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LINGUAGEM
VERBAL E NÃO-VERBAL NA DEFICIÊNCIA: UM ESTUDO DE CASO
Anamaria Attié Figueira - Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
O trabalho se faz dentro de uma concepção
de linguagem aberta, mostrando que o foco na patologia pode ser colocado
sobre as possibilidades de expressão e comunicação
para além da palavra. A pesquisa inclina-se para o que o autista
pode nos mostrar e não para o que, nele, constitui uma falta, em
relação ao indivíduo “normal”. Esta abordagem
do corpo se faz dentro de uma concepção de linguagem que
envolve relações e não atributos, pois tentou-se
evitar as categorias estanques de normal e patológico.
Esta pesquisa trata fundamentalmente da valorização das
significações não-verbais enquanto gesto, expressão
facial, comunicação através do corpo, uma vez que
o transtorno autista dificulta a verbalização. Na educação
especial, a utilização do corpo enquanto comunicação
é de extrema importância para indivíduos com diversas
síndromes, que utilizam outras formas de linguagem acompanhadas
da palavra.
A palavra é uma representação da consciência
humana e é com ela que o homem se comunica. Na educação,
a forma do indivíduo comunicar-se está na linguagem. A linguagem
pode ser dividida entre o dito e o não-dito ou este não-dito
pode apenas acompanhar a linguagem do dito. Ou seja, podemos falar apenas
da importância da palavra, apenas da importância do corpo
ou da importância deste corpo acompanhado a palavra.
Normalmente as pessoas que sofrem de algum distúrbio acabam sendo
isoladas, o que é prejudicial, pois se todo meio de expressão
são acometidos de repressão, estes podem transformar-se
em processos de angústia caracterizando muitas vezes em reações
psicossomáticas. É comum, na área da psicologia,
estudarem-se os sintomas manifestados através do corpo. O corpo
é também lugar de expressão. A Psicologia, sem dúvida,
tem isso em conta, na medida em que enfatiza um corpo social e histórico.
Porém, o interesse da psicopatologia se limita, muitas vezes, a
enfocar o aspecto patológico dos sinais manifestados sobre o corpo
na forma de sintomas. No entanto, isto não é tudo, deve-se
destacar aqui os aspectos produtivos e comunicativos do corpo, e não
buscar fazer tão-somente uma relação saúde-doença.
Seria possível abandonar esse modo de pensar o ser humano, que
resulta numa classificação? Permanecer nele pode significar
uma forma aniquiladora do ser enquanto possibilidade de transformação,
pois ninguém tem um único estado, os indivíduos mudam
de estado e isto não pode ser considerado como anormal. Que regras
tiramos para a comprovação do que é normal e do que
é patológico, diante da variedade das reações
humanas? Tentarei neste texto trabalhar com os dois pólos, o da
patologia e dos aspectos produtivos da personalidade, ou seja, o que existe
de compensatório no Transtorno Autista.
Será que devemos formar regras para a prescrição
do que é normal? Que lugar de poder ocupa este homem que faz experimentos
laboratoriais para descrição do que seja um comportamento
normal ou comportamento patológico? Quem serão os eleitos
como normais? A sobra serão os patológicos?
Pode-se partir do princípio que este pensamento dicotômico
corpo-mente ainda persiste para alguns. Por exemplo, alguém que
tem um corpo limitado por alguma deficiência teria uma mente defeituosa.
Nossa sociedade se comporta de acordo com uma visão muito estreita
do que corpo defeituoso é causador de uma mente defeituosa, ou
vice-versa.
Ainda vemos uma reprodução das idéias marcadas pelo
localizacionismo, vindas do século XIX, onde se tem profissionais
nas áreas da linguagem que reproduzem um pensar localizacionista
e não dialético. Vejamos o que há de equivocado em
se pensar assim. Quando se acredita que a doença ou a patologia
é conseqüência de determinada parte lesada do cérebro,
pode-se correr o risco de considerar o diagnóstico como fechado,
e, como conseqüência disto, fica- se dispensado de pensar nas
diferentes relações que interagem e dão significados
às manifestações daquele sujeito com uma lesão.
Esta forma de pensar elimina ou apaga (pelo menos obscurece) uma consideração
importante, não se pensa numa linguagem de relações
e sim de atributos, onde o indivíduo é estigmatizado e visto
por categorias de status social e não identidade. Este estigma
é a relação entre atributo e estereótipo.
