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IMAGENS
DE LEITURA NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA
Célia Regina Delácio Fernandes (Universidade Estadual de Londrina - UEL) Este trabalho investiga as imagens de leitura em dez obras
destinadas ao público infanto-juvenil: A fada que tinha idéias,
de Fernanda Lopes de Almeida (1971); A 8ª. Série C, Odette
de Barros Mott, (1976); A casa da madrinha, de Lygia Bojunga Nunes (1978);
O mistério da obra-prima, de Lourenço Cazarré (1986);
Pra você eu conto, de Moacyr Scliar (1990); Que raio de professora
sou eu?, de Fanny Abramovich (1990); Redações perigosas
II: a fome, de Telma Guimarães Andrade (1994); A professora de
desenho e outras histórias, de Marcelo Coelho (1995); Botina velha,
o escritor da classe, de Jair Vitória (1995) e Uma professora muito
maluquinha, de Ziraldo Pinto (1995). O objetivo é verificar se
a leitura e o ensino de literatura estão inseridos nessas narrativas
com finalidades estritamente pedagógicas ou se apresentam outras
possibilidades para o leitor em formação. (...) Tratamos até de melhorar nossos hábitos
de leitura só para entender os versinhos do poeta do BB. Também a narrativa de Botina velha, o escritor da classe é bastante ilustrativa dessa ampliação do espaço da leitura para além dos muros e dos deveres escolares. Ganhador de dois prêmios nos anos consecutivos do primário em Aldeota, o aprendizado do protagonista Juvenal não está circunscrito somente à escola. Convém ressaltar as leituras literárias feitas pelo menino fora da escola. Após uma longa jornada de estudo e de trabalho na roça, ele ainda encontra ânimo para ler à noite, sob luz da lamparina que era racionada pelo pai devido ao preço do querosene: Juvenal pegou uma lamparina e foi ler no quarto. Lá fora escurecia calmamente. Vovô Amaro espirrava de vez em quando. Enquanto conversavam, o menino podia ler. Quando entravam, o pai pedia a lamparina. Havia só duas lamparinas na casa e o querosene estava caro. (VITÓRIA, 1995, p.32) Outro exemplo interessante refere-se à leitura de uma revista por uma das alunas de A 8ª série C. Durante os estudos escolares de Matemática, na conversa de um grupo de meninas, é possível entrever a questão da emancipação feminina a partir do comentário a respeito da leitura de uma revista. Nota-se, entretanto, um reforço ideológico da importância do estudo para a libertação da mulher, contextualizando a necessidade de sua escolarização no mundo atual: ? Pô, chato! A Matemática apesar de ser moderna,
é pior que a pior coroa da paróquia. E quem são os(as) leitores(as) representados(as)
nessas narrativas? Os(as) leitores (as), em geral, são personagens
professores(as), alunos(as) e alguns pais. Com exceção do
investigador Theocar, de O mistério da obra-prima, que é
leitor de poemas românticos e “viciado” em romances
policiais, assim como seu companheiro Quincas, cuja amizade foi resultada
da identidade do gosto literário, nos cotidianos encontros noturnos
no bar para tomar cerveja com torresmo e discutir as paixões comuns
de leitura. Pobrezinho de mim, transbordante de ternura! Se tivessem permitido, eu teria recitado para elas as três centenas de poemas românticos que sabia de cor. Sem parar nem para engolir a saliva, declamaria todo um livro de Vinicius de Moraes. Mas não foi possível. (CAZARRÉ, 1986, p.11) As professoras leitoras em destaque nas narrativas são
Maluquinha, Rosemeire, Laura, Marta e Luísa. Quanto aos docentes
do sexo masculino, há poucas e vagas referências sobre leitura,
que permitem inferir, por exemplo, Takeshi como leitor de manual de caratê
e de gibis (CAZARRÉ, 1986, p. 72) e Thiago como leitor de leis
do Direito (VITÓRIA, 1995, p.72). Assim, a construção
da professora-leitora recebe um tratamento mais refinado do que a do professor,
constituindo-se importantes mediadoras na formação do leitor.
