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LEITURA DE TEXTOS ACADÊMICOS COMO DADOS DE ANÁLISE: O CASO
DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA SOBRE RPG
Thomas Massao Fairchild - Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo – FE-USP
Há um momento da pesquisa em que a praxe manda
que nos voltemos ao passado e invoquemos as vozes de nossos precursores.
Buscamos inserir nossas próprias palavras no fio desse verbo que
nos precede, nos atravessa e a nós sobrevive. A produção
científica exige as homilias do estado da arte, momento em que
mapeamos o campo do conhecimento já produzido sobre nosso objeto
de estudo.
Pode-se pensar que esse levantamento cumpre diversas funções.
Quando realizado pela primeira vez, ainda nos inícios do projeto,
é sobretudo uma experiência de aprendizado: banhamo-nos nas
palavras alheias, galgamo-las como quem sobe um monte para depositar em
seu topo uma nova pedra; às vezes nos frustramos ao encontrar nossas
idéias surpreendentemente antecipadas por algum cruel antecessor
que não nos deu tempo de tê-las. Tal é o espírito
da produção acadêmica, e um dos propósitos
dos acervos de dissertações e teses que toda biblioteca
mantém: vislumbrar o estado de conhecimento acerca de um determinado
problema, evitar a duplicação de esforços e dar condições
para que os novos trabalhos sempre preencham um nicho ainda vazio, indo
além do que até então já foi coberto pelo
discurso científico.
É possível também que, em uma etapa mais avançada
do trabalho, o levantamento do estado da arte sobre uma questão
nos revele resultados conflitantes com aqueles obtidos por nós.
Muito evidente nas ciências que se pautam pelo paradigma cartesiano,
esse conflito não está menos presente nas humanidades: um
dado novo ou um recorte diferente – uma entrevista fortuita, um
achado arquivístico – permitem rever interpretações
anteriores, debater métodos e modelos teóricos, discutir
instrumentos de pesquisa ou as condições de leitura dos
dados produzidos por eles. Esta forma de lidar com a fortuna crítica
representa, na trajetória individual do pesquisador, um passo além
daquele dado de princípio: o momento em que, depois de termos mantido
os ouvidos bem abertos, ousamos enfim abrir a boca.
Este artigo tem por fim discutir uma perspectiva que está ao lado
dessas duas formas de lidar com a produção científica
e se define, em princípio, por reivindicar um lugar de leitura
desde o qual o olhar leitor não se reduza ao lugar conferido a
ele pelo próprio objeto lido. Trata-se de uma postura normalmente
adotada perante os dados de pesquisa, especialmente nas áreas que
lidam com a linguagem como objeto de análise, mas que é
por vezes suspensa quando se trata da leitura dos textos tidos como fundamentais
ou embasadores. O que está em questão, portanto, é
a possibilidade de conferir ao texto acadêmico um estatuto semelhante
ao que se assume sem pudor diante dos dados, estatuto este que não
coincide necessariamente com aquele intentado pelo próprio texto
acadêmico. Essa perspectiva não isenta o pesquis4ador de
tomar a produção científica como alicerce de sua
própria obra, evidentemente, mas o instiga a fazê-lo com
o olhar de um pedreiro e não com o de um simples morador da casa
a ser erguida.
Tal perspectiva não está atrelada ao rechaço de uma
tradição ou de um determinado repertório de trabalhos,
nem é o mesmo que reconhecer as insuficiências ou falhas
de trabalhos anteriores (o que não significa que o exclua). A esse
respeito, é preciso reconhecer que, se há algo de covarde
ou ingênuo em ser títere sobre o colo de algum vulto imponente,
também ao refutar um postulado teórico pode-se estar participando
de semelhante ato de ventriloqüismo, já que a Universidade
tem espaço suficiente para acolher aos partidários de todas
as causas. Inversamente, o fato de corroborar um teorema ou uma análise
anterior não implica por si só ausentar-se da crítica.
A perspectiva de tomada da produção acadêmica como
dado não está no eixo da confirmação/refutação
de um conhecimento que se acumula e se refina pela sobreposição
de acertos e erros, mas no horizonte da atribuição de sentido
à experiência e da potencialização do discurso
como forma de inscrição do sujeito na cultura.
