França será observada, desde suas origens
até a Terceira República, de modo sarcástico, fustigando
os personagens históricos e os políticos ambiciosos que
nela tiveram lugar. Paris é representada pela capital da Pingüínia,
Alca
O erro do apóstolo confere um triste início à história
da Ilha e toda ela se ressente de sua gênese. O homem da Pingüinia
não foi criado pela vontade de Deus, o qual, ao contrário,
vai encontrar-se em grande embaraço diante desse fato. Ele nasce
do engano de um velho cujos olhos estavam crestados pelo gelo do Pólo.
Animal impelido às obrigações morais e à religião,
ele não pode cumpri-las nem compreendê-las. Portanto, sua
história será toda odiosa e absurda, absurdidade essa que
domina toda a narrativa. Ao ler o romance, sem dúvida, o leitor
é levado ao riso; por outro lado, ele também pressente a
catástrofe que preencherá os espaços, os tempos e
o homem.
Dividida em oito livros, L’Île des pingüins apresenta,
no sexto livro, intitulado “Os tempos modernos – O Caso dos
oitenta mil fardos de feno”, a transposição do Caso
Dreyfus. O romancista narra um caso de Estado envolvendo um oficial judeu,
chamado Pyrot, acusado do desvio de oitenta mil fardos de feno em favor
da Marsuínia, inimiga da Pingüinia. Como Dreyfus, Pyrot foi
condenado ao degredo e preso em uma gaiola. O Caso divide a Pingüinia
em “pyrotianos” e “antipyrotianos” e, como Dreyfus,
Pyrot também é defendido por intelectuais, como o personagem
Colomban, através do qual o autor sugere a figura de Émile
Zola.
O humor e o tom burlesco dos episódios que compõem os capítulos
de L’Île, não deixam de refletir um certo amargor.
Tal sentimento advém da fracassada esperança que o romancista
depositou na revisão do processo de Dreyfus e num socialismo reformista.
Daí a transposição absurda do Caso no livro VI. O
grotesco “caso dos oitenta mil fardos de feno” será
alimentado pelo forte anti-semitismo reinante no país e fomentado
por oficiais cujos postos militares eram os mais elevados. Enquanto Pyrot
cumpria sua pena e proclamava sua inocência, esses oficiais fabricavam
provas contra ele, provas essas que acabaram por ocupar dois andares do
Ministério da Guerra.
Em uma transposição livre do Caso, o famoso “bordereau”,
o documento sobre o qual repousavam todas as acusações contra
Dreyfus, torna-se oitenta mil fardos de feno entregues a uma potência
estrangeira. O “faux Henry”, uma das provas forjadas pelo
coronel Henry para avultar o processo de Dreyfus, transforma-se em quatorze
milhões de papéis diversos, sem qualquer relação
com o processo do capitão. Essas infrações em relação
aos relatos oficiais da História lembram que a ficção
tem o direito de jogar livremente com os fatos exteriores, pois esses,
uma vez adaptados às exigências romanescas, tornam-se elementos
constitutivos de sua estrutura interna e adquirem, assim, um estatuto
fictício. Dessa forma, somente alguns aspectos do Caso são
tomados pelo ficcionista para fundamentar sua narrativa, permitir sua
identificação pelo leitor e fazer com que a transposição
satírica do Caso desvende o seu posicionamento ideológico
face a ele.
Os personagens em L’Île - representantes eclesiásticos,
intelectuais ou políticos - são habilmente esboçados
e apresentados como figuras caricaturais e patéticas: todos eles
estão envoltos por uma esfera de ironia e sátira que leva
ao riso. Assim, a técnica da caricatura impressa a eles, via hipérbole,
permite ao romancista explicitar livremente sua veia anticlerical, antimilitarista
e, até mesmo, anticapitalista. Além dos personagens, a própria
História é caricaturizada, pois os fatos históricos,
incrivelmente exagerados, tornam-se cômicos e ridículos.
Dessa forma, tanto os “dreifusistas pyrotianos” quanto os
antipyrotianos são caricaturizados. Colomban, transposição
de Zola, é um “pequeno homem míope, carrancudo e cabeludo”.
Ao colar nos muros de Alca folhetos proclamando a inocência de Pyrot,
ele é espancado e perseguido pela multidão, caindo, por
fim, num esgoto. Sentado no escuro, em meio à água lodosa
e a ratos gordos, ele conclui: “Bem vejo que a luta será
rude”.