Em nossa sociedade assume uma forma de representar negativamente o ser
humano, por sua deficiência e não por seu potencial .
O profissional (seja o educador, o psicólogo, o fisioterapeuta,
o médico, o terapeuta ocupacional, o assistente social) em vez
de se deixar levar por um sistema regido por normas e padrões,
onde a diferença é estigmatizada, cristalizando papéis
sobre este indivíduo que aparentemente não se enquadra no
que é belo, deveria ter um olhar desconstruído da idéia
de que o diferente é patológico.
No sentido amplo, o termo linguagem pode ser estendido a qualquer forma
de expressão. No sentido restrito, apenas às formas de expressão
que se utilizam de sons articulados (línguas naturais humanas)
. É no primeiro sentido que a palavra linguagem será usada
aqui, isto é, para fazer referência aos significados que
podem ser expressos através de gestos, sons não-articulados,
e de outros sinais expressos pelo corpo do indivíduo autista em
interação com o outro.
Para cada relação utiliza-se um tipo de linguagem. O uso
desta vai depender do tipo de relação que se estabelece
com o outro e também da cultura. Mas pensando na aquisição
da linguagem – fato que se dá na infância e como já
sabemos, visto por Vygotsky (1995), que não dispensa a presença
do outro – alguns pontos deste processo merecem destaque num trabalho
como este que se propõe a tematizar linguagem – corpo - educação.
Por exemplo, se é na relação social que se demonstra
o uso da linguagem, então podem ser observadas várias formas
de linguagem, além daquela que se expressa por signos verbais (=
palavras). Daremos ênfase aqui às manifestações
não-verbais (gestos, expressões faciais, etc.), como via
de ensino-aprendizagem para o aluno com autismo, porque - acredita-se
- é uma via de contato com o autista que não pode ser desprezada.
Porém, ao fazê-lo tentaremos não desfazer da importância
da linguagem universalmente aceita (línguas naturais humanas) até
porque só se pode falar em linguagem não-verbal porque existe
a verbal. Tentarei então evitar a hierarquização
das diferentes formas de linguagem e destacar a importância das
linguagens como formas de acesso educativo para o aluno com autismo.
A análise deste trabalho educacional com autista está no
sentido de não fazer dicotomias entre um discurso valorativo e
classificatório de boa e má linguagem e sim dar ênfase
nas outras formas de utilização da linguagem além
da verbal, de tal forma que esta contribua para a compreensão do
ser humano.
Porém, a linguagem verbal é, sem dúvida, importante
para a representação do mundo e para a constituição
do indivíduo como ser social, mas não é o único
fator para o desenvolvimento do ser humano. Existem, e pensamos ser necessário
enfatizar as outras formas de comunicação, como por exemplo,
uma comunicação menos estereotipada e mais ampla, através
de gestos, dando um sentido e um significado na comunicação
com indivíduos autistas e indivíduos sem deficiência.
O problema está na diferença de estatuto entre os dois tipos
de mediação. Tradicionalmente, o ensino formal e mesmo a
terapêutica, têm valorizado, principalmente, a mediação
verbal. As mediações não-verbais têm sido relegadas
e, muitas vezes, totalmente ignoradas ou desconsideradas. Por quê?
Cita-se um exemplo para introduzir melhor estas observações:
quando o educador na sala de aula lê para alunos não-alfabetizados
com transtorno autista e dramatiza ou conta uma estória. Onde isto
se torna evidente? Através da utilização da palavra,
com certeza. Mas esta não está sozinha, vem acompanhada
de gestos, mímica, movimentação corporal. Tais alunos,
aqueles com menos grau de acometimento, podem repetir, trechos da estória
e, ao manipular o livro, mudam de página, executando o gesto que
é típico do hábito de um leitor. Assim, conta-se
o que se lembra da estória e o que as gravuras do livro ajudam
a criar como imagem. Nesta hora, é perceptível a importância
de um educador se comunicar através de dramatizações.
A música também pode ser um fator desencadeante para a dimensão
do movimento. Vale ressaltar elementos como teatro, dança, música
para o desenvolvimento corpóreo da criança autista.
O estudo do corpo enquanto expressão e comunicação
ocupa um lugar fundamental no desenvolvimento da criança. As atividades
que enfatizam este modo de educar estão estreitamente ligadas à
arte. Por exemplo, teatro, expressão corporal, dança e música.
