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LEITURA
DE OBRAS PUBLICADAS PELO PROJETO MEMÓRIA GLOBO, ASSOCIADA AO DISCURSO
AUTO-PROMOCIONAL VEICULADO PELA REDE GLOBO
Márcia
Maria Corsi Moreira Fantinatti - Professora da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas / PUC - CAMPINAS
As Organizações
Globo, através de seu Projeto Memória Globo, lançaram
nos últimos anos duas importantes obras escritas, relacionadas
diretamente aos dois mais destacados itens de sua programação.
Em 2003, foi publicado o Dicionário da TV Globo Programas de Dramaturgia
& Entretenimento, sobre as telenovelas e em 2004, em comemoração
aos 35 anos de seu principal telejornal, lançou-se o livro Jornal
Nacional - A Notícia faz história, ambos pela Jorge Zahar
Editor.
No presente ensaio, propusemo-nos a examinar tais publicações.
Ambas oferecem terreno privilegiado para a análise sobre mídia,
cidadania e realidade uma vez que, nelas, exprimem-se pontos significativos
do atual discurso da Globo: enquanto fala de si, ela também se
refere diretamente à sua relação com instituições,
governos e movimentos sociais, nas diferentes conjunturas. E, segundo
supomos, deixa transparecer aspectos de uma ampla estratégia de
formação de uma nova imagem para a emissora. Ela refaz e
conta, enfim, um glorioso - e por assim dizer, central - papel na construção
e em defesa da democracia.
De modo difuso, porém persistente, as obras do Projeto Memória
Globo seguem os principais elementos presentes no discurso recente da
Globo que, de modo sintético, parecem convergir para ao menos três
pontos: 1) A Globo, enquanto estrutura empresarial, não recebeu
favores de governos, nem foi criada com apoio dos militares; 2) O jornalismo
da Globo não omitiu ou manipulou fatos, nem dispensou tratamento
desigual a políticos e partidos, conforme as conveniências
do momento; 3) As novelas da Globo não alienam, ao contrário,
remetem à realidade.
Buscamos problematizar o sentido dessa argumentação em seu
conjunto, detendo-nos principalmente em dois dos pontos mais polêmicos
que ela comporta: a atuação da Globo frente à campanha
pelas diretas em 1984 e a edição que efetuou do debate presidencial
Lula X Collor, em 1989.
A Globo em
suas relações com os governos militares: "fantasmas
do passado" que ainda assombram a emissora
Há décadas, a Globo se projeta como uma estrutura de poder
que não se pode subestimar , sempre procurando fazer crer que o
seu crescimento e a liderança da audiência são creditados
ao profissionalismo e ao rigor técnico, resumidos no potente selo
simbólico "Padrão Globo de Qualidade".
Mas desde seus primeiros passos, grande parte da intelectualidade interessada
em analisar as implicações recíprocas entre mídia
e poder, não se deixando impactar pelas aparências, preocupou-se
em examinar o contexto político em que a emissora floresceu; constata-se
que ela se desenvolveu e se consolidou durante o período de ditadura
militar no país (1964-1985), sendo íntima a relação
entre sua história e a do período autoritário no
Brasil. E que emplacou por reunir três fatores: os fortes investimentos
(graças ao acordo com o grupo norte-americano Time-Life) ; poder
contar com os favores do governo a quem servia (sob comando dos militares)
e os métodos de administração modernos e racionais
(a Time-Life não apenas financiou a TV Globo, enviou-lhe seu know-how)
. Foi graças à implantação do sistema de telecomunicações
da Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações) que
pôde se ampliar, atingindo rapidamente amplas parcelas do território
nacional (Ramos & Borelli, 1991). Os militares modificaram a política
de comunicações, criando o Ministério das Comunicações
em 1967 e implantando, pela Embratel (filiada à Intelsat - Consórcio
Internacional de comunicações por Satélite), o Plano
Nacional de Telecomunicações que possibilita as redes nacionais
de TV, com estações repetidoras (Mattelart, Delcourt &
Mattelart, 1987), iniciativas das quais a Globo se beneficiou rápida
e diretamente.
Dessa espécie de simbiose com os governos militares, a Globo passou
a defender-se tão logo um governo civil reassumiu o poder, com
a chamada Nova República. Na atualidade, continua sistematicamente
tentando se desvencilhar da imagem de empresa que teria surgido e se desenvolvido
à sombra dos 'anos de chumbo', com os favores dos governos militares.
Em 1990 - portanto, já no período pós regime militar
- numa das raras entrevistas que concedeu, Roberto Marinho fez questão
de frisar independência em relação aos militares.