O astrólogo Bidault-Coquille, em quem podemos reconhecer o próprio
romancista, ao ler casualmente uma memória de Colomban, passa a
defender a causa de Pyrot nos cafés de Alca, nos quais discursava
fervorosamente em reuniões públicas. Em uma dessas reuniões,
ele conhece Maniflore, “uma velha prostituta pobre, esquecida, fora
de uso, de repente transformada em grande cidadã” (FRANCE,
1980, p. 188). Essa personagem é transfigurada pela paixão
pyrotiana e desperta a afeição do astrólogo; eles
formam um casal burlesco. Os combates entre pyrots e os antipyrots, têm
lugar todos os dias na capital Alca. A campanha pyrotiana fracassa e o
país volta a sua rotina. A República é submetida
ao controle das grandes companhias financeiras; o exército consagra-se
exclusivamente para a defesa do capital; os ricos recusam-se a pagar sua
justa parte dos impostos e os pobres, como no passado, pagam por eles.
É então que Bidault-Coquille, desiludido de seus ideais
de justiça e abandonado por Maniflore, reflete sobre suas ações,
contemplando amargurado e desencantado a cidade adormecida: “Sonhavas
em restabelecer a justiça de um só golpe em teu país
e no mundo. Eras um bom sujeito, um sincero idealista sem muito de filosofia
experimental. (... ) E agora que perdestes tuas ilusões, agora
que sabes como é duro corrigir as injustiças e que é
preciso sempre recomeçar, voltas aos teus asteróides. Fazes
bem; mas volta com modéstia, Bidault-Coquille!” (FRANCE,
1980, p. 209). Assim, a Paris generosa, considerada um dos maiores centros
culturais da Europa, é apresentada ficcionalmente por uma Alca
injusta e condenada desde sua origem a ser apenas a capital de cidadãos
que não passam de pingüins transformados em homens após
o batismo equivocado de um apóstolo com vistas embaçadas.
O riso, advindo das situações burlescas nas quais se envolvem
personagens caricaturais, perpassa toda a obra. Contudo, sob esse riso,
revela-se a decepção de um intelectual que viu frustrados
seus anseios de mudança social. Ao satirizar os fatos, o romancista
busca questioná-los, lançando um olhar crítico aos
meandros que compõem a História. Como o próprio narrador
revela no Prefácio de L’Île, ao adulterá-la,
ele legaria a seus compatriotas um grande benefício, pois esses,
quando vissem suas ações caricaturadas e despojadas de tudo
quanto lhes era motivo de ufania, a julgariam melhor e, quem sabe, ganhariam
em sensatez. A narrativa amarga, revela a ótica pela qual o escritor
via o mundo e o homem: o primeiro totalmente absurdo e o segundo irremediavelmente
mau; e eis a visão de ambos que ele busca desnudar em suas páginas.
Enfim, o trabalho, em sala de aula, com os textos, “J’accuse”,
o manifesto de linguagem polêmica e desafiadora e L’Île
des pingouins, uma narrativa satírica da história da França,
seria pertinente para mostrar aos alunos como um mesmo fato histórico,
o Caso Dreyfus, motiva uma variedade de discursos, de leituras e de estéticas
diversas.
Bibliografia Básica:
BANCQUART, M. C. Paris: Belle Époque par ses écrivains.
Paris: Adam Biro, 1997.
FONTANIER, p. Les figures du discours. Paris: Flammarion, 1977.
FRANCE, A. A ilha dos pingüins. Trad. José Guilherme Linke.
Rio de Janeiro, Ediouro, 1980.
FRANCE, A. L’Île des pingouins. In: Oeuvres Complètes.
Paris: Calmann-Lévy, 1929. V.18
FREITAS, M. T. de. Literatura e História: O romance revolucionário
de André Malraux. São Paulo: Atual, 1986.
MIQUEL, P. L’Affaire Dreyfus. Paris: Presses universitaires de France,
1961.
TRINGALI, D. Introdução à retórica: a retórica
como crítica literária. São Paulo: Duas Cidades,
1988.
VANOOSTHUYSE, M. Le roman historique: Mann, Brecht, Döblin. Paris:
PUF, 1996.
Zola, E. Accuso! (O Caso Dreyfus) O maior libello contra a maior injustiça
humana. São Paulo: Edições e Publicações
Brasil, s/d.
ZOLA, É. J’accuse. Émile Zola et l’Affaire Dreyfus.
Paris: Librio, 1998.