Para além do mundo ficcional, vale lembrar que duas pesquisas atuais
? Retrato da leitura no Brasil (CBL, 2001) e Indicador Nacional de Alfabetismo
Funcional ?INAF 2001 (RIBEIRO, 2003) ? apuraram que as mulheres lêem
mais do que os homens. E havia muitas razões para estarmos entendendo de amor e de paixão. É que, com a proibição dos gibis, começamos a seguir uma novela muito mais emocionante do que O Direito de Nascer de noite, no rádio. A professora estava lendo para nós, cada dia, um capítulo das Desventuras de Sofia, da Condessa de Ségur, seu livro preferido da Coleção Rosa. (PINTO, 1995, p.52) Se, de um lado, as leituras de Maluquinha representam
uma leitora de narrativas sentimentais e românticas, o chamado “romance
água-com-açúcar” (PINTO, 1995, p.43); de outro
lado, a professora Rosemeire também sobressai pela atividade de
leitura no âmbito escolar, mas de caráter didático-pedagógico.
Durante as aulas, ela lê em voz alta o verbete de fome do Dicionário
Aurélio, artigos publicados no jornal Folha de São Paulo,
trechos dos livros didáticos de história e geografia, com
a finalidade de ensinar sobre a fome (ANDRADE, 1994, p.23-31). Como trabalho
temporário, é leitora crítica de um concurso de redações
sobre o tema da fome, realizado na escola e promovido por uma editora.
A leitura dos jornais ainda é fundamental para o desvendamento
da trama policial no penúltimo capítulo da narrativa, constituindo-se
a fonte principal de informação da professora na escola
e fora dela. Aleluia, aleluia!!! Ligaram da Editora J.J.J. pedindo pra passar lá e pegar um novo material. Há um tempinho que me dão textos didáticos pra ler. De História. De vários autores. Faço uma leitura crítica e opino. Se dá pra ser editado. Se precisa de modificações. E quais. De que tipo. Ou se é melhor devolver para o autor e nem pensar em transformar aquelas páginas num livro. (ABRAMOVICH, 1990, p.59) Na descrição que o narrador faz do pequeno quarto de Marta, pode-se observar que a professora é leitora de livros e jornais. Importante ressaltar que, além da atividade docente, Marta faz pesquisas sobre a presença do nazismo no Rio Grande do Sul, estudo que espera publicar para colaborar com a efetivação da democracia no Brasil: Passamos para outra peça: o seu quarto, que era também um gabinete de trabalho. Uma cama estreita, quase um catre, uma velha mesa, uma cadeira de palhinha ? e livros, livros, livros. Por toda a parte: em prateleiras, empilhados no chão e até sob a cama. Livros, jornais, papéis, tudo na maior desordem. (...) (SCLIAR, 1990, p.17) A revelação de a professora Luísa ser leitora evidencia-se quando em sua bolsa é encontrado, durante a revista, o livro Ingênua e Perigosa, novela de Raymond Chandler, coincidentemente o autor e a obra favoritos do delegado. Nota-se, no diálogo abaixo, o gosto da professora pela leitura de romances e a informação de que é seu primeiro dia na escola: ? O senhor gosta de ler novelas policiais? Como se pode observar nesses exemplos, as professoras
lêem bastante e suas leituras revelam interesses variados. Contudo,
a leitura efetuada pelas personagens docentes está um pouco longe
do que muitos especialistas, cujo modelo de leitura está restrito
à chamada “alta literatura”, consideram adequado para
formar “leitores competentes”. A leitura da literatura canônica
aparece como exceção na prática escolar de uma professora
de Português, figurante que tem uma única e rápida
aparição no episódio em que Jerônimo remessa
feijões em Juca: “Ela poderia ver os feijões no chão,
se quisesse; mas não queria. Estava furiosa por ter sido interrompida
enquanto recitava Os lusíadas (sua paixão por Camões