"Não recebi concessão nenhuma desses governos (militares),
comprei as televisões de empresários malsucedidos. Só
recebi duas concessões, uma do Juscelino, que o Globo atacava,
e a outra, do outro adversário, o Jango Goulart, em 62, a TV de
Brasília." (Roberto Marinho, em 'O Estado de S. Paulo', 05/05/1990,
pp. 4-5.) (Os grifos são nossos)
Onze anos depois, no site da emissora, também é destacado
o fato de ter obtido a concessão de governos civis, anteriores
ao período militar. E ainda que, em vários casos, adquirira
canais junto a grupos privados já portadores da concessão
(sem contato direto com o respectivo governo):
“Eram 11h daquele 26 de abril, em 1965, quando a Rede Globo de Televisão
- então apenas o Canal 4 do Rio de Janeiro - entrava no ar e dava
início a uma trajetória vitoriosa. (...) Destacando-se em
um mercado televisivo essencialmente amador, flagrante na data de sua
inauguração, a Rede Globo, cuja concessão no Rio
fora outorgada no governo do presidente Juscelino Kubitschek, foi ampliando
sua cobertura e, em pouco tempo, entrava no ar em São Paulo, através
do Canal 5 (antiga TV Paulista, adquirida do grupo Victor Costa); em Belo
Horizonte (pela emissora adquirida do grupo J. B. Amaral em 1968), em
Brasília, em 1971 (concessão feita pelo presidente João
Goulart em 1962), e em Recife (através de emissora adquirida do
grupo Victor Costa), no ano seguinte.” - site da Rede Globo –
link história da empresa, dezembro/2001. (Os grifos são
nossos)
Mais recentemente, para livrar-se da acusação de conivência
e/ou subserviência aos militares, a Globo chega a escorar-se nos
jargões de resistência dos tempos de ditadura, apresentando-se
como refém da censura, portanto, alvo do autoritarismo. Segundo
relata o livro Jornal Nacional: a notícia faz história (2004:35),
as pressões sobre o noticiário era implacáveis:
"À medida que sua audiência aumentava, o Jornal Nacional
era cada vez mais visado. (...) foram vetadas notícias sobre cassações
de mandatos e suspensão de direitos políticos; a denúncia
de acordos militares entre Brasil e EUA; a visita da Anistia Internacional...".
Não somente o telejornal era alvo da ação dos censores:
"A censura não se limitava às notícias: interferia
também nos programas de entretenimento da TV Globo. Foram inúmeros
os casos de restrições à dramaturgia da emissora.
O mais sério foi o da proibição, a dois dias da estréia,
da novela 'Roque Santeiro', em agosto 1975." (Jornal Nacional - a
notícia..., 2004:77)
À época dos militares, segundo a emissora, suas telenovelas
teriam ocupado, eventualmente, o lugar do jornalismo na tarefa de criticar
a realidade, uma vez que este era fortemente vigiado:
"Durante o regime militar, em que o jornalismo da Rede Globo - em
alguns casos, mais do que outros veículos de comunicação
- era cerceado pela censura, coube à dramaturgia desempenhar a
tarefa de retratar e criticar a realidade política e social do
país." (Luis Erlanger, Diretor da Central Globo de Comunicação,
'Apresentação'. In: Dicionário da TV Globo, Vol I,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003:ix).
Numa edição especial do "Globo Repórter",
alusiva aos 40 anos de telenovela, no esforço de revolver o passado,
e dele desenterrar uma imagem 'subversiva' e corajosa para a Globo, a
edição pôs-se a esmiuçar as novelas do período
militar, revelando ao público - com décadas de atraso, então
- que o que se mostrava eram traços sutis de rebeldia. Pela lógica
expressa no documentário, as novelas exprimiam a crítica
social, desafiando, para tanto, o poder dos militares. Um exemplo: afirma
que a novela 'O Bem Amado', de Dias Gomes, de 1973, continha a crítica
à mortalidade no Nordeste:
Vinícius Dônolla (repórter): "Real, surreal.
No tempo em que as palavras eram proibidas, as imagens de um Brasil fantástico
driblavam a censura." (ao fundo, cenas do personagem Odorico Paraguaçu,
personagem vivido por Paulo Gracindo, discursando do palanque, na novela
'O Bem Amado', de 1973) Segue-se depoimento do ator Lima Duarte: "Sucupira
era a cara do Brasil; de um Brasil que não podia se expressar,
um Brasil que não podia falar. Era um país onde não
morria ninguém, no Nordeste. Quer ironia maior que esta? Não
morria ninguém; ele (o prefeito Odorico Paraguaçu) não
conseguia inaugurar o cemitério, porque não morria ninguém."
