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QUEM
LÊ JORNAL SABE MAIS (?) INVESTIGANDO A LEITURA NOS PROGRAMAS DE
JORNAL E EDUCAÇÃO.
Kátia
Zanvettor Ferreira - Universidade Federal Fluminense (UFF)
Situando
a questão
Este relato
é parte de uma pesquisa em andamento que investiga o uso do jornal
em sala de aula. Focamos nosso estudo nas atividades de leitura processadas
no interior dos Programas de Jornal e Educação (PGjed) ,
em especial no programa “Quem lê jornal sabe mais”,
ligado ao jornal O Globo do Rio de Janeiro. Iniciamos nosso caminho transformando
em questão a afirmativa que nomeia o programa que elegemos para
estudo: quem lê jornal sabe mais? Com esse questionamento pretendemos
relativizar o papel do jornal nos processos educativos, procurando perceber
sua relevância para a formação do leitor. Quer dizer,
queremos compreender quais efeitos de sentido que o jornal constrói
sobre a idéia de leitor quando estabelece sua interlocução
com a escola.
O interesse por esta pesquisa começou com questionamentos que encontrei
durante o percurso da minha graduação no curso de jornalismo,
concluída em 2001: marcada tanto pelas atividades do próprio
curso quanto pelos debates políticos no interior do movimento estudantil.
Academicamente estava em contato com as tradicionais teorias do campo,
isto é, aquelas que se apropriam do modelo norte-americano de jornalismo
, mas por outro lado, no exercício da imprensa estudantil, experimentava
uma forma diferenciada de fazer jornalismo . Foi desse confronto entre
teoria e prática que surgiu os primeiros questionamentos sobre
o padrão colocado para o jornalismo em nossa sociedade e como os
conceitos de imparcialidade, objetividade e neutralidade confrontam, como
observa Marques de Melo (1986), a própria natureza da informação
jornalística.
Da mesma
forma que a burguesia constrói uma noção de Estado
como instituição a serviço do bem comum, dos interesses
da coletividade, etc., ela também engendra uma concepção
de jornalismo como quarto poder, como espaço de interesse público.
E, com isso, ocorre um processo sutil de desideologização,
despolitização do jornalismo. Emergem os conceitos de objetividade,
neutralidade, imparcialidade, que, na verdade, são os pilares da
própria “ideologia do jornalismo” na sociedade capitalista.
(MARQUES DE MELO, 1986)
Quando a camisa de estudante saiu de cena para entrar a de jornalista
aprofundei esses e surgiram novos questionamentos. No aprendizado da reportagem
em diferentes jornais diários e nas atividades de assessoria de
imprensa compreendi que a estrutura dos diferentes elementos da indústria
cultural se articulam de tal forma que produzem um efeito de realidade
tão complexo que se apresenta como a própria realidade (RUMMERT,
2002).
Essa trajetória permitiu meu encontro com autores críticos
do modo tradicional do fazer jornalismo e também a mudança
de perspectiva sobre o que é jornalismo, entendido agora como uma
ação política e não como técnica de
transmissão de informação (MARQUES DE MELO, 1986).
Abramo (2003) e Arbex (2003) contribuíram para entender como se
organizam os grandes conglomerados de comunicação no Brasil,
representados hegemonicamente pelas grandes empresas de televisão.
Medina (1978) traz a notícia como produto no interior da indústria
cultural e Marques Melo (1986) historiciza o jornalismo na sua relação
com o capitalismo e explicita seu caráter político, de um
lado, e econômico, de outro.
O percurso profissional que colocou questões sobre o jornalismo
também me aproximou das atividades de leitura de jornal em sala
de aula. Como repórter, participei de debates com alunos de uma
escola estadual no interior do estado de São Paulo, promovidos
por professores de português. Esse espaço me fez perceber
a importância que professores e alunos atribuíam ao material
jornalístico, e como esse material estava presente nas atividades
educativas, independente de sua institucionalização no currículo
escolar. Encontrei o jornal sendo usado como pretexto para outras aprendizagens
como ortografia e gramática (GRAMMONT, 2005) ou, ainda, para contextualizar
debates sobre o conteúdo disciplinar . Frases como “eu li
no jornal” ou “eu vi na TV” reforçavam os argumentos
em discussões dos diferentes interlocutores presentes no espaço
escolar.
Como assessora de imprensa, fiz a cobertura jornalística e participei
de uma série de eventos para formação de professores
no interior do curso de pedagogia . Nesses espaços presenciei diferentes
vezes a defesa do uso do jornal como recurso didático, sendo esse
material colocado na posição de portador da realidade, logo
como ferramenta facilitadora do processo de aquisição da
leitura e escrita. Em contrapartida poucas vezes encontrei reflexões
sobre o jornal como produto da indústria cultural, construtor de
sentidos e portador de uma visão de mundo.