era bem conhecida)”. (SCLIAR, 1990, p.28) É que a gente ficava lendo nossas revistinhas, nossos tico-ticos e gibis - já tinha menino lendo até Tarzan ou O Espírito - além de outras revistas que ela mesma trazia de casa pra nos emprestar. (PINTO, 1995, p.44) A censura que a escola fazia às histórias
em quadrinhos - produção característica da cultura
de massa - é tematizada no texto. A leitura desse gênero
era proibida pelo professor de catecismo: “Segundo o Padreco, gibi
era pecado!” (PINTO, 1995, p.46). Mas, os alunos, com a cumplicidade
da Professora Maluquinha, conseguiam burlar a censura: “Então,
de repente, o Padreco batia na porta. Rápido, rápido - sob
o comando da professora - a gente dava cambalhotas na carteira para esconder
as revistinhas, antes que ele entrasse na sala.” (PINTO, 1995, p.45). A professora havia apanhado um menino lendo um livro de histórias em plena aula e resolveu olhar embaixo da carteira de cada um. E encontrou o seguinte: um Almanaque do Globo Juvenil, o Juca e Chico, A Formiga da Perninha Gelada, o Cazuza, As Aventuras do Calunga, o volume 3 do Tesouro da Juventude, marcado no Livro dos Porquês, o João Felpudo (que no original e no mundo inteiro se chama Pedro e só na tradução portuguesa se chama João), um Almanaque do Tico-Tico (este todo arrebentado), O Saci, O Sítio do Pica-pau Amarelo e o Jeca Tatu, o Mágico, Viagens de João Peralta e Pé de Moleque, uma coleção encadernada da revista Mirim, um Almanaque do Biotônico Fontoura, o João Bolinha, Pinga-Fogo, O Detetive Errado, Histórias da Baratinha, um exemplar de O Guri, filhote do Diário da Noite, Quando o Céu se Enche de Balões, No Fundo do Mar, A Ilha do Mistério e O Irmão do Diabo (estes dois com um santinho dentro), Nas Terras do Rei Café, O Patinho Feio e o Soldadinho de Chumbo, Espertezas do Jabuti, A Casa das Três Rolinhas, O Soldadinho Doce, A Terra dos Meninos Pelados, Ruth e Alberto Resolveram ser Turistas, João Bola no Rio e Como Foi Isso?, da Editora Cristo-Rei. (PINTO, 1995, p.99) No que respeita especificamente à literatura infanto-juvenil,
além dessa lista dos livros lidos em Uma professora muito maluquinha,
outras narrativas fazem menções dignas de registro. Flávio,
sobrinho de Laura, lê na escola o livro infantil A vida íntima
de Laura, de Clarice Lispector, e presenteia sua tia com esse livro (ABRAMOVICH,
1990, p.32). Os alunos das oitavas séries lêem o livro de
literatura infanto-juvenil adotado pela professora de Português:
Justino, o retirante, de Odette de Barros Mott (MOTT, 1987, p.73). Num
primeiro momento, Juvenal lê literatura de cordel e, depois, Cazuza,
de Viriato Correa, Boi Aruá, de Luís Jardim, e Caçadas
de Pedrinho, de Monteiro Lobato (VITÓRIA, 1995, p. 87). Pois é, Alexandre e Augusto gostavam um bocado um do outro; tinha uma diferença grande de idade entre os dois, mas eles nem ligavam pra isso. Dormiam no mesmo canto. E se de noite Alexandre custava a dormir, Augusto ficava inventando história pra ele. Se tinha coisa que Alexandre gostava era de inventar história; Alexandre adorava escutar; às vezes ficavam inventando e ouvindo até o galo cantar. (NUNES, 1978, p.36) A narrativa deixa transparecer a importância de contar histórias na formação da criança já que, por meio delas, é possível processar os problemas e resolvê-los pela imaginação. Quando Alexandre vai contar sua história para Vera, utiliza-se do mesmo procedimento do irmão: ? Tá bom. – Lembrou das histórias que o Augusto contava. Quase sempre começavam assim: “Fulano tinha um amigo, o amigo tinha um cachorro, o cachorro tinha o olho amarelo, o olho amarelo tinha uma pestana torta, e um dia a pestana torta...” Sentou junto de Vera e contou: ? Lá em Copacabana tinha um morro, no morro tinha uma favela, na favela tinha um barraco, no barraco tinha a minha família, na minha família tinha a minha mãe, eu, meus dois irmãos e minhas duas irmãs. (NUNES, 1978, p.35) Todavia, a literatura oral pode servir a propósitos