(ao fundo, cenas da mesma novela, em que o próprio prefeito morre
e, finalmente, será possível inaugurar o cemitério
da cidade). Vinícius Dônolla: "A crítica se fez
pela sutileza; mais tarde, a novela recontou a história do Brasil..."
("Globo Repórter", 10 de outubro de 2003)
A Globo, mais do que defender-se da acusação de conivência
com os desmandos autoritários ou de porta-voz dos interesses das
classes dominantes, insinua ter ocupado o terreno da crítica, da
oposição àquele regime; parece tentar remover da
memória coletiva a idéia segundo a qual teria tido algum
tipo de colaboração com os governantes nos tempos 'de chumbo',
apagar essa 'mancha' que tem marcado sua história.
A considerar pelo discurso atual, não estaria simplesmente tentando
adaptar-se, nas últimas décadas, aos ares da redemocratização
do país e da América Latina, ela postula ser reconhecida
como agente central desse processo. Na história que refaz e divulga,
teria tido papel ativo na resistência à ditadura.
Como exemplo exacerbado desse discurso, com a morte de Roberto Marinho,
a título de render-lhe homenagens póstumas, produziu-se
uma edição especial do JN, (em 7/08/2003, um dia após
a morte do empresário), em que vem a público frase atribuída
a ele, em suposta defesa dos comunistas que trabalhavam para o seu jornal
durante a ditadura militar. A mesma frase está na revista "Época",
de 11/08/2003:
"Ministro, o senhor faz uma coisa, vocês cuidam dos seus comunistas,
que eu cuido dos nossos lá do Globo." (p. 12)
Em 1965, o Ministro da Justiça do governo Castello Branco, Juracy
Magalhães, teria chamado donos de jornais para uma reunião
em que fixava como queria que a imprensa se comportasse. Na ocasião,
teria entregue ao dono de "O Globo" uma lista com 64 nomes de
profissionais que deveriam ser demitidos. Com a frase acima, Roberto Marinho
teria se recusado a fazê-lo .
O livro Jornal Nacional (2004:36) segue nesse sentido, registrando que:
"Em 1977, acusados de pertencerem ao Partido Comunista Brasileiro,
Alice-Maria, já então diretora executiva da Central Globo
de Jornalismo (CGJ), e Luís Edgar de Andrade, chefe de redação
do JN, foram intimados a depor no Dops (delegacia de Ordem Política
e Social). Em apoio aos dois funcionários, o próprio Roberto
Marinho os acompanhou de carro até a delegacia e recomendou ao
motorista que os esperasse até o fim do interrogatório."
É provável que iniciativas como essas, de caráter
individual, tenham ocorrido. Elas não são suficientes, porém,
para atestar a independência das Empresas Globo em relação
aos desmandos dos militares, muito menos para caracterizar seus proprietários
como contrários aos interesses polítco-econômicos
que sustentaram o golpe e seus desdobramentos.
Por mais que a publicidade - contida tanto nas publicações
do Projeto Memória Globo, quanto em outras formas de propagação
do discurso das Organizações Globo - busque desintegrar
o passado recente no plano simbólico (ou ideológico), cabe
indagar se ela consegue eficácia para além desse terreno.
Mais que uma aliança tática - em que se procura conviver
com um determinado tipo de governo, sem no entanto ser conivente com ele
- a Globo compartilhou projetos nacionais decisivos com os governos militares,
tais como o da promoção da integração nacional,
visando desenvolver e impulsionar o consumo de massa, em que acabam tendo
papel central, o seu Jornal Nacional e suas telenovelas .
Promover a integração nacional - objetivo compartilhado
pelas Organizações Globo com os governos militares, e que
rendeu a ela a ampliação de seus interesses empresariais
- esse é fundamentalmente o intuito da emissora desde sua criação,
e que se coadunou perfeitamente com os propósitos da fase de desenvolvimento
da produção/consumo de massa em nosso país .
Tal integração nacional adquire um sentido positivo perante
o senso comum, mas eqüivale muitas vezes ao apagamento autoritário
das diferenças; ao reducionismo das especificidades regionais;
à dissolução de tradições populares
ou ao comprometimento do seu caráter genuíno.
Embora, na atualidade, a Globo forje um passado de resistência e/ou
contestação, sob a ditadura militar, o que se vê,
conforme indicam inúmeros estudos realizados sobre a programação
dos anos 70/80, é uma sintonia desta para com as políticas
governamentais (Khel, 1986b); (Ramos & Borelli, 1991).