A questão será tratada a partir de uma leitura da produção
científica sobre os roleplaying games ou RPGs, nome inglês
para “jogos de interpretação de papéis”
– tema sobre o qual não há uma vasta literatura acadêmica,
e que, talvez por esse motivo, permita mostrar mais nitidamente algumas
das operações que regem o mistério dos inícios.
Os roleplaying games são um tipo de jogo já bastante popular
no Brasil, e nos últimos anos vêm sendo apontados como potencialmente
educativos por conta de envolverem a leitura de livros de regras e a montagem
e contação coletiva de histórias. Em minha pesquisa
de Mestrado, investiguei o discurso pelo qual os RPGs vêm sendo
investidos de uma nova significação “escolar”,
recolhendo para tanto entrevistas com jogadores, excertos de sites sobre
o assunto, e-mails trocados em uma lista de discussão sobre RPG
e educação e algumas publicações – dentre
elas, uma tese de Doutorado e duas dissertações de Mestrado
. Buscava apontar regularidades dispersas ao largo dessas séries
materialmente descontínuas, tecendo a partir daí algumas
conjecturas sobre as condições comuns de sua produção.
Esse viés permitiu descentralizar o problema da validade dos argumentos
apresentados pelos que são favoráveis ou contrários
a tal intervenção (sem no entanto ignorá-lo) e atentar
justamente para o que o RPG, como objeto de discurso, mostra de permutável,
tem valor significante. Sob essa luz, há uma série de indícios
que dizem de um lugar ocupado no discurso e de um funcionamento: eis que
o roleplaying game surge em enunciados cujo teor antecede sua associação
à escola e que comportariam igualmente outros objetos, de forma
que as justificativas de sua introdução na escola falam
menos de uma descoberta inusitada do que de uma aceitação
prévia da necessidade de intervir no ensino por conta de uma suposta
ineficiência.
Parece que o dizer do RPGista em algum momento se deixa captar por uma
formação discursiva (Foucault, 1989) que o interpela através
de alguns traços “escolarizáveis” do RPG –
a implicação da leitura, a semelhança com algumas
formas e temas literários, o trânsito pela língua
estrangeira, as qualidades lúdicas de sua prática –
e passa a produzir, graças a essa paridade, enunciados em série
sobre a escola, o professor e as benesses dos novos métodos. Esses
enunciados, se têm o frescor da novidade, ao mesmo tempo se legitimam
facilmente pelo que neles há de familiar, de já-visto, uma
vez que antes de tudo fazem retornar um saber anteriormente constituído
sobre a escola, seu papel, o que cabe ou não cabe fazer em relação
a ela, o que significa atuar em seu interior – um mapa da distribuição
de relevâncias de uma cultura.
Daí releva a inviabilidade de encarar um elemento aparentemente
inédito, tal qual os roleplaying games se apresentam no campo do
ensino, como se este, antes de adentrar o discurso científico,
estivesse virgem ou ao menos pudesse ser tomado em estado bruto por um
olhar leitor. Tratar o RPG como sempre já objeto de um discurso
permite ressignificar o caráter inovador de sua proposição
pedagógica, inserindo-o menos sob a perspectiva de um pensamento
fundante do que sob a perspectiva das relações significantes
no discurso – uma questão de leitura.
Por esse motivo, a produção acadêmica sobre o tema
dos roleplaying games pôde ser encarada em uma dupla função,
ao mesmo tempo cumprindo o papel de ilustrar um quadro de conhecimento
já constituído e sendo passível de análise
ao lado de outros enunciados em que também se presentifica um discurso
sobre o RPG. Tal postura assume que a produção de teses
e dissertações sobre os roleplaying games não apenas
ilumina um burburinho de idéias no momento em que elas se agitam,
mas se constitui da mesma substância, pertence à mesma agitação
e age sobre ela.