bem diferentes no ambiente escolar, dependendo da função
assumida pela escola. De um lado, a professora da maleta valoriza a prática
de contar histórias em sala de aula: (...) “E tinha um verde,
que não era forte nem claro, era um verde amarelado, que as crianças
adoravam: era dia da Professora abrir pacote de história. Cada
história ótima”. (NUNES, 1978, p.38). Por outro lado,
a escola Osarta utiliza-se de personagens das narrativas folclóricas
para a inculcação do medo na cabeça do Pavão:
“Não fica nunca sozinho. Ficar sozinho é perigoso:
você pensa que tá sozinho mas não está: tem
fantasma em volta. Olha o bicho-papão. Cuidado com a noite. A noite
é preta, cuidado.” (NUNES, 1978, p.24). Foi para casa danado de orgulhoso. Era alvo da atenção do professor. Precisava estudar cada vez mais. Seu livro de leitura era um objeto de estimação agora. Era uma recompensa de um mágico encantamento. (VITÓRIA, 1995, p.80) Como se vê, o acesso ao livro de leitura é possibilitado pelo professor Tiago, que ainda presenteia Juvenal com três livros de literatura infanto-juvenil, cada um com uma dedicatória diferente. Já a literatura erudita entra na vida de Juvenal em doses homeopáticas, por meio de uma antologia escolar. Outra personagem, o baiano Silvestre, descobre o gosto de Juvenal pela leitura e presenteia-o com um livro velho (VITÓRIA, 1995, p.79), de capa grossa, intitulado Seleta da Língua Portuguesa. Na comparação da literatura erudita com a de cordel, observam-se as diferenças e dificuldades da inserção dos autores canônicos nas leituras de Juvenal, sem que haja emissão de juízos de valor pejorativos: Estava até emocionado. Assim que teve tempo, começou a folhear o livrão. Havia ali o início da língua portuguesa. Palavras estranhas. Depois encontrou Camões: trechos dos Lusíadas como ‘A morte de Inês de Castro’ e ‘O Gigante Adamastor’. Leu a biografia e passou a saber o valor de Camões. Nunca tinha ouvido falar no poeta. Ficou intrigado quando encontrou Bocage. Não era um contador de piadas qualquer? Em Aldeota havia gente que contava piada dizendo ser de Bocage. Quando leu o nome EÇA DE QUEIRÓS, pensou que fosse uma mulher. Nome esquisito de mulher! E então começou a conhecer os escritores portugueses em primeiro lugar. Mas logo viriam Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Castro Alves, Bilac, Machado de Assis. Aqueles poemas eram mais trabalhados e mais difíceis que os versos de literatura de cordel. (VITÓRIA, 1995, p.79-80) Destaca-se que o espaço da biblioteca só
é mencionado rapidamente em O mistério da obra-prima, Redações
Perigosas II: a fome e A professora de desenho e outras histórias:
a personagem Theocar relata que, em sua infância, a mãe costumava
ir toda semana à biblioteca retirar livros sobre os povos indígenas
(CAZARRÉ, 1986, p.6); a professora Rosemeire, ao narrar seu novo
emprego em uma escola particular, refere-se maravilhada à biblioteca
e aos dois bibliotecários (ANDRADE, 1994, p.14) e o narrador Marcelo
recorda que todos os alunos da 7ª. série foram à biblioteca
