Ana Cláudia e Silva Fidelis – Universidade
Estadual de Campinas / UNICAMP
Ao discutir a prática escolar e a forma como a
leitura literária tem sido tratada nos últimos anos no ambiente
escolar, é preciso ter em vista qual a representação
canônica que circula nesse ambiente e qual a imagem de literário
e de autor/obra canônicos que perpassa o discurso escolar. Dessa
forma, o presente trabalho pretende refletir sobre esse discurso escolar
acerca do literário e do cânone constituído, a partir
da análise de uma coleção de livros didáticos
(Textos: Leituras e Escritas, de Ulisses Infante), utilizados por professores
do Ensino médio, apontando quais as escolhas canônicas feitas
pelo autor do manual, na tentativa de ponderar sobre o papel da escola
como enformadora de um certo cânone junto a seus leitores potenciais,
os alunos de Ensino Médio.
É preciso, primeiramente, relativizar uma provável postura
de demonização do cânone, pois não é
intenção deste trabalho discutir a relevância, importância
ou valoração do cânone nacional brasileiro, seja o
constituído pela crítica especializada, seja o enformado
no ambiente escolar através da prática do professor e, principalmente,
da utilização do livro didático.
Assim, o principal objetivo aqui é tornar possível reflexão
sobre o modo como esse cânone também se institui na escola
a partir de um discurso sobre o literário e pela maneira como determinados
autores passam a constituir as possibilidades de leitura para os alunos
do Ensino Médio, em geral, em detrimento de outros.
O cânone, portanto, será visto aqui como um recorte necessário
dentro de um leque maior de obras e autores representantes de um certo
fazer literário, recorte esse que envolve pressupostos, valores
e instituições que o apóiam e que procuram controlar
os seus textos constitutivos. Entenda-se por cânone “uma institucionalização
de um certo número de autores e textos que se tomam como fundamentais
para a compreensão de uma dada história e tradição
literárias” (Ceia: 1999).
Dessa forma, a partir do levantamento dos autores e das respectivas obras
veiculadas via livro didático talvez seja possível pensar
o papel da escola como difusor de um modelo de leitura e de percepção
do literário que terá conseqüências diretas na
formação de um aluno-leitor. Isto porque a existência
do cânone sustenta-se graças, entre outros fatores, às
instituições que o apóiam. Assim, estas instituições
responsáveis pela promoção de saberes, entre elas
a escola, constroem e controlam os autores e obras que circulam em seu
ambiente de ensino. Exerce, portanto, um papel fundamental nesse processo
de legitimação de um certo número de autores e obras
como canônicos.
De um lado, os livros didáticos reconstituem a historiografia literária,
destacam os principais autores e suas respectivas obras, organizam o material
crítico sobre períodos literários e seus principais
representantes. Portanto, os livros didáticos possuem uma força
enformadora, capaz de direcionar o que se lerá na escola, pois
reapresentam ao professor, sob nova organização, autores
e obras representativas de um certo fazer literário.
De outro, os professores selecionam, a partir do recorte já feito
pelo livro didático, as obras a serem estudadas. É possível
pensar na imagem matemática da intersecção. É
um cânone a partir de outro cânone. Ou um cânone oriundo
de um outro. A escola surge como mediadora nesse processo, colocando-se
como o lugar em que esses alunos-leitores vão ter acesso a esse
discurso literário-crítico e a essas obras consideradas
relevantes.
O primeiro aspecto, claramente detectável na análise do
material veiculado pela coleção ora em estudo, é
o de que há uma reafirmação do caráter canônico
proposto pela historiografia e pela crítica literárias brasileiras
e portuguesas. Há, no geral, uma reafirmação do cânone
legitimado por esse discurso crítico. E embora se apresente como
um registro parcial, essa parcialidade está fincada em escolhas,
quase todas elas, antológicas de um discurso formador do conceito
de Literatura Brasileira (por questões metodológicas, este
estudo vai centralizar-se na análise do corpus de autores e obras
brasileiras, deixando de lado os capítulos referentes à
literatura portuguesa).
As escolhas mais óbvias estão todas presentes, de Gregório
de Matos Guerra a Oswald de Andrade, de Alencar a Drummond. Nota-se, no
entanto, que os “espaços” dados a cada autor variam
e essa variação está ditada já por um a priori
de valoração canônico imposto pela crítica
literária.
Se aos árcades é dado o mesmo “espaço”
valorativo (Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga,
Basílio da Gama, Silva Alvarenga, Santa Rita Durão) o mesmo
não acontece como os românticos e realistas, por exemplo.