À época da ditadura militar no Brasil, a esfera estatal
solicitava - e a Rede Globo a ela correspondia - uma programação
televisiva com enfoque nacionalista e temas considerados educativos. Teve,
assim, um papel muito mais ativo naquele momento, do que gostaria de contar
às novas gerações, auxiliando a disseminar ideologias
em sintonia com os propósitos dos governos militares.
Tanto as atitudes e os depoimentos de seus diretores, quanto as declarações
dos governantes confirmam a relação 'amigável' com
os militares no poder. O depoimento de um dos diretores executivos da
Rede Globo, à época do regime militar, é ilustrativo
a esse respeito:
"Contem, o presidente Geisel, as Forças Armadas, os legisladores,
com o apoio de todos os meios de comunicação social deste
país, que acima de seus debates e controvérsias colocam
sempre seu compromisso de orientar e conduzir a opinião pública
na sua luta permanente contra a radicalização, em busca
dos caminhos da Justiça, da Ordem e da Democracia." Depoimento
de Mauro Salles, citado em Kehl, (1986a:207).
Quanto à satisfação dos governos com os meios de
comunicação, destaca-se a antológica frase de Médici,
em 1973, dando conta de sua tranqüilidade em relação
aos noticiários (subentenda-se: principalmente o JN), que tratavam
de aliviar o quadro real do país (Mattos, 1990:17):
"Sinto-me feliz, todas as noites, quando ligo a televisão
para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta
de greves, agitações, atentados e conflitos em várias
partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É
como se tomasse um tranqüilizante após um dia de trabalho."
O resgate desse cenário e a reflexão sobre as implicações
políticas dessa relação inegavelmente amigável
é importante para não perdermos de vista que, à cúpula
da empresa do Dr. Roberto Marinho - tanto quanto aos militares, ainda
instalados no poder, em 1984 - não interessava dar visibilidade
ao descontentamento popular que se expressava, dentre outras maneiras,
através da reivindicação de eleições
diretas.
Como as principais críticas que recebeu - do período final
da ditadura em diante - dirigem-se a ter sido indiferente aos atos públicos
em favor de eleições diretas, em 1984, a Globo tem se referido
ao fato, de modo persistente, na atualidade. O tom de aparente auto-crítica
já surgira em agosto de 2003, na revista "Época",
uma publicação da Editora Globo:
"Com uma audiência potencial de 157 milhões de brasileiros,
atingindo 98,75% dos 5.500 municípios, ou seja, com esse poder,
a Globo poderia criar e derrubar presidentes, privilegiar ou ignorar coberturas
jornalísticas. Foi justamente contra esse poder que a população
saiu às ruas, em 1984, para protestar. 'O povo não é
bobo, abaixo a Rede Globo' foi o slogan mais repetido na campanha pelas
eleições diretas, que comoveu o país naquele ano,
mas não empolgou a rede. A Globo demorou para cobrir os comícios
e foi duramente criticada pela omissão." (revista "Época",
Caderno Especial, Agosto/2003, p. 22-23) (nota: Na realidade, não
somente na campanha pelas diretas já, mas em passeatas ou movimentos
grevistas, liderados por sindicatos e entidades em todo o país,
de trabalhadores em protestos nos anos 80, tornava-se comum o grito: “O
povo não é bobo, fora Rede Globo”, em alusão
ao seu caráter parcial, que omitia informações úteis
aos movimentos de contestação, quando não as distorcia
a favor dos patrões.)
Ainda em agosto de 2003, ao comemorar os 34 anos do JN, a Rede Globo já
havia lançado mão de trechos antigos desse noticiário
nos intervalos comerciais. As antigas imagens do JN escolhidas traziam
os locutores narrando o movimento pelas Diretas. Viam-se Cid Moreira e
Sérgio Chapelin noticiando passeatas e comícios pelas diretas,
com a data respectiva impressa na tela. Nada mais era dito ou escrito
além da frase comemorativa ao 34o aniversário do telejornal.
O objetivo parece claro: confrontar, tacitamente, a afirmação
corrente segundo a qual ela se omitira em tais momentos. E o livro lançado
em 2004 para marcar os 35 anos do JN, bate nessa mesma tecla.
Em Jornal Nacional - a notícia... (2004:157), a emissora conta
que levou ao ar imagens do grande comício realizado em 25 de janeiro
de 84, com reportagem feita por Ernesto Paglia, relatando o objetivo do
evento de pedir eleições diretas para presidente. Explica,
porém, que por uma falha, a chamada lida pelo apresentador do JN,
Marcos Hummel, associava o evento aos festejos do aniversário da
cidade de São Paulo.