De certa forma, trata-se de atentar para o caráter performativo
do enunciado científico: no limite, a simples existência
desses trabalhos é indicativa de uma gradual constituição
do RPG como objeto de relevância para a ciência, da qual decorre
e que reitera. Esse processo tem como efeito, alhures, solidarizar-se
à própria constituição do RPG como objeto
de relevância para a escola, uma vez que é razoavelmente
consensual que a ciência dê os critérios pelos quais
se discuta e avalie a legitimidade de um novo método ou conteúdo.
Assim, por exemplo, um postulado segundo o qual os enredos de RPG obedecem
às mesmas funções elaboradas por Propp em sua morfologia
dos contos maravilhosos (1984) não tem por único efeito
lançar luz sobre um parentesco dormente entre os jogos de interpretação
e um substrato literário oral, mas – pela via da função
comentário, conforme definida por Foucault (2003) – sustentam
tal parentesco e o confirmam como elemento passível de interesse
para o ensino escolar.
O exemplo provém da já mencionada tese de Sônia Maria
Rodrigues Mota, Roleplaying game: a ficção enquanto jogo
(1997), trabalho aparentemente pioneiro no país. Pelo lugar que
assumiu no cenário dos debates sobre o RPG (a autora foi palestrante
no II Simpósio RPG & Educação, e a tese recentemente
ganhou uma versão em forma de livro, sob o título Roleplaying
Game e a Pedagogia da Imaginação no Brasil), parece lícito
tomá-la como exemplo para ilustrar um tipo de leitura que não
se obste de conferir à produção acadêmica estatuto
semelhante ao dos dados de análise.
A autora inicialmente conceitua dos termos-chave para sua análise,
ficção e literatura, entendendo que a primeira é
inerente à atividade intelectual humana, ao passo que a segunda
é uma construção histórica e socialmente delimitada.
Sob esse ponto de vista, Mota vê o RPG como um produto da indústria
cultural, uma “máquina de multiplicar narrativas” (1997:
83) cujas matrizes remontam à história da literatura, mas
cujo produto é, antes de tudo, ficção.
Mota analisa os módulos básicos daquelas que seriam as três
linhas mais populares no Brasil – Vampiro: a Máscara, Advanced
Dungeons&Dragons e GURPS. Como não se propõe a fazer
um “estudo da recepção”, restringindo sua análise
aos livros propriamente ditos, é preciso antes de mais nada fazer
um ajuste terminológico, ressalvando que onde a autora fala em
características do RPG está na verdade falando de características
dos livros de RPG. Essa pequena manobra não é de pouca importância,
pois através dela se impede que recaia no implícito a diferença
entre um modo de jogar imaginado e prescrito na esfera editorial e um
modo de jogar efetivamente constatado na prática dos jogadores
– grosso modo, uma concepção de cultura embasada no
modelo de estratégias e táticas de Michel de Certeau (1994).
O equívoco metonímico de tratar de livros como se se tratasse
do roleplaying game ainda chama atenção para a necessidade
de mapear a abragência desse termo, já que sob a mesma bandeira
pode-se fazer referência a uma modalidade de textos (exposições
de regras; descrição de cenários, personagens e enredos
de jogo; etc.); a uma classe de objetos materiais (livros, revistas, encartes,
dados, ilustrações, miniaturas, etc.); a um conjunto de
práticas (a partida de RPG, as formas de ler os livros ou de aprender
a jogar com jogadores mais experientes, as modalidades de encontro e convívio
de jogadores); enfim, a um certo número de logotipos, marcas ou
títulos (White Wolf, Storyteller, D20, Forgotten Realms, MiniGURPS,
Coleção Aventuras Fantásticas, etc.). Todo esse conjunto
é emoldurado pela teia do discurso, o que implica que a forma como
seus elementos se associam ao domínio do sentido é opaca
e mediada pela linguagem. Daí resulta a necessidade de antentar
para que o discurso científico preserve seu lugar e não
tome a representação pelo objeto em si, acreditando na ilusão
da transparência e, por causa disso, deslocando-se para outro ponto
de enunciação que não aquele que se espera e se faz
crer.