estudar sobre batráquios para prova (COELHO, 1995, p.42). Depois de fazer a chamada, iriam começar as redações. Achei melhor, quando notei que estavam “meio no ar”, ler para eles um recorte da Folha que tinha lido na sala dos professores da escola... Pena que nas salas dos professores das escolas estaduais só houvesse avisos da diretora, cartazes da Apeoesp, relação de aniversariantes do mês e bilhetes do tipo “Quem não pagou o café do mês retrasado favor acertar!”. Jamais havia lido um jornal na outra escola. Devia haver jornais em todas as salas de professores... Afinal, um professor da rede estadual nunca vai conseguir assinar nem um panfleto com o salário que recebe! (ANDRADE, 1994, p.26). Ainda com relação à representação
da leitura nas narrativas, há outro aspecto importante a ser considerado:
os modos de ler. Observa-se grande diversidade de gestos, posturas e modos
de ler tanto no discurso visual quanto textual. As modalidades de leitura
representadas nas narrativas são variadas tanto na escola quanto
fora dela: silenciosa e individual, em voz alta para si, em voz alta para
a classe, compartilhada com os familiares, em voz alta feita pela professora,
em voz alta feita pelos alunos e, ainda, pela escuta de alguém
que lê. E tinha a Semana do Silêncio. Era quando ela vinha
para a classe, abria sobre a mesa um romance água-com-açúcar
e ficava lendo o tempo todo. Nós ficávamos muito, muito
caladinhos. Entre os recursos utilizados pela professora Maluquinha,
o mais interessante e criativo é a “Máquina de Ler”
inventada por ela, que ao girar o rolo de papel possibilitava uma leitura
coletiva do poema escrito de baixo para cima: “Era uma bobina de
papel de embrulho da loja de um tio, onde foi, engenhosamente, adaptada
uma manivela. O começo do rolo de papel deixava ver escrito, em
letras grandes, um verso que nós nunca esquecemos.” (PINTO,
1995, p.54). Observa-se pela ilustração que o verso inesquecível
é parte de um poema infantil de Olavo Bilac, que exalta a natureza
brasileira: “Ama, com fé e orgulho,/ A terra em que nasceste/
Criança!” . Outro poema exibido na máquina para os
alunos lerem em voz alta é “Meus oito anos”, de Casimiro
de Abreu, que evoca o paraíso perdido da infância. E ficava ouvindo o menino ler aqueles versos simples de literatura de cordel. Gostava. Prestava uma atenção de gato sondando um passarinho pra pegar. O velho morava na mesma casa. Era o maior ouvinte das leituras do menino. (VITÓRIA, 1995, p.4) (itálicos nossos) Todo mundo estava ali com atenção dobrada. A história prendia como uma teia de aranha prende um mosquito. João Carlos e Maurilo não arredavam pé. Envolviam-se no arrojo declamatório do irmão e sentiam o fio da história se desenrolando nas emoções e o toque da beleza no prazer da imaginação. (VITÓRIA, 1995, p.18) (itálicos nossos) Com efeito, a diversidade de textos presentes nas narrativas
pressupõe diferentes objetivos e modalidades de leitura. O trabalho
com leitura na escola é feito com o objetivo de ensinar (leitura
obrigatória de uma obra literária em A 8ª. Série
C, leitura de jornais e livros didáticos em Redações
perigosas II e leitura da aula inaugural do diretor Sizefredo em O mistério
da obra-prima), de aprender com prazer (todas as leituras escolares de
Uma professora muito maluquinha) e, ainda, de punição por
indisciplina (a leitura sobre batráquios feita na biblioteca escolar
em A professora de desenho e outras histórias). Fora da escola,
a leitura ajuda a compreender conflitos pessoais (Laura em Que raio de
professora sou eu?) e situações políticas (Juca e
Marta em Pra você eu conto), proporciona o prazer ( Juvenal de Botina
velha, o escritor da classe e Marcelo de A professora de desenho e outras
histórias), transmite informações (os protagonistas
de A 8ª série C, Pra você eu conto, Redações
perigosas II, Que raio de professora sou eu? e O mistério da obra-prima)
e possibilita escapar da realidade (Theocar de O mistério da obra-prima).