O corpo no qual a pesquisa apoiou-se tem como objetivo trilhar um caminho
que propicie ao educador fornecer uma liberdade de expressão corporal,
fazendo com que crianças errem, sem medo.
Não podemos esquecer que Jean Piaget (1982) afirma que o erro é
a forma da criança poder construir seu pensamento. É através
do erro que a criança organiza e reorganiza as estruturas mentais.
Educar para Piaget significa provocar o desequilíbrio no organismo
(mente) da criança para que ela, procurando o reequilíbrio,
se reestruture cognitivamente e aprenda. O mecanismo de aprender da criança
é sua capacidade de reestruturar-se mentalmente procurando um novo
equilíbrio.
O erro é também a arte de fazer diferente do padrão,
ou seja, a criação. O erro pode ser a busca de sentido,
uma atribuição de um outro sentido, “atos falhos”,
associações livres, bloqueios.
Regina Leite Garcia (2002) sugere que existem vários olhares para
o corpo na educação. São eles: corpos que expressam
sem ser compreendidos; corpos silenciados por práticas autoritárias;
corpos contidos em uniformes; presos em formas, em carteiras, em horários,
em normas, impedidos de se movimentar na sala de aula, impedidos até
de ir ao banheiro quando sentiam necessidade, porque ainda não
estava na hora do recreio; corpos que se insurgem contra as normas e que
se viram em cambalhotas, como se quisessem dizer: olhem para mim que eu
existo; corpos masculinos e femininos separados nas aulas de educação
física mas que se reencontram nos bailes de Funk; corpos impedidos
de se tocar e que se encontram prazer em receber uma palmada na bundinha,
e desfiam provocativamente: vem, negão, que não dói;
corpos tornados invisíveis; corpos mostrados que revelam os preconceitos
de uma sociedade que diz democracia racial; corpos onde se fazem escrever;
corpos que se deixam mutilar; corpos que sofrem tortura; corpos que trazem
marca da escravidão; corpos escravizados pela moda; corpos conformados
e corpos insurgentes; corpos que falam, que denunciam, que dizem tanta
coisa incompreendida por quem só sabe ler o instituído;
corpos que desafiam uma leitura mais sensível, mais aberta, mais
despida de preconceitos.
Do parágrafo acima destaco alguns aspectos que me parecem mais
importantes como analisar corpos que se expressam sem ser compreendidos
e corpos que falam, que denunciam, que dizem tanta coisa incompreendida
por quem só sabe ler o instituído.
É preciso estimular o que o autista tem para nos mostrar através
de sua linguagem corporal, prestando atenção à maneira
de se mover, de relacionar-se com o mundo através de sua linguagem
corporal. Cada um traz em seu corpo, uma memória de vida, uma história,
um contexto familiar. Saber olhar esses corpos com a singularidade de
cada um é o fundamento de uma didática cuidadosa, que valoriza
a subjetividade, estimula potencialidades.
Nenhum corpo é assim ou assado, todos estão. É neste
momento que se faz necessário não diagnosticar o corpo do
autista apenas como é, pois este está em constante transformação.
Parece ser necessário nesta pesquisa dar novos sentidos para melhor
pensar o corpo do autista, num processo que tenha como pista pedagógica
para o educador a socialização do autista através
da interação corpórea. É o corpo que traz
esta interação com o "outro".
A comunicação não-verbal é processo pelo qual
o sujeito se expressa através de meios que não são
da ordem da palavra, um deles podendo ser a linguagem corporal. No caso
do autista, o sujeito pode ser participante de sua própria experiência
representando através do não-dito.
O objeto desta pesquisa - o corpo - é a total integração
do autista não só para a educação, mas na
cultura em que este sujeito está inserido. Os corpos falam a linguagem
do impedimento e da restrição no espaço da escola.
Um exemplo, estaria nos corpos caídos, encostados e sem muita perspectiva
de ação mostram não só a relação
do autista com o cotidiano escolar, mas muitas vezes, como é feito
o trabalho nas instituições especializadas, onde o corpo
é altamente medicamentado, prejudicando o movimentar-se do autista.
A linguagem dos corpos nas escolas, se modifica à partir da proposta
da música, da dança, do teatro, da expressão corporal.
São estas linguagens não habituais no contexto escolar que
ganham êxito na educação para o autista. Os “corpos
dóceis” se agitam e se movimentam em coreografias criativas.
Com isto, o desenvolvimento do grupo começa a se dar através
das dinâmicas de grupo.