“(...) por não se interrogarem sobre os pressupostos
implícitos na operação que consiste em decifrar,
em procurar o sentido das palavras, o ‘verdadeiro’ sentido
das palavras, os filólogos correm o risco de projetar nas palavras
que estão estudando a filosofia das palavras implicada no fato
de estudar as palavras (...)” (Bourdieu, 1990: 137)
Essa é, portanto, uma chave de leitura importante
para compreender desde onde Mota produz seu trabalho e remeter seus postulados
ao terreno de sua pertinência: um olhar pautado pela busca de um
valor literário intrínseco aos livros de RPG, independentemente
de qualquer problemática da leitura. Isso não significa
que seu trabalho esteja invalidado para os que se interessem pela leitura,
mas significa que um pesquisador da leitura não pode tomar suas
considerações sem levar em conta esta divergência
inicial. A proposta mais evidente, neste caso, parece ser a de ler Mota
com um olho aberto para os vestígios da leitora que se deixa inscrever
nas palavras da autora.
Sob esse prisma, Mota percebe duas “matrizes” de composição
distintas nos títulos de RPG que consulta – a primeira é
a lógica do software, que dita uma noção do livro
como sistema genérico de regras, sendo GURPS seu maior representante;
a segunda é a matriz literária, que implica a criação
de um mundo ficcional como elemento central do jogo, melhor representada
por Vampiro: a Máscara e seus afins. No apontamento dessa dupla
origem reside o reconhecimento de que o título de RPG é
um objeto em certa medida novo, e não se presta a uma leitura idêntica
à de outras formas de impresso, embora em alguns momentos aproxime-se
dela. Inserindo essas matrizes numa perspectiva diacrônica –
vale dizer, levando em conta que a marca GURPS é mais antiga que
Vampiro: a Máscara –, a autora chega a uma concepção
da história RPG como evolução cujo ponto de partida
seria o texto com ênfase nas regras e o ponto final, a superação
da necessidade das regras em prol de uma valorização da
narrativa:
“Em
pouco mais de duas décadas, o RPG americano conseguiu evoluir através
da competência, da originalidade e da ‘pilhagem’ narrativa,
do AD&D para o Vampiro. (...) É uma trajetória em direção
ao mercado, à ampliação da recepção
do RPG.” (1997: 138; grifos meus)
A partir
dessa assunção, Mota propõe-se a traçar uma
linhagem dos roleplaying games a partir da busca de suas “matrizes
narrativas” (op. cit.: 66), isto é, as formas literárias
das quais a narrativa do RPG teria herdado suas principais características.
A autora lança a hipótese de que a estrutura dessas narrativas
remontaria à dos contos maravilhosos, por sua vez ligados aos mitos,
comparando alguns motes comuns nas aventuras com as funções
elaboradas por Propp; ao mesmo tempo, a temática dos RPGs estaria
mais propriamente ligada aos romances seriados do século XIX (op.
cit.: 73), em que os motivos épicos e heróicos dos mitos
são investidos de uma dimensão humana. Essa temática
é recuperada por Kazuko Kojima Higuchi (2000) em um artigo entitulado
RPG: o resgate da história e do narrador, no qual a autora leva
adiante a premissa de Mota e ensaia uma “morfologia do RPG”
(op. cit.: 19), também com base em Propp. Em suas próprias
palavras:
“Os
RPGs mais simples apresentam basicamente o esquema:
a – início
H – combate
J – vitória (antagonista é vencido)
K1 – o objeto da busca é alcançado ou mediante a força
ou mediante a astúcia.” (Ibid.: 193-194)
Em seguida,
para ilustrar o esquema proposto, a autora analisa duas das possíveis
trajetórias de leitura de Aventura na Suméria . Conclui:
“Nesta
aventura, temos o esquema:
a F5 Pr Rs4
a – situação inicial;
F5 – objeto mágico cai nas mãos do herói ou
é encontrado por ele;
Pr – herói sofre perseguição;
Rs4 – herói se esconde durante a fuga”. (op. cit.:
197)
Mota aponta
que alguns títulos de RPG chamam a atenção do jogador
para essa estruturação da narrativa, chegando a propor nomenclaturas
próprias (como é o caso dos títulos da linha Storyteller
, cujo próprio nome, traduzível por “Contador de Histórias”,
indica um investimento nos significados literários). O trecho abaixo,
extraído do Livro do Mestre Dugeons&Dragons, fornece um exemplo:
“Uma
aventura começa com algum tipo de gancho, seja um boato sobre tesouros
num velho mosteiro abandonado ou um pedido de ajuda da rainha. O gancho
atrairá os PJs [personagens dos jogadores] para a ação
e os levará ao ponto onde a história realmente começa.