Assim, na maioria das narrativas, a finalidade das leituras corresponde
mais às necessidades intrínsecas das personagens do que
aos objetivos pedagógicos. Convém ressaltar que em duas
narrativas, entretanto, prevalecem a intenção didática:
A 8ª. Série C e Redações perigosas II: a fome. ? Ele (o professor) disse que quem ler o tal livro recomendado
pela professora de Português da 8ª “C” ganha nota
em Moral e Cívica. Sabe, agora tudo é em conjunto, a gente
sai de um, cai no outro, não tem escapatória, não! A adoção de uma determinada obra juvenil,
seguida da visita da autora à escola, como a representada nesse
texto literário ? atualmente é um dos recursos amplamente
utilizados nas escolas para fomentar a prática de leitura ? tornou-se
parte de uma estratégia editorial que visa a estimular o consumo
do gênero. Essa estratégia é, então, internalizada
em A 8ª série C, que estabelece um diálogo entre autora
e leitores, promovendo a divulgação de outra obra, no qual
a escola é a mediadora: “a aula prossegue, a turma leu o
livro recomendado porque gostou; saem debates, há muito interesse,
e a hora passa rápida” (MOTT, 1987, p.110). Percebe-se também
o tipo de prática de leitura efetuada na escola dos anos 70 que,
com algumas modificações, se mantém até hoje:
além da leitura obrigatória de uma obra juvenil “adequada”
para a série em questão, escolhida pelo professor, solicita-se
ao aluno “analisar, fazer ficha, responder o questionário”
(MOTT, 1987, p.68). Embora esse tipo de prática ainda permaneça,
vale lembrar que o PCNLP recomenda ser melhor a leitura de muitas obras
diferentes do que uma única obra: “quando houver oportunidade
de sugerir títulos para serem adquiridos pelos alunos, optar sempre
pela variedade” (BRASIL, 1997, p.59) Ô, Ana Maria... Queria poder ver o seu rostinho
na hora em que você escrevia isso. De qualquer forma, queria conhecer
você. Você tem toda a razão. Os “Direitos da
Criança” não são respeitados. A criança
tem direito de ter uma alimentação, um lugar pra morar,
recreação e cuidados médicos, entre outras coisas.
Mas, conforme se mostrou em outros exemplos, as narrativas
assinalam que não há uma única maneira de ler, mas
uma representação plural de leituras. Assim, mapeados os
espaços da leitura, os sujeitos leitores, os objetos e os modos
de ler, resta agora perceber as conotações que permeiam
as leituras presentes nas narrativas. A apologia da leitura aparece em
três obras: A 8ª série C, Botina velha, o escritor da
classe e Uma professora muito maluquinha. A aplicação do protagonista aos estudos é enfatizada constantemente na narrativa. Até mesmo nas férias escolares de julho, Juvenal trabalha o dia inteiro na lavoura, inclusive aos sábados, aproveitando os domingos para ler. No comentário do narrador, o verbo “devorar” substitui o “ler”, demonstrando a relação de prazer sensorial do menino com o livro. A explicação sobre a limitação do vocabulário do menino e o desconhecimento do dicionário são índices que revelam obstáculos: Mês de julho de pés-de-vento, que aumentavam em agosto com redemoinhos e mais redemoinhos. Nos fins de semana, ou mais propriamente no Domingo, aproveitava para ler. Devorou a Seleta da Língua Portuguesa. Havia tantos termos desconhecidos e ele não podia entender. Não sabia nem se existia um livro chamado dicionário. Será onde aqueles escritores tinham achado tantas palavras estranhas, nunca ouvidas em casa ou no seu mundo de caboclos? (VITÓRIA, 1995, p.84) Em outra perspectiva favorável à leitura, a concepção de uma juventude sadia e atuante para a transformação da realidade brasileira, que aparece no debate escolar sobre a obra literária, também está presente em vários momentos do texto que encenam a recepção de Justino, o retirante na classe social favorecida de A 8ª série C: ? Sabe, no livro, a gente vê mesmo que Justino sabe disso, quase não pensa nele, ele não diz, vou ser médico pra ganhar dinheiro e comprar um carro e ficar rico. Ele fala que quer ser médico pra tratar das criancinhas, dos vermes deles, não é? (MOTT, 1987, p.74) Na leitura solitária do livro, Júlio não se identifica com a personagem Justino, mas percebe que precisa mudar de postura porque também faz parte do Brasil: (...) Amanhã tenho aula de ? olha o diário