Essa diferença valorativa está ilustrada pelo maior ou menor
espaço reservado a cada autor e pela quantidade de textos escolhidos
tanto de sua antologia quanto de sua fortuna crítica.
Nos capítulos referentes ao Romantismo repete-se a conhecida divisão:
os precursores (Dias e Magalhães), os prosadores (Macedo, Alencar,
Taunay e Manuel Antonio de Almeida) e os poetas (Álvares de Azevedo,
Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Castro Alves e Sousândrade).
Entre os precursores, Gonçalves Dias revela-se “mais”
canônico que Magalhães, visto que o espaço reservado
ao primeiro é bem maior que ao segundo. Castro Alves também
se sobrepõe a Sousândrade, Alencar aos demais romancistas
e Álvares de Azevedo, aos seus pares. Vale nota, a presença
do teatro de Martins Pena, um autor canônico não tão
óbvio quanto os outros. Tome-se por “óbvio”
aqueles autores presentes em qualquer recorte canônico, em qualquer
época, de qualquer discurso crítico-literário. E,
principalmente, como parâmetro de comparação para
este estudo, presentes em outros manuais voltados para público
(alunos de ensino médio) e situação discursiva específicas.
No capítulo referente ao Realismo ocorre mesma lógica. Ênfase
maior à obra machadiana, espaço menor, mas igualitário
para Raul Pompéia e Aluísio Azevedo e os dignos apenas de
nota: Adolfo Caminha, Júlio Ribeiro, Rodolfo Teófilo, Domingos
Olímpio e Manuel de Oliveira Paiva. Apesar de constarem apenas
como “nota de rodapé”, é interessante observar
que em outros manuais a estes autores nem ao mesmo está reservado
qualquer comentário ou seleção de textos ou fragmentos.
Em certa medida, isto revela uma certa preocupação do autor
de “ampliar” esse recorte canônico, aproximando o aluno
de um número maior de autores (mesmo que apenas citados brevemente).
Este esforço acaba por tornar-se recorrente em alguns momentos
das análises crítico-literárias empreendidas pelo
autor e vai tomando proporções de uma maior abertura para
esse recorte canônico com a escolha de autores não tão
óbvios e, conseqüentemente, com a cessão de um maior
espaço para seleção de textos e análise crítica.
Já nos capítulos referentes ao Simbolismo e Pré-Modernismo
percebe-se um movimento diverso. Há uma abertura para outras possibilidades
canônicas não tão óbvias. Assim, figuram lado
a lado: Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e Pedro Kilkerry. Lobato,
Lima Barreto, Euclides e Hilário Tácito. Isto evidencia
a possibilidade de trabalhar com maiores variáveis, pois muito
embora não sejam autores absolutamente estranhos e desconhecidos,
tanto Pedro Kilkerry quanto Hilário Tácito não costumam
constar em outras obras do mesmo gênero, ou seja, de manuais de
literatura para o Ensino Médio.
Já os capítulos destinados ao estudo do Modernismo e das
produções contemporâneas aumentam essa impressão
de uma maior “liberdade” nas escolhas canônicas, evidenciando
a marca de um cânone “próprio” do autor do livro
didático. As escolhas, aqui, vão desde os autores mais conhecidos
e consagrados – Oswald e Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
Cecília Meireles, Drummond, Guimarães, Clarice, Lins do
Rego, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, Graciliano, Érico
Veríssimo. Aos menos evidentes, Luis Aranha, Ribeiro Couto, João
Gilberto Noll, Dyonélio Machado, Cyro dos Anjos, Murilo Rubião,
Rubem Braga, por exemplo.
Estes exemplos servem para ilustrar um certo movimento entre centro e
periferia do cânone. Em toda formação de um cânone
há mecanismos de escolha, seja a inclusão ou a exclusão,
que são representativos dos conceitos, valores e pressupostos que
regem essas escolhas. Nesse sentido, a aparente obviedade na recorrência
de certos autores indica um certo centro para esse cânone, ou seja,
autores que a ele pertencem, pois sua importância e a de sua obra
são relativamente inquestionáveis ou que são sempre
lembrados. São autores que aparecem em todas as listas, em todos
os tempos, de qualquer crítico literário e figuram em qualquer
livro de historiografia literária brasileira.
Ao lado desses autores “inquestionáveis” aparecem autores
que ora figuram, ora não figuram em certos momentos no cânone
literário e, portanto, movimentam-se na órbita desse núcleo
relativamente estável. No entanto, não se pode compreender
o cânone como fixo, fechado e pronto. As obras vão e vem
a depender dos mecanismos utilizados no momento da escolha. Assim, observando
os volumes que compõem a série ora em estudo, pode-se depreender
que há autores que possuem um lugar no cânone e que formam
um certo centro canônico e autores que freqüentam ou não
esses manuais a depender de seu resgate num leque maior de opções.