Esse ponto pode ser um lugar (como o mosteiro ou o palácio da rainha)
ou um evento (o roubo do cetro da rainha, que os PJs são incumbidos
de recuperar).
As aventuras são divididas em encontros. Geralmente, os encontros
estão associados às áreas de um mapa preparado pelo
Mestre. Também é possível elaborar os encontros usando
condições pré-estabelecidas e o seu cumprimento (ou
não), por exemplo: “se os personagens ficarem mais de uma
hora do lado de fora da caverna do druida, seus três ursos-coruja
treinados atacarão”. Os encontros de uma aventura estão
vinculados de alguma forma, seja por seu tema (todos os encontros durante
a viagem entre a cidade de Greyhawk, entre as montanhas de Crystalmist),
um lugar (todos os encontros nas ruínas do Castelo da Temeridade),
ou eventos (todos os encontros durante o resgate do filho do prefeito,
seqüestrado por Rahurg, o rei ogro).” (Cook et al., 2001: 97)
Uma percepção
semelhante se mostra neste quadro extraído de uma apostila do I
Simpósio RPG e Educação , em que a estrutura arquetípica
das narrativas de aventura é resumida em seus aspectos essenciais:
“ROTEIRO
DE CHRISTOPHER VOGLER
(a partir de Joseph Campbell)
PRIMEIRO ATO – APRESENTAÇÃO
MUNDO COMUM |
Conhecemos
o Herói em seu mundo cotidiano e ordinário, uma pessoa comum. |
CHAMADO À AVENTURA |
Algo
impele o nosso “Herói” na direção de uma BUSCA, uma JORNADA, uma
AVENTURA. |
RECUSA DO CHAMADO |
O
Herói reluta em empreender a jornada. |
ENCONTRO COM O MENTOR |
O
Herói recebe um conselho, item ou ajuda de um “MENTOR”. |
TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR |
O Herói diante do “PONTO SEM RETORNO”, o portal que elva ao mundo oculto.
O Herói atravessa o portal, cai, é arrebatado, transportado ou
transformado. O Herói deixa o seu mundo e se aventura no mundo
desconhecido. |
SEGUNDO ATO – CONFLITO
TESTES, ALIADOS E INIMIGOS |
O
Herói tem de enfrentar “TESTES” que vão “QUALIFICÁ-LO” como digno
de vencer. |
APROXIMAÇÃO DA CAVERNA OCULTA |
De
posse da “ARMA MÁGICA”, o Herói se aproxima do COVIL DO INIMIGO. |
PROVAÇÃO SUPREMA |
O
embate com o ANTAGONISTA. |
RECOMPENSA |
O Herói conquista sua vitória e o “PRÊMIO”. |
TERCEIRO ATO – RESOLUÇÃO
CAMINHO DE VOLTA |
O
Herói inicia a jornada de volta para casa. |
RESSURREIÇÃO |
O
Herói é revivido por poderes sobrenaturais. |
RETORNO COM O ELIXIR |
O Herói emerge do mundo ingerior com a “SOLUÇÃO MÁGICA”. |
Mota vê
nessa característica das narrativas de RPG (conforme prescritas
nos livros que ensinam a montá-las) uma possibilidade positiva
de democratizar conceitos dos estudos literários, embora critique
os livros por não mencionarem suas fontes. Para a autora, os títulos
de RPG propõem-se a ensinar o jogador a fazer ficção,
podendo atuar como uma forma de iniciação ao mundo das letras.