Começa-se, então, através do movimento isolado e
discreto do autista ao movimento interativo com as novas formas de diálogo
que estão presentes este corpo que fala, enquanto processo de desenvolvimento
para o educando com autismo.
É uma oportunidade nova que se cria para o educador, em que pode-se
ver o corpo que fala, sendo este ensino calcado num diálogo real
entre o que o autista pode demonstrar através de seu corpo em que
é estimulado sua expressão corporal, uma maneira de se comunicar
com o mundo.
Na Psicologia temos três concepções de corpo para
serem trabalhadas. Aquela que se inclina para dicotomização
saúde-doença, como nos sugere a psicopatologia (herança
da medicina tradicional). A concepção de corpo treinável-moldável,
como nos indica a teoria comportamental (positivista). E no qual esta
pesquisa se apoia, ou seja, um “olhar” sobre um corpo histórico-cultural,
os corpos nos quais se inscrevem as práticas sociais.
Conclui-se então, que esta pesquisa defende, como princípio
ético e obrigatório para o profissional de Educação
Especial, um “olhar” para as significações não-verbais
expressas no corpo, de modo que inclua a comunicação do
homem, além do diagnóstico estanque da patologia.
É importante saber que cada autista vai ter uma expressão
diferenciada do outro e para que um diagnóstico não seja
interpretado pela biologização das questões sociais,
visto apenas na sua patologia, é necessário analisar aspectos
sociais e históricos do indivíduo com transtorno autista.
Vale aqui ressaltar o pensamento de Sacks (1995), onde o profissional
está inclinado para trabalhar com o que o autista têm e não
pela sua falta. Neste sentido, como então se daria a comunicação
que é condição de sobrevivência dos seres?
Será que ela está completamente barrada para o autista?
Quais são as outras vias de comunicação que favorecem
um canal de expressão não-verbal?
Para pensar o processo de educação com autistas, defendi
a idéia de que educar não é dar um único sentido,
mostrar uma única camada de sentido e sim, dar vários sentidos.
Tomemos como exemplo a questão do corpo na educação.
É possível dar outro sentido ao corpo, na educação,
que não seja um corpo treinável-moldável, enfatizado
pela teoria behaviorista? ou outro sentido, que não seja aquele
de um corpo dicotomizado em saúde-doença, como é
nos mostrado na psicopatologia? Um outro sentido ao corpo talvez pudesse
ser aquele que se volta para a expressão que não pode se
realizar pela palavra nos indivíduo autistas. Tais idéias
são questionadas em minha tese (Figueira 2004), pois nesta se defende
a idéia de um corpo mais social, histórico, em vez de um
corpo considerado sob o crivo das categorias estanques de normal e patológico.
Na educação o corpo pode ser visto não como objeto
de saber científico que determinará comportamentos e atitudes
automáticas ou necessárias na criança com deficiência.
O educador deve fornecer condições de sentido, como nos
lembra C. Castoriadis (1987), pois este profissional não está
para uma atitude assistencialista e sim para a construção
do que a criança pode fazer, dentro dos seus limites, acreditando-se
numa autonomia possível.
Esta atividade de sentido vai se dar em toda a educação
e está implicada nela a capacidade de o homem significar e ressignificar
algo o tempo todo.
O sentido não deve ser o que a sociedade produz e sim o que o própria
pessoa vê como objetivo, o que seria dar oportunidades de autonomia,
de ela própria criar seus sentidos.
Educar não é dar um sentido único e, sim, a possibilidade
de poder dar outros sentidos. Ainda vivemos numa sociedade altamente massificada,
onde se valoriza um modo único de significar o objeto.
Mas será que o indivíduo autônomo pode significar
um objeto que não tenha sentido? O indivíduo é capaz
de se investir em um não-objeto? O sentido tem que ser científico
para ter uma valorização universal?
Quais são os sentidos realmente significantes para nossa sociedade?
C. Castoriadis (1987) nos faz pensar que o homem pode ser explicado por
algumas causas, mas ele ultrapassa essas causas. O indivíduo é
o que se pretende elucidar, mas não é apenas esta elucidação.
Será que tudo que se sente pode ser explicado?
Hannah Arent (1998) define condição humana como criação
da singularidade, porque permite pensar a noção de identidade.