Nas entrelinhas, a explicação dada pela Globo, 20 anos depois,
só vem confirmar os temores da emissora para com o tema e a proposital
discrição em relação ao primeiro grande comício
pelas diretas - que, na chamada do Jornal Nacional, produzido com propalado
rigor técnico e inegável excelência profissional,
é 'confundido' com a manifestação com a programação
de aniversário da capital paulista.
À época, a direção da emissora temia colaborar
indiretamente com a mobilização por diretas já. Por
essa razão, passou meses registrando - quando muito -, apenas nos
telejornais locais, os comícios que reuniam milhares de pessoas.
Segundo depoimento de Roberto Marinho, os comícios que se espalhavam
pelo país não deveriam ser noticiados em rede nacional.
Ele declarou à Revista Veja, à época, os motivos
dessa espécie de censura prévia adotada pela emissora:
"Achamos que os comícios pró-diretas poderiam representar
um fator de inquietação nacional e, por isso, realizamos
num primeiro momento apenas reportagens regionais." (Revista Veja,
5/7/1984 apud Jornal Nacional - a notícia... 2004:156).
Por fim, a Globo levou o referido movimento ao ar para todo o país,
é verdade. Mas apenas quando isso já não podia mais
ser escondido. Ou, nas palavras de Roberto Marinho, quando: "...
a paixão popular foi tamanha que resolvemos tratar o assunto em
rede nacional." (idem, ibidem).
O jornalismo
da Globo: as acusações de omissão e manipulação
dos fatos, conforme as conveniências do momento, e de tratamento
desigual a políticos e partidos
Já na vigência de um governo civil, o início da década
de 90 é ainda marcado por discursos e disposições
práticas que revelam que o envolvimento da direção
da emissora com representantes do poder, ao menos naquele momento, era
tido como natural. Antes de existirem outras emissoras com condições
e capacidade concreta de avançar na luta pela audiência,
a Rede Globo não demonstrava preocupação em defender-se
de críticas à sua proximidade com governantes. Ao contrário,
as ligações com os poderosos, ou o uso da TV em favor de
políticos, eram admitidos pelos dirigentes da emissora, com tranqüilidade
e sem disfarces. Ou seja, se no período pós ditadura, em
clima de redemocratização do país, houve a necessidade
de demonstrar distância em relação aos militares,
em entrevista que Roberto Marinho concedeu pouco depois da eleição
de Collor de Mello, o dono das Organizações Globo não
manifestava ainda esforços em demonstrar independência dos
governos civis que se sucederam . Ao invés disso, revelava até
certa arrogância, ostentando o seu poder de influência nos
rumos do país .
Ao responder sobre se usava seu poder e o que achava melhor para o país,
Roberto Marinho respondeu enfatizando sua 'colaboração'
para o engrandecimento do país:
"...eu só usei o poder nesse terreno opinativo no 'Globo';
em declarações e discursos eu uso essa colaboração
- que eu considero modesta para o país. Você vê que
a Rede Globo não é política, embora os jornais da
Rede Globo tenham uma repercussão muito grande e uma forma de opinar.
Não opinar mostrando o melhor, opinar em favor de determinados
indivíduos, mas na melhoria e no aprimoramento e engrandecimento
do país." (Roberto Marinho, entrevista publicada in O Estado
de S. Paulo, Caderno 2, 05/maio/1990, p. 4-5.)
Indagado sobre se a Globo teria força de eleger um presidente,
respondeu que ela poderia 'contribuir' para isso:
"Não. Ela pode, dentro de um conjunto de circunstâncias,
contribuir, poderosamente ou não para eleger um presidente, um
senador. Amanhã a TV Globo pode apoiar uma pessoa que não
seja eleita." (idem, ibidem.)
Nesse momento, o dono da Globo nada via de mal em que um poderoso meio
de comunicação interceda num processo eleitoral, apoiando
um candidato, 'contribuindo' para que seja eleito; não se preocupava
em manter independência e/ou eqüidistância em relação
aos candidatos. Também não escondia que dispensava tratamento
parcial aos postulantes ao poder. Longe disso: expõe abertamente
seus diletos e desafetos. Sobre Brizola, afirmou:
"Ele (Brizola) dizia que, quando ele assumisse a Presidência
da República, a primeira coisa que faria era fechar a Rede Globo.
(...) ... ele ficou em terceiro lugar, não conseguiu nada. Agora
vai tentar ser governador, o que será uma pena. A cidade precisa
de outra pessoa, capaz de restaurar o Rio de Janeiro." (idem, ibidem.)