Por conta dessa característica, a autora chega a sugerir que a
iniciação promovida pelo RPG surgiria onde as instituições
fracassam em fazê-lo:
“(...)
os professores de Língua e Literatura, a instituição
escolar, as bibliotecas e o que mais se queira citar como setores responsáveis
por essa situação não conseguem, em onze anos de
instrução formal, iniciar o público às conexões,
à equivalência de estruturações. Não
conseguem iniciar à ficção.” (Mota, 1997: 41)
Vê-se
então que, mesmo não se propondo a tratar da possibilidade
de uso dos RPGs na escola, e escrevendo numa época em que ainda
não eram tão abundantes as propostas nesse sentido, Mota
apresenta aquele que se tornará o mote básico da argumentação
posterior: o reconhecimento de uma necessidade de suplência a métodos
escolares fracassados, neste caso diretamente ligado à valorização
do traço literário como fio que permite ligar o RPG ao panteão
de objetos escolares . Não parece sustentável que o tema
da escolarização dos roleplaying games decorra de uma apropriação
desse trecho particular, sobretudo pelo fato de não ser a escola
o foco principal do trabalho de Mota. O modo como essa afirmação
surge à margem dos caminhos mais batidos pela pesquisadora –
vale lembrar Ginzburg em suas considerações sobre o método
Morelli (1989: 144) – sugere, pelo contrário, que as condições
para dizê-lo já estavam prefiguradas antes mesmo que ganhasse
volume o discurso em prol de um RPG didático. Tratando dos parentescos
literários de um jogo cada vez mais popular, Mota sem querer resvala
no bojo de uma problemática em gestação.
Resta avaliar as contribuições que a tese sobre as matrizes
literárias do RPG oferece a um estudo preocupado com a leitura.
Inicialmente, é necessário notar que a morfologia de Propp,
se de fato capta elementos estruturais e temáticos dos enredos
de RPG, tem como ônus destacar apenas aquilo que o jogo tem em comum
com outras formas de narrativa. As funções se aplicam igualmente
ao enredo de filmes, novelas, histórias em quadrinhos e obras literárias,
como já percebeu Rodari (1973: 67) – “a quem se interessar,
que se exercite confrontando a seqüência de ‘funções’
com a trama de qualquer um dos filmes do Agente 007: surpreendentemente
encontrará um grande número delas, às vezes na ordem
exata, tão viva e insistentemente presente está a estrutura
fabulística na nossa cultura”. Dessa forma, localizá-las
em mais uma forma de narrativa pouco acrescenta ao que já se sabe
sobre as próprias narrativas. Mais interessante talvez fosse o
caminho inverso, pelo qual não se procuram nos dados apenas as
saliências que coincidem com um modelo teórico dado mas justamente
aqueles elementos que não se encaixam em nenhum quadro previsível.
Ressoa o alerta de Todorov: “A realidade é sempre suficientemente
complexa para ilustrar qualquer teoria (...).” (1999: 240-241).
Independentemente dessa questão, há um aspecto do trabalho
de Mota para o qual uma reflexão sobre a leitura é imprescindível.
Ao supor que há um movimento evolutivo dos roleplaying games, tendo
como ponto final a aproximação do jogo a certas fórmulas
narrativas e literárias, é preciso determinar em que medida
Mota não está fazendo eco a uma leitura que é a do
próprio RPGista. O que precisa ser posto em cena, sob essa perspectiva,
não é propriamente o parentesco das narrativas de RPG, mas
a possibilidade de que sua associação a um substrato literário
tradicional pertença a uma imagem com que o jogador de RPG representa
a si mesmo, reconhecendo a potência cultural dessas manifestações
– confirmada, dentre outros lugares, no próprio trabalho
de Mota. Essa possibilidade urge ser investigada ainda mais pelo fato
de Mota trabalhar sobre os livros de RPG e não sobre a forma como
estes são lidos pelo seu público, uma vez que uma coisa
e outra não se equivalem. É lícito supor que nos
impressos esteja presente, antes de mais nada, uma imagem desejável
do que são o jogo e o jogador, imagem passível de se refletir
nos lugares em que todo consumidor anseie ver a si mesmo – lugares
cujo prestígio justifique a compra de produtos nos quais esteja
inserida a promessa de acesso a eles.