Essa aproximação me colocou em busca de outros caminhos
teóricos, enveredando o meu olhar também para a educação,
principalmente para as questões da leitura. Em uma primeira aproximação,
Freire (1977;1987) contribuiu para questionar a educação
bancária e formular uma crítica sobre o jornal na sala de
aula e seu caráter de suporte, portador da “informação”
e da “verdade”, sem uma efetiva problematização
dessa informação e dessa verdade. Se, para Freire os educandos
não são bancos vazios em que a instituição
escolar deposita o conhecimento, poderíamos pensar que, da mesma
forma, a “realidade” não é composta de espaços
em branco que devem ser preenchidos pelas notícias jornalísticas.
A aproximação com a questão da leitura e da criticidade
se deu, num primeiro momento, com a leitura de Silva (1991;1998), que
explicita a íntima relação entre as dificuldades
de formação do leitor crítico com os mecanismos de
inversão da realidade existentes nas sociedades conservadoras;
e também por Geraldi (1995), que mostra que o árduo caminho
de tornar a leitura uma realidade não está separado da compreensão
sobre a injustiça em que a sociedade está mergulhada e da
luta por uma transformação.
Costurando essas diferentes posições entre o jornalismo
e a educação, levantei a hipótese de que a leitura
do jornal em sala de aula contribui para a formação crítica
do educando apenas se for realizada uma leitura crítica do jornal
em si, ou seja, uma leitura não só de suas matérias,
mas também de suas filiações históricas, econômicas
e políticas, e se considerarmos também os sujeitos a ele
veiculados, procurando ler o que está explicito no texto e também
aquilo que não está escrito, mas dito por uma série
de outros indícios.
Minha posição de jornalista, conhecedora do processo produtivo
da notícia, me levou a acreditar que professores e educandos poderiam
também se aproximar desse processo e, assim, ter elementos para
reconhecer que o jornal não representa a “realidade”,
mas apenas uma ínfima parte dela, um “recorte” dela.
E mesmo essa ínfima parcela que chamamos precariamente de realidade
é perpassada por uma série de posicionamentos de mundo que
incidem sobre jornal e jornalistas (GOMES, 2003).
Como leitora, e estudando as questões da leitura, fui me convencendo
de que, assim como a notícia, existem condições de
produção da leitura. Isto é, ler é o momento
crítico de constituição do texto (ORLANDI, 1999).
A aproximação da jornalista com a educação
se efetivou pela presença do jornal em sala de aula, mas atravessada
pela questão da leitura. E foi a partir dessas diferentes posições
e dos interesses distintos que elas suscitam que formulei as seguintes
questões: qual concepção de leitura é construída
pelos jornais, como essa concepção se relaciona com a escola
e qual a apreensão da escola sobre o uso e o funcionamento do jornal
a partir desta concepção?
A partir de tais questionamentos me aproximo da perspectiva de leitura
construída pela Análise de discurso de tradição
francesa que pode apontar caminhos para que se melhor compreenda o papel
do jornal na escola, sua importância para a formação
do leitor e também para relativizar a sua função
social. Por isso, entendemos este projeto como uma tentativa de contribuir
para “desnaturalizar” a presença do jornal em atividades
pedagógicas.
Jornalismo,
discurso e leitura.
Tanto o jornalismo
quanto os elementos que o compõem são (ou, ao menos, estão
diretamente relacionados a manifestação da) linguagem (KRONKA,
2004).
Ao buscar
compreender a linguagem nos aproximamos da definição de
Eni Orlandi que a toma como trabalho, no sentido de que não tem
a linguagem um caráter nem arbitrário nem natural, mas necessário
(ORLANDI, 2001:25). A linguagem é, para nós, um processo
que se concretiza na interação homem, realidade natural
e social. É, desse modo, mais que um instrumento de comunicação
ou mediação entre homens, é produção
social.
Assim, sendo o jornalismo uma manifestação da linguagem,
como nos apresenta Kronka, a leitura de uma notícia, ou qualquer
outro produto jornalístico, deve levar em consideração
suas condições de produção. Isto é,
ao lermos o jornal temos que considerar também que estamos “lendo”
os interesses econômicos que movem a empresa de comunicação,
as particularidades que envolvem o processo produtivo da notícia,
sua posição no interior do sistema capitalista, as histórias
dos diferentes autores que o produzem: jornalistas, articulistas, pesquisadores,
entrevistados e ainda os leitores de jornal.
Ao produzir a notícia o jornal está construindo um discurso
sobre a sua visão de mundo, sobre seu tempo, sobre seus interesses,
ao selecionar uma pauta em detrimento de outra o jornal não faz
simplesmente uma escolha, mas coloca em evidência um ponto de vista
e apaga outro. Assim, como nos propõe Rosa Fischer a análise
de discurso da mídia deve buscar...
(...)os enunciados
de certos discursos, de certos regimes de verdade, próprios de
uma época, produzidos, veiculados e recebidos de formas muito específicas,
que falam de um certo tempo e lugar, que falam de determinadas relações
de poder, que produzem sujeitos de uma determinada forma (FISCHER, 2002)
Foi procurando
compreender esses enunciados que nos aproximamos de um entendimento sobre
o que é Discurso, que, de objeto acabado passa a ser visto como
acontecimento (PÊCHEUX, 1998), como o lugar da produção
da linguagem. O discurso não como transmissão de informação,
mas como efeito de sentido entre interlocutores, isto quer dizer que ele
não é um conjunto de significados a ser decifrado para obtermos
a verdade ali contida, mas é a expressão material das relações
entre interlocutores (sujeitos do discurso), da situação
de enunciação, do contexto histórico e social, das
condições de produção.