É, dessa maneira, que se percebe esse movimento entre um certo
centro e sua periferia, demarcando a inclusão/exclusão dos
autores e obras.
Surgem, ainda, por esse mecanismo de movimento centrípeto, nomes
como: Dias Gomes, Armindo Trevisan, Geir Campos, Péricles Eugênio
da Silva Ramos, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Ignácio
Loyola de Brandão, Moacyr Scliar. Não com um papel de destaque,
uma análise acurada da obra, mas sempre como ilustrativos de um
certo fazer literário.
Pode-se perceber, também, um movimento de deslocamento do objeto
canônico, ou seja, muitas vezes autor e obra surgem deslocados,
não aparecem apenas nos capítulos referentes ao estudo do
momento literário no qual estão inseridos. É o caso,
por exemplo, de Ariano Suassuna cujo Auto da compadecida é posto
em comparação com os autos de Gil Vicente. Não há,
no entanto, nenhum comentário explicativo, nenhuma menção
ao autor em específico, apenas a sugestão de um elo comparativo
(relativamente comum no caso desses autores) entre o texto do brasileiro
e do português. Outro caso recorrente nesse deslocamento de autor/obra
é Cecília Meireles que aparece sucessivas vezes ao longo
dos três volumes da série, inclusive e mais pontualmente
no capítulo concernente à Poesia modernista da geração
de 30.
Outro aspecto, que se refere às escolhas canônicas pontuadas
nesta coleção, é de uma “utilização”
de autores renomados, nem brasileiros nem portugueses, para ilustrar/exemplificar,
através de seus textos, assuntos de teoria e crítica literárias
mais gerais, por exemplo, aspectos da poesia e da prosa. Percebe-se, então,
certa preocupação em oferecer outras possibilidades canônicas
que não estejam restritas à Literatura brasileira ou portuguesa.
Cite-se a presença de textos de autores que figuram em listas canônicas
da literatura ocidental, tais como: Goethe, Coleridge, Byron, Vítor
Hugo, Gabriel Garcia Márques, Julio Cortazar.
É possível pensar que a escritura do manual traduz-se concretamente
na construção de um “tecido canônico”,
pois, o autor do manual, por movimentos de exclusão/inclusão,
acaba por constituir um seu “cânone”, próprio,
em que autores mais conceituados misturam-se com outros menos lembrados
ou com alguns até mesmo esquecidos pela crítica literária
atual e, principalmente, pelo público leitor da atualidade. Ao
representar essas escolhas literárias via gênero manual,
acaba-se por acentuar o status desses autores e de suas obras pela legitimidade
do livro, reafirmando seu caráter canônico junto ao público
ao qual ele se destina.
A escola, nesse contexto, ao adotar o livro didático em seu ambiente
de leitura, assume como seu este certo cânone literário (constituído
através do manual) e dá a ele respaldo e sustentação.
Juntam-se, então, duas forças legitimadoras – o livro/gênero
manual e a escola/espaço de leitura. Entra em curso um processo
de institucionalização de um cânone, pois essa comunidade
de leitores passa a aceitar esse recorte de autores e obras como representativos
de uma literatura nacional e para o aluno essas obras passam a figurar
em seu imaginário de leitor, formadoras de suas percepções
sobre o literário e sobre a prática da leitura.
Além disso, a prática pedagógica nas escolas está
diretamente relacionada às escolhas feitas pelos professores responsáveis
pelo material didático adotado, pois as aulas de literatura são
pensadas, estruturadas e ministradas tendo em vista os romances e autores
que compõem esses manuais. Portanto, essas escolhas, além
de reafirmarem o caráter canônico de determinados textos
e autores, delineiam a maneira como professores e alunos no Ensino Médio
passam a formular suas hipóteses sobre o literário e sobre
o que é literatura e selecionam o que o estudante lerá em
seus anos preparatórios, antes do ingresso em uma instituição
de nível superior, demarcando o muito ou pouco de sua formação
como leitor.
Percebe-se, portanto, a força que os manuais passam a ter, em função
de seu caráter organizacional de um certo número de autores
e obras que se colocam para o público leitor como representação
de um valor estético e literário. Esta força enformadora,
delineando o que se lê em determinados momentos do percurso escolar,
legitima-se, graças a três aspectos complementares: o respaldo
institucional, o próprio processo de escolha, capaz de legitimar-se
como critério de valor e a reafirmação do cânone
literário consagrado pela crítica e historiografia literárias.
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