Mota afirma que essa “evolução” do RPG é
“uma trajetória em direção ao mercado, à
ampliação da recepção do RPG” (1997:
138). Parece, todavia, que o RPG não passou apenas por uma ampliação
de seu público, adaptando-se a um leque de gostos e expectativas
mais diversificado; ao lado desse movimento caminha uma reorganização
dos próprios significados do jogo, no qual o processo de escolarização
tem um importante papel. O que distingue a nova geração
de Vampiro: a Máscara da velha guarda de Dugeons&Dragons não
é tanto um esforço para atender à urgência
humana pelo narrar, mas antes uma transformação do estatuto
do RPG: já dotado de um público disposto a consumi-lo como
jogo, em certo momento descobre-se que é possível vendê-lo
a outro público como literatura. A exaltação de “temas
adultos”, o pudor da regra e a ênfase no aspecto interpretativo,
marcas da linha Storyteller que Mota identifica como aspectos positivos
da “evolução” do jogo, parecem mais indícios
de seu movimento em direção a um campo de maior prestígio.
Os sentidos ligados à brincadeira e ao entretenimento vão
dando lugar a outros. Abre-se a porta às mulheres: a imagem do
praticante de RPG torna-se mais aceitável em vista de um ideal
feminino, associando-se a valores como a sensibilidade e a fruição
estética. Abre-se a porta ao adolescente (especialmente o dos anos
1990, que ainda precisa ser formado como consumidor): rebeldia e tensão
erótica, veiculados como parte do que seja viver a puberdade, incorporam-se
à temática do jogo. Enfim, abre-se a porta da escola: os
dados são postos de lado e avulta-se a componente de leitura, cada
vez mais associada a um ideal escolar-literário.
Esse movimento não pode ser restringido a uma estratégia
calculada de potestades editoriais, embora também não caiba
desprezar as intenções nesse sentido. Trata-se de um movimento
da cultura, que em seu próprio interior demarca zonas de preferência,
distribui tolerâncias e tria sujeitos. O olhar que leva Mota a reconhecer
como evolução a preferência dada por alguns editores
aos traços literários do jogo é um olhar que se solidariza
com seu próprio objeto de escopo. Ora, o fato de uma tese de Doutorado
reconhecer esse movimento como evolução pode apenas encorajar
a produção editorial a esmerar-se nesse caminho, bem como
dá momentum à compreensão dos próprios RPGistas
sobre o jogo que praticam. A dança arriscada consiste em um arco
pendular no qual a força de uma interpretação já
proposta pelo RPGista no momento em que o olhar do pesquisador se debruça
sobre o RPG favorece uma interpretação solidária
a esses sentidos por parte do pesquisador, cujo enunciado, a seguir, podendo
conferir a essa interpretação o estatuto de verdade (baseado
no mito de que o discurso da ciência é um discurso transparente),
retorna ao RPGista como confirmação daquilo que, no princípio,
é sua própria motivação – tal qual a
imagem mítica da serpente Uroboros.
Há que se ressaltar, no entanto, que Mota não é sempre
solidária ao que encontra. Sua chave de leitura, determinada pela
escolha de alguns traços associáveis ao texto literário
e à narrativa ficcional, produz como resíduo passagens em
que fica marcado seu estranhamento como leitora de um tipo de livro com
que, a princípio, não tem familiaridade. Comentando o capítulo
“Desvantagens”, de GURPS: Módulo Básico (Jackson,
1994), a autora diz:
“O
único defeito sério desse capítulo são os
testes. Eles fracionam o texto, impedem que as relações
sejam estabelecidas.” (Mota, 1997: 131, grifos meus).
Mota se
refere à presença de tabelas, caixas de texto, notas, ilustrações
e legendas intercaladas ao corpo principal do texto. Ora, o juízo
de valor embutido na escolha lexical sugere um olhar que se debruça
sobre o objeto a partir de um ideal de livro e de leitura para o qual
o texto que explica uma regra, levando o leitor a reler exemplos ou consultar
tabelas em outras partes do livro, seria menos importante do que aquele
que descreve o cenário do jogo, permitindo uma leitura mais linear.