Logo o discurso jornalístico não representa um objeto estático,
mas um lugar em que se objetiva os interesses particulares e as relações
de poder que permeiam o produto noticioso. Contudo, para se legitimar
como produto cultural seus discursos precisam se organizar de tal maneira
que os interesses particulares soem como interesses coletivos. Sonia Rummert
(2002) descreve os critérios gerais que pautam o processo de produção
dos conteúdos dessa indústria, entre eles está o
da simplificação dos conteúdos, que se caracteriza
pela impessoalidade e pela superficialidade. Como o objetivo é
atingir o máximo de público possível a linguagem
deve ser a menos seletiva possível.
De modo diferente Fairclough trabalha com a idéia de que a mídia
de notícias – para usar um termo do autor – reduz ao
máximo a dicotomia entre as falas de suas fontes hegemônicas
(grupos dominantes) e as falas de seus leitores, criando uma falsa idéia
de o que está reportado não é de interesse particular,
e sim, coletivo.
Os eventos
dignos de se tornar notícia se originam de limitado grupo de pessoas
que tem acesso privilegiado à mídia, que são tratados
pelos jornalistas como fontes confiáveis, e cujas vozes são
aquelas que são mais largamente representadas no discurso da mídia.
Em algumas notícias da mídia essas vozes externas tendem
a ser explicitamente identificadas e demarcadas (...) Quando, entretanto,
elas são traduzidas na versão do jornal da linguagem popular
(...) há um grau de mistificação a respeito de quem
são essas vozes e as posições de que estão
sendo representadas. (...) Os grupos poderosos são representados
como se falassem na linguagem que os próprios leitores poderiam
ter usado, o que torna muito mais fácil de adotar os seus sentidos.
Pode-se considerar que a mídia de notícias efetiva o trabalho
ideológico de transmitir as vozes do poder de uma forma disfarçada
e oculta. (FAIRCLOUGH, 2001: 144).
Esses padrões
de sentidos construídos para os produtos da indústria cultural,
entre eles o jornalismo, se confronta com a concepção de
leitura que estamos assumindo, aquilo que estamos chamando de leitura
crítica. A Homogeneização e a simplificação
do discurso jornalístico prevêem uma leitura que não
deixe lacunas, propicie divagações ou questionamentos (RUMMERT,
2002). Assim, a leitura assume uma característica funcionalista
em que o objetivo final é o consumo da informação.
Mas a leitura é o processo de reconstrução dos sentidos
do texto, não só daqueles colocados, no nosso caso nas páginas
dos jornais, mas dos sentidos que não estão ali evidenciados,
mas que de uma forma ou te outra estão ali colocados.
Os sentidos que podem ser lidos, então, em um texto não
estão necessariamente ali, nele. O(s) sentido(s) de um texto passa(m)
pela relação dele com outros textos.
Isso mostra como a leitura pode ser um processo bastante complexo e que
envolve muito mais do que habilidades que se resolvem no imediatismo da
ação de ler. Saber ler é saber o que o texto diz
e o que ele não diz, mas o constitui significativamente. (ORLANDI,
1993:11)
Assim esses
estudos iniciais nos convencem que o acesso aos produtos da indústria
cultural por si só, e aqui lê-se especialmente os jornais
impressos, não garante imediatamente um conhecimento maior ou uma
prática de leitura crítica. Não é natural,
e por isso essa pesquisa se propõe a problematizar como o uso do
jornal na educação pode ser aproveitado antes de tudo para
problematizar o próprio papel do jornal e da sua influência
para a leitura.
Se, segundo Eni Orlandi (1999), ganhamos com a análise do discurso
a idéia de que a leitura é produzida e de que essa produção
se estabelece no processo de interlocução entre autor(es)
e leitor(es), então podemos ressaltar que quanto mais o leitor
compreende como se processa essa produção mais fluído
e crítico se estabelecerá esse diálogo.
(...) a leitura
é o momento crítico da constituição do texto,
pois é o momento privilegiado da interação verbal:
aquele em que os interlocutores, ao se identificarem como interlocutores,
desencadeiam o processo de significação.
Em outras palavras: é na sua interação que os interlocutores
instauram o espaço da discursividade. Autor e leitor confrontados
definem-se em condições de produção e os fatores
que constituem essas condições é que vão configurar
o processo de leitura. (Orlandi, 1999: 48)
Conclusão
Apresentamos
aqui os primeiros resultados da nossa investigação que tem
como foco central investigar o discurso sobre leitura construído
a partir das atividades desenvolvidas com o jornal em escolas ligadas
ao projeto “Quem lê jornal sabe mais”. Esse estudo preliminar
indica a complexidade das relações existentes entre o jornal,
como produto da indústria cultural, e a educação.
Considerando que as condições de produção
do texto jornalístico interferem no uso pedagógico que a
escola possa fazer dele.
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