E expôs sem reservas a sua aflição, ao ver a possibilidade
de que, com auxílio dos votos transferidos por Brizola no segundo
turno da eleição disputada com Collor em 1989, Lula vencesse:
"As coisas começaram a empretecer quando o Brizola trouxe
seu contingente de votos para o Lula." (idem, ibidem.)
Ainda nessa fase, Roberto Marinho exibia sua galeria de contatos com os
mandatários, nos diferentes momentos da historia recente. Parecia
não se incomodar – mais que isso, achar justificável,
que um poderoso meio de comunicação mantivesse íntima
relação com os governantes. Revelava não apenas sua
responsabilidade e autoridade na escolha de ministros, confirmando-se,
praticamente, como um 'Estado dentro do Estado', como os privilégios
dados à sua emissora, como o de dar notícias em primeira
mão:
"Fui almoçar com o Sarney e ele disse: 'Doutor Roberto, o
senhor me ajuda a escolher um ministro da fazenda?' (...)... Conversei
muito com ele (Maílson da Nóbrega), achei que ele entendia
daquelas coisas todas e, quando ele saiu, telefonei para o Sarney dizendo
que tinha gostado do Maílson, que achava uma boa solução.
Então ele me disse: 'Por favor, dê a notícia na TV
Globo'. Telefonei e mandei dar a notícia". (Grifos nossos).
Observe-se que, quando relata o diálogo entre eles, o faz em um
modo que evidencia até mesmo nas 'entrelinhas' a sua importância
e autoridade: ele se referia a Sarney informalmente, usando o tratamento
'você', enquanto o então presidente da República,
por sua vez, era quem o reverenciava: tratava-o por 'Doutor' e 'Senhor'.
Do mesmo modo, em outro trecho da mesma entrevista, se referirá
a outro presidente, Collor de Mello, informal e paternalmente, chamando-o
'esse menino'. (idem, ibidem)
Parece-nos que nesse momento, 1990, a direção da Globo ainda
não manifestava as mesmas preocupações que surgiriam
na fase seguinte, após a queda de Collor. É a partir do
período posterior à 'Era Collor' que tem buscado se eximir
da denúncia de ter omitido ou manipulado fatos, bem como de ter
dispensado tratamento desigual a políticos e partidos, conforme
as conveniências do momento.
Dentre os episódios pelos quais a Globo foi acusada de um comportamento
flagrantemente parcial no tratamento da notícia, destaca-se o do
segundo turno das eleições presidenciais de 89, como talvez
o mais crítico. Momento delicado da história do jornalismo
da emissora, a edição do debate entre Collor e Lula, pelo
JN, às vésperas da eleição, ainda não
foi definitivamente enterrada. Vários anos depois, encontram-se
tentativas de justificar o ocorrido. Exemplo disso pode ser visto através
do programa que levou ao ar para comemorar os 50 anos da televisão
no Brasil, em 2000, em que 'revisita' o ocorrido e procura insistir num
ponto: Lula foi mal no debate .
De todo modo, o episódio de 1989 (edição do debate
dos candidatos) aparece claramente como um exemplo a não ser repetido
pela emissora:
"Hoje, a TV Globo adota como norma não editar debates; eles
devem ser vistos na íntegra. Porque, ao condensá-los, necessariamente
bons e maus momentos dos candidatos terão de ficar de fora, segundo
a escolha de um editor ou um grupo de editores." (Jornal Nacional
- a notícia... 2004:214).
De fato, nos processos eleitorais seguintes (1994 e 1998) - na grande
imprensa, a Globo incluída - mais que a manifestação
da preferência por um candidato, optou-se por alardear as conquistas
do plano Real (freio à inflação e estabilidade econômica),
ao qual o nome de Fernando Henrique estava associado (em 94, como Ministro
de Itamar Franco, em 98, como Presidente). Em 2002, novo formato de debate
na Globo: um candidato não dirige questões diretamente ao
outro, participa sempre sob a mediação do apresentador do
programa (o jornalista Willian Bonner). Ao final do processo fez-se o
'elogio das eleições', da 'festa' da democracia, da 'modernidade'
representada pela urna eletrônica (observada por analistas de mais
de 40 países), o alto nível dos debates (entenda-se: marcado
por menor agressividade e ataques mútuos), enfim, a espetacularização
do acontecimento político, a sua cada vez maior apropriação
e modulação pela TV, em ritmo de despolitização.