Fica patente o estranhamento causado pelo descompasso entre um modo de
ler proposto pelo título e uma expectativa de leitura diferente
por parte do leitor, que culmina na escolha da palavra defeito para nomear
justamente aquilo que poderia caracterizar o impresso de RPG em sua particularidade.
Ao focalizar como desvio os elementos próprios desse tipo de impresso,
a análise de Mota projeta um modelo ideal de texto e torna-se pouco
sensível ao que o RPG pode apresentar de novo ao repertório
de seus leitores.
Se, pelo contrário, atentarmos a esse aspecto, veremos que na diagramação
característica dos livros da linha GURPS o texto principal ocupa
uma faixa correspondente a mais ou menos dois terços da largura
da página, enquanto o terço mais externo é ocupado
por notas, exemplos, dicas, regras alternativas, tabelas simplificadas
e outros textos de caráter acessório. Ao leitor é
possível circular por esses fragmentos fora da ordem pré-estabelecida
pela própria seqüência em que aparecem no título,
captando trechos de texto e buscando informações rapidamente,
conforme a necessidade ou a vontade exijam. O estranhamento perante esse
modo errático de ler, que GURPS leva ao extremo, faz com que Mota,
após constatar sua característica de software, classifique-o
depreciativamente:
“Para
o comum dos mortais acostumado, desde a invenção da escrita,
com o predomínio da estrutura linear em textos informativos, a
forma do Gurps é algo próximo à tortura mental.”
(Mota, 1997: 169; grifos meus)
Está
claro que a autora parte de uma imagem do livro como suporte restrito
a alguns tipos de texto, ignorando outras formas de escrita cuja forma
também pode ser a do livro (ou, ao menos, da brochura) e cuja leitura
não é, absolutamente, linear – o dicionário,
a enciclopédia, os manuais de instrução, as revistas
etc. É de notar, portanto, que além de seus possíveis
parentescos com a literatura, há uma relação pouco
reconhecida do RPG com essas formas de impresso mais efêmeras. Esse
modelo de organização pode ser atribuído ao fato
de o título de RPG ser na maior parte das vezes um livro para consulta,
nem sempre lido integralmente e, sobretudo, relido inúmeras vezes
de forma descontínua e fragmentada. Em relação a
isso, Mota diz ainda:
“O
limite do narrar, do ponto de vista do mestre [de Dungeons&Dragons],
é que exemplos de ação, de cenário e de enredos,
estão, além de dispersos, misturados por 256 páginas
com infindáveis interrupções explicando cálculos,
tabelas e testes com dados, demandando várias leituras do mesmo
livro (...).” (1997: 164; grifos meus)
O que se
apresenta para a autora como problema, com efeito, pode ser considerado
positivo do ponto de vista da leitura. Ler um texto que descreve uma regra
não é mais, nem menos importante do que ler um texto narrativo;
ambos representam formas de escrita que é igualmente preciso dominar.
O que há, nesse trecho, é um certo pudor da regra que leva
a uma valorização dos traços mais propriamente literários
do RPG em detrimento de suas componentes lúdicas.
De todo modo, esses excertos têm o sabor da descoberta: contam-nos
do esforço de um olhar leitor diante de um texto desconhecido,
para o qual não há muitos modelos prévios. As “interrupções”
nomeadas por Mota indicam uma estratégia de leitura que, tendo
traçado certas expectativas, depara-se com um um texto organizado
de maneira imprevista, levando a leitora a se se reorganizar constantemente,
às custas de um dispêndio de energia que está claramente
expresso no tom da passagem. Se o título de RPG demanda várias
releituras, pode-se pensar que nesse processo o leitor estará se
descobrindo e se iniciando, o que é extremamente desejável.
Mas vale lembrar que a necessidade de releitura está sendo apontada
por uma leitora que sem dúvida não é iniciante, e
portanto deve dispor de um repertório de estratégias através
das quais pode gerenciar seu próprio aprendizado melhor do que
um leitor inexperiente.
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