É na pluralidade que nos identificamos como indivíduos,
ou seja, precisa haver diferença entre os seres humanos para que
haja singularidade. Parece-nos óbvio, mas, muitas vezes, somos
vítimas de um sistema regido por normas e padrões, impondo
uma homogeneização por parte dos seres humanos.
No plano da deficiência, temos esta questão nitidamente explorada.
A segregação dos deficientes do mundo dos não deficientes
é fortemente marcada por uma forma homogenizante de pensar, na
qual realmente importa é classificar os tipos de deficiência.
Um exemplo, seria colocar em diferentes salas os deficientes mentais,
visuais, auditivos.
Será que não corremos o risco de cair no mesmo pensamento
homogenizante, ainda sob disfarce, quando lançamos mão de
uma palavra, de um discurso, onde circulam com freqüência exagerada,
termos (rótulos) como "inclusão", "educação
inclusiva".
Nas salas de aula, propostas para satisfazer a exigência da inclusão,
ainda assiste ao estigma da segregação, o que vem afirmar
que a atitude dos profissionais é muitas vezes contraditória
com seu discurso.
No texto de Jean Jacques Rousseau (1973) "Discurso sobre a origem
e os fundamentos da desigualdade entre os homens" entender a desigualdade
é começar por afastar os fatos, ou seja, aquilo que se estabelece
por verdade, uma tradição pela explicação.
Hoje é muito difícil pensar no indivíduo provido
de uma espontaneidade, criação própria, porque todas
as saídas são racionalizadas. Para Rousseau (1973), a razão
é uma construção da sociedade e este é um
drama vivido pelo homem, que ele próprio construiu.
A educação é fruto do processo de democracia e de
participação política. O sujeito pode ser visto como
ser histórico de evoluções, um agente participativo.
Portanto, para que a educação seja efetiva, é melhor
investir nos valores éticos e morais que utilizamos para o desenvolvimento
do aluno portador de necessidades especiais, pois não podemos ser
reprodutores de preconceitos e sim criar novas formas para que o indivíduo
autista possa se expressar, diferentemente da sua estereotipia gestual
causada pelo Transtorno.
O preconceito assenta sempre sobre uma diferença. Tudo aquilo que
destoa de uma realização tomada como modelo ou padrão,
pode ser objeto de estigma. Assim, se dá a exclusão no deficiente,
de segmentos de uma sociedade, em especial, o autista. Devemos fazer com
que indivíduos com Transtorno Autista consigam o que de nós,
de certa forma, conseguimos: entrar para sociedade, com um vocabulário
interiorizado via educação. Deveria se pensar quais são
as necessidades de sobrevivência, até os meios de comunicação,
como a fala universalmente aceita, o verbal. Já habitamos num mundo
altamente autoritário, onde quem fala é quem detém
o poder, a fala é o meio básico de comunicação.
Um problema sério da sociedade em que vivemos está localizado
naqueles que não têm o domínio do verbal como forma
de comunicação e poder de convencimento sobre o outro.
Poderíamos abordar uma educação apoiada na solidariedade
nessas formas de linguagem que existem para o indivíduo portador
de necessidades especiais. O ser humano solidário se transforma
enquanto aprende a incorporar em si o diferente. O projeto de ser não
pode existir sem a relação fundante com o diferente. Segundo
Hugo Assmann (2000) solidariedade tem a ver com o modo de ver o mundo
e a vida, sendo uma relação inter-humana fundamentada na
alteridade que pressupõe o reconhecimento do outro na diferença
e singularidade, o que faz nos remeter sobre o preconceito na educação,
pois o educador solidário trabalha para uma capacidade de ouvir
e conhecer histórias que rompem com este preconceito, pois a vida
dos indivíduos portadores de necessidades especiais não
pode ser interpretada a partir do aparente e sim através dos limites
e contradições da condição humana.
A proposta é, através de práticas educacionais dirigidas
ao corpo, valorizar a espontaneidade e a criatividade que o aluno com
necessidades especiais detém como potencial, explorando seu próprio
corpo, como um lugar de expressão do que a palavra não diz.
Passemos agora a metodologia da pesquisa.
Os dados provem da observação sistemática em contexto
natural, de trechos de interações entre um aluno autista
(P) e o interlocutor (es). Diagnosticado como autista, P. foi acompanhado
nas disciplinas de Teatro e Expressão Corporal na FUNLAR (Fundação
Municipal Francisco de Paula, R.J).