A decisão sobre a performance de cada candidato (que desta vez,
não foi posta em confronto; cada candidato (Antony Garotinho, Ciro
Gomes, José Serra e Luís Inácio da Silva) foi entrevistado,
individualmente, ao longo de julho/2002, no Jornal Nacional. Depois disso,
a Rede Globo encomendou pesquisa ao Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião
e Estatística) - transferindo, assim, responsabilidades, sobre
qual teria tido melhor desempenho, segundo os telespectadores). Eleito
o candidato de esquerda, a eleição de um operário
foi mostrada como mérito da democracia brasileira, funcionando
como o seu 'certificado de qualidade' . Enfim, o auto-elogio portando
prestígio, que coroa, por extensão, o papel da imprensa
no processo eleitoral.
No livro Jornal Nacional - A Notícia faz História, a polêmica
edição é recolocada, sob novos ângulos, constituindo,
segundo opinião da Revista Veja, "a parte mais corajosa do
livro". Nele, João Roberto Marinho (vice-presidente das Organizações
Globo) relativiza os prejuízos causados pela emissora à
candidatura Lula; ao retomar a fatídica edição do
JN do debate de 1989, comenta-a relacionada à edição
feita no "Jornal Hoje", da emissora, supostamente favorável
à candidatura Lula:
"Depois desses anos todos, eu acredito que as duas edições
estavam erradas: uma exagerou para um lado e a outra ficou aquém
para o outro."(In: Jornal Nacional - A Notícia faz História,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004)
Mas o que chama a atenção é que o diretor proprietário
não esconde que, se em sua opinião Collor havia 'vencido'
o debate, essa vitória deveria necessariamente se refletir na edição
jornalística do telejornal de sua propriedade, ao ser lançada
ao público em rede nacional. Ele afirma:
"Collor tinha ganhado de 3x0, e o jornal Hoje mostrara um compacto
como se a partida tivesse terminado em 3x2. O Jornal Nacional teria mostrado
um compacto mais próximo de 3x0." (Jornal Nacional - a notícia...
2004:214).
Sem hesitar, toma sua visão pessoal dos acontecimentos como padrão
de realidade, não se dando conta de que corresponda a mero ponto
de vista ou convicção política, situados no terreno
opinativo. Ao contrário, o seu julgamento corresponde aos fatos,
ao "que aconteceu":
"A edição do Jornal Nacional refletiu melhor o debate,
que teve um vencedor. Depois que vi no ar, gostei sem dúvida mais
da edição do JN. A edição do Hoje foi uma
edição com excessiva preocupação em equilibrar
o que não teve equilíbrio e, portanto, fugiu do que aconteceu."
(idem, ibidem:212).
Desse depoimento, destaca-se a concepção geral segundo a
qual a prática corrente na emissora - o tratamento diferenciado
ou tendencioso dado a políticos, conforme a legenda partidária
a qual pertencessem - aparece como resultado da busca jornalística
dos fatos; como se edições fossem neutras.
Em seguida, o livro mostra também uma nova postura de João
Roberto, mais refletida, pelo passar dos anos, segundo declara. Mas ele
segue absolvendo a atuação de sua empresa de comunicações.
Acrescenta que o erro - presente tanto na edição do jornal
Hoje quanto na do JN - não se deu por má-fé, mas
por inexperiência:
"(...) eu debito os dois erros à inexperiência de todos
nós na época. É preciso sempre ter em mente que aquela
era a primeira eleição para presidente na era da televisão
de massa. Não passa pela minha cabeça que os equívocos
tenham sido cometidos por má-fé." (idem, ibidem:231)
(os grifos são nossos)
Fincado esse ponto de vista, que repele qualquer visão de conjunto
sobre os fatos, o livro prossegue, transcrevendo uma teia sem fim de explicações
dadas por jornalistas supostamente envolvidos. Armando Nogueira (Diretor
da Central Globo de Jornalismo, na ocasião) acusa Alberico de Souza
Cruz (ex-diretor de telejornais da Rede), que acusa Ronald de Carvalho
(editor de política), que estaria sob orientação
de Alice-Maria (Diretora Executiva), que alega ter se surpreendido ao
ver a edição no ar; finalmente, um tal Octavio Tostes (editor
de texto do JN) assume ter sido o responsável pela edição
do debate.
Tostes afirma que a edição foi manipulada e sem preocupações
com isenção (2004:220). Seus superiores hierárquicos
não utilizam tais termos; mas acabam confirmando as ordens de editar
beneficiando Collor. Não viam mal nisso e demonstram sintonia com
a lógica expressa por João Roberto Marinho, de que era necessário
traduzir, na edição, a superioridade de Collor (que havia
vencido o debate) sobre Lula (que havia sido muito infeliz, ido muito
mal no debate), para ser fiel ao que de fato se deu.