? de Ciências, de Moral e Cívica, analisar o livro... e ainda
não li nem a metade. Acho que vou acabar . Tou gostando dele, que
menino bacana é o Justino, esforçado, dando duro, será
verdade tudo aquilo? Ou imaginação da autora? Poxa, se eu
fosse o Justino também ia estudar pra ajudar a melhorar o Nordeste. Mais uma vez, solidificando e renovando os laços
entre literatura e escola, a obra mostra a importante contribuição
educativa da literatura na formação do jovem atual. A representação
da escola e da literatura na escola em A 8ª série C propõe
um novo modelo de educação dos adolescentes, ajustado com
os comportamentos e valores da escola contemporânea, recusando o
antigo modelo de formação escolar. ? Eu sei que todos acham que (Horizonte) é só
um. Mas justamente vou escrever um livro, chamado Horizontes Novos. Em A professora de desenho e outras histórias aparece uma referência sobre leitura de fábulas que assume conotação negativa. Essa posição é feita na história “O livro de fábulas” quando o narrador comenta o presente recebido de uma colega de terceira série primária: Nunca gostei de fábulas. Essas histórias de ratinho que encontra um leão, de formiga que fala, eu achava meio infantis, meio bobas. Aliás, não sei por que nas histórias infantis tem tanto bicho que fala. Acho que é porque os adultos pensam que as crianças são meio assim também: bichinhos que falam. (COELHO, 1995, p.26) Pode-se, ainda, observar uma atitude satírica em O mistério da obra-prima já que a formação e o gosto pela leitura de romances policiais são explicados em função da feiúra e da timidez do protagonista Theocar. Em suas palavras ficam nítidas as inseguranças e dificuldades do adolescente em se aproximar das garotas: Nas noites de sábado, minha angústia era maior. Sempre havia uma festinha, um baile, um aniversário para ir. Às oito da noite, eu enfrentava o espelho e me desesperava. Ali estavam um rosto magro e pálido, um narigão colossal e as espinhas. Milhões delas, brancas, purulentas. (...). Voltava pro quarto e abria um livro. Foi então que me viciei em histórias policiais. (CAZARRÉ, 1986, p. 11-12) A narrativa, em oposição à matriz policial clássica, não é isenta de intriga amorosa, Theocar se apaixona à primeira vista pela professora Luísa. Nesse ponto da investigação, a obra estabelece um intertexto paródico explícito com a tradição romântica. Em meio à realidade de seu trabalho, Theocar entrega-se ao escapismo e à evasão, decolando em vôos imaginativos que só se interrompem com a interferência de Quincas. Ao aproveitar imagens e clichês consagrados pela literatura romântica, a personagem revela e impregnação desse imaginário construído pela leitura de poemas românticos, cujas fantasias produzem um efeito muito cômico no texto: Ela entrou na sala, mas o seu perfume ficou. Minha frenética
imaginação de amante de poemas românticos entrou em
pane, tantas eram as cenas que criava. Em todas, eu via-me ao lado da
professora. Ora correndo por um bosque avermelhado pelo outono, de mãos
dadas, ora passeando por uma praia deserta, batida pelos ventos, igualmente
de mãos dadas. Enfim, no conjunto dos textos analisados, ainda que se possa constatar a presença do discurso pedagógico no ensino da literatura de A 8ª série C e nos comentários das leituras realizadas pela professora Rosemeire de Redações perigosas II, observam-se mudanças nos modelos e nas concepções de leitura e de literatura, com a ampliação de seus contextos, leitores, tipos de textos, circulação e modos de ler. Tais representações apontam para a democratização das práticas leitoras no Brasil e para a legitimação de certos tipos de textos e de leitores no circuito fechado da instituição acadêmica da literatura, possibilitando a travessia do ensino escolar da leitura para a leitura do cotidiano e vice-versa. Referências Bibliográficas ABRAMOVICH, Fanny. Que raio de professora sou eu? Il.
Célia Eid. São Paulo: Scipione, 1990. CBL/BRACELPA/SNEL/ABRELIVROS. Retrato da leitura no Brasil.
Cd-rom. Franceschini: São Paulo, 2001. |
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