Na análise procurou-se valorizar os aspectos da interação
de P. tanto com as professoras quanto com a pesquisadora, levantando os
dados referentes ao corpo enquanto manifesto ao que a palavra não
diz.
A interpretação dos resultados implicou no pensar sobre
as diferentes formas de comunicação; sobre a compreensão
do que diz o corpo enquanto participante processo educacional; sobre a
importância das significações não-verbais;
sobre a multiplicidade de sentidos; ou ainda, nos outros sentidos possíveis;
sobre o corpo sem palavras; sobre os pontos em que o movimento de P. coincide
com o relato do comportamento de um autista; sobre os pontos em que o
movimento do P. não coincide com o relato das características
autistas, mostradas pela literatura.
Buscou-se responder a perguntas relacionadas com presença do corpo
manifestando: sentimentos, evolução, transformação,
conforme o vínculo mediador-aluno.
Vejamos na tabela abaixo a análise do manifesto do corpo de P.
sobre o corpo patológico e o corpo histórico- cultural.
Comportamentos
previstos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
confirmados por P. |
Comportamentos
não previstos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais demonstrados por P.
|
Descrição |
Interpretação |
Situação |
Descrição |
Interpretação |
Situação
|
Repetição
da frase: Peter Pan é bicha |
Insistência
obsessiva na repetitividade |
Enquanto
a professora tinha ido buscar uma bola |
Quicar
a bola no chão, imitando o que a prof(a) fazia. Entre um quique
e outro P. olhava para a professora
|
Imitação
de um gesto motor com grande independência |
A
professora entregou a bola para P. e pediu que imitasse quicando
a bola. |
Frases
estereotipadas como: Zé Carioca é poeta
|
Insistência
obsessiva na repetitividade |
Enquanto
a professora lançava a bola |
Sorrir
e balançar a cabeça para a frente |
Pode
significar concordância, um sim |
Em
resposta a uma pergunta da professora |
Dança
livre |
Não
tem autonomia para criar, apresentando dificuldades
|
Enquanto
a professora pede para expressar através da dança |
Dança
imitativa mediante ao modelo |
Dando
um novo sentido ao mesmo objeto (ressignificação) |
P.
dança imitando gestos da professora |
Repetição
da frase: Vai ter hip-hop |
Insistência
obsessiva na repetitividade |
T.
fala freneticamente com seu colega durante 5 minutos |
Movimentação
Corporal do aluno, acompanhando da fala “dançando com tchu, dançando
com tchã”
|
Frase
solta x frase aproveitada para acompanhar a movimentação corporal
nomeando as partes do corpo humano |
T.
faz movimentos imitativos juntamente com a prof (a)
|
Pequenos
saltos repetidas vezes |
Insistência
obsessivas na repetitividade |
P.
faz o gesto no canto da sala aleatoriamente sem interação social |
O
corpo do aluno é lançado entre dois corpos |
Atividade
prazerosa para P., pois este mantém o corpo obediente.
O
toque da professora representa a afetividade, muitas negada ao autista
|
Atividade
de pêndulo com a participação de P. e da professora |
P.
degusta a salada de fruta lentamente olhando para a
parede |
Olhar
fixo para a parede e ausência de interação social revelam traços
de isolamento.
O
ato da deglutição durante a alimentação é lento. |
P.
está no refeitório, isolado de seus colegas |
Sorriso
acompanhado de gesto de abaixar a cabeça |
Pode
significar um cumprimento e afetividade |
O
corpo de P. não se encontra dirigido por nenhuma atividade mediadora
da professora, pois apenas vai até ao banheiro espontaneamente.
|
Os resultados
proporcionaram alguns dados demonstrativos do corpo de um jovem autista
(P) enquanto possibilidade de comunicação, ao que não
é possível ser expresso por meio de palavras. É neste
aspecto que as significações não-verbais ganham ênfase,
abrindo-se uma via alternativa à expressão verbal –
já que esta, como é sabido na literatura, encontra-se seriamente
comprometida no Transtorno Autista.
Encerrarei com uma palavra final sobre o que é uma política
de inclusão. Como lembra Hanna Arent (1998) quem faz política
não necessariamente precisa ser um militante partidário.
Fazendo ações práticas educativas para desconstrução
do estigma e da segregação, o profissional já está
exercitando sua política. É nesse pensar e agir que esta
pesquisa se construiu, pois política de inclusão não
é apenas obedecer as leis e sim compartilhar com portadores de
necessidades especiais direitos de cidadania.
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