Importa destacar que, em ambos os casos (das diretas já e da edição
do debate entre presidenciáveis), ao recontar o ocorrido, a Globo
descontextualiza e tenta tornar factual e episódico, algo que foi
característico, parte indissociável, em sua atuação.
Isolados, e tratados como se fossem meros fenômenos ligados a técnicas
de reportagem ou de edição, os acontecimentos e suas implicações
gerais têm importância reduzida. E passam, no máximo,
para o terreno do 'desculpem a nossa falha'.
Porém, se recorremos à situação específica
em que ocorreram, parece-nos nítida e proposital a despolitização
dos dois fatos - essa tentativa de descolá-los dos processos políticos
em que se inseriam - e apresentá-los, várias décadas
depois, como detalhes e/ou equívocos não intencionais.
Dito de modo mais direto: omitir do público as mobilizações
de 1984 pelas "diretas já" relaciona-se harmonica e diretamente
aos compromissos recíprocos entre a Globo com os governos militares,
no poder, à época. Do mesmo modo, a edição
do debate de 1989, que antecipava a vitória de Collor, foi apenas
corolário ('collorário', para fazermos um trocadilho...)
de escancarada preferência dos proprietários da Globo por
aquela candidatura, e do seu horror a que partidos de esquerda se aproximassem
do poder.
Sobre ambos os fatos, é necessário enfatizar que - embora
de modo desastrado, deixando mais 'pistas' e marcas do que deveriam ter
deixado, e talvez seja somente porisso que incomodem tanto, até
hoje - traduziram coerentemente, cada um a seu tempo, as efetivas relações
que a Globo mantinha com os respectivos setores anti-populares envolvidos:
sintonizada tanto com os militares contra as eleições diretas
no primeiro caso, quanto com as elites que apoiavam a candidatura Collor,
no segundo.
Cremos que a referência aos respectivos contextos históricos
sustenta o principal da argumentação que procuramos desenvolver.
E permitimo-nos encerrar este artigo, repetindo - só que, no sentido
literal - a mesma frase com que a revista "Veja" brindou o lançamento
do livro da Globo sobre o Jornal Nacional. Na capa da edição
número 35, de 1o de setembro de 2004, a revista promete antecipar
o conteúdo do livro e, referindo-se a supostas revelações,
informações inéditas, de 'bastidores' que este traria,
propagandeia: "O Jornal Nacional que você nunca viu".
Nossa sensação é a de que, de fato, nós nunca
vimos o Jornal Nacional que a obra do Projeto Memória Globo ora
quer fazer-nos crer que tenha sido levado ao ar: corajoso, independente,
crítico, colocado a serviço dos mais elevados valores da
democratização da informação...
BIBLIOGRAFIA
CITADA:
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Comunicação e Indústria Cultural. 3a ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 287-295, 1977.
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Editorial, 1996.
Dicionário da TV Globo Programas de Dramaturgia & Entretenimento.
Vol. I, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
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Editora Ltda., 1987.
KEHL, Maria Rita, "Eu vi um Brasil na TV". In: Um país
no ar - história da TV brasileira em 3 canais. São Paulo:
Editora Brasiliense, p. 167-276, 1986a.
________, "Três ensaios sobre a telenovela". In: op. cit.,
São Paulo: Editora Brasiliense, p. 277-323, 1986b.
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Jorge Zahar Editor, 2004.
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do ver - Hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São
Paulo: ed. Senac, 2001.
MATTELART, Armand, DELCOURT, Xavier & MATTELART, Michèle. A
cultura contra a democracia? O audiovisual na época transnacional.
São Paulo: ed. Brasiliense, 1987.
MATTOS, Sérgio. Um perfil da TV Brasileira. Salvador: Abap, 1990.
RAMOS, José Mário Ortiz & BORELLI, Sílvia H.
Simões. "A telenovela diária". In: Telenovela:
história e produção. 2a ed. São Paulo: ed.
Brasiliense, 1991.
TOURAINE, Alain. La Société Post-industrielle. Paris: Éditions
Denoël, 1969.
OUTRAS FONTES
DE REFERÊNCIA:
Globo Repórter
- "40 Anos da Telenovela", 10 de outubro de 2003.
Jornal "O Estado de S. Paulo", Caderno 2, 05 de maio de 1990.
Revista "Época", Caderno Especial, Agosto, Rio de Janeiro:
Editora Globo, 2003.
Revista "Veja", edição de 30 de outubro, São
Paulo: Editora Abril, 2002.
Revista "Veja", edição de 1o de setembro, São
Paulo: Editora Abril, 2004.
Site da Rede Globo – link história da empresa, dezembro/2001.
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