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SALAS
DE REFORÇO ESCOLAR: ATIVIDADES DE ALFABETIZAÇÃO PROPICIAM
O LETRAMENTO?
Karina Fideles Filgueiras - FaE / UFMG
Introdução
A análise de atividades pedagógicas de alfabetização,
desenvolvidas em um dia de trabalho em duas salas destinadas ao reforço
escolar, foi enfocada no intuito de verificar se tais atividades propiciavam
eventos de letramento. Essa análise foi possível durante
a pesquisa desenvolvida em uma escola particular e em uma escola pública
estadual mineira buscando saber mais sobre os diagnósticos e as
intervenções pedagógicas dadas aos alunos que apresentavam
dificuldades de aprendizagem no processo de alfabetização.
O sistema de ensino, da escola pública, é organizado em
Ciclos, subdivididos em Ciclo Básico, que comporta crianças
de 7, 8 e 9 anos para o 1º, 2º e 3º anos do Ciclo respectivamente;
crianças de 10, 11 e 12 anos para os respectivos 1º, 2º
e 3º anos do Ciclo Intermediário e jovens de 14 e 15 anos
para o 1º e 2º anos do Ciclo Avançado; além do
Ensino Médio com 1º, 2º e 3º anos.
O 3º ano do Ciclo Básico é o ano de transição
entre o Ciclo Básico e o Ciclo Intermediário, quando é
permitido haver retenção de alunos que não conseguiram
alcançar os objetivos pedagógicos propostos durante todo
o primeiro ciclo. A retenção, neste sistema, só é
permitida entre os ciclos. Nos demais anos, os alunos são aprovados
em Progressão Continuada. Sendo assim, somente aos alunos que apresentavam
dificuldades de aprendizagem no 3° ano do Ciclo Básico era
permitida a freqüência à sala de recuperação.
Portanto, nosso foco de observações recaiu sobre esse ano
de escolarização do Ensino Fundamental.
Na escola particular, a organização da escolaridade é
seriada, ou seja, trabalha-se com o sistema de ensino em séries,
desde crianças de 4 anos no 1º Período da Educação
Infantil, até jovens de 17/18 anos no 3º ano do Ensino Médio
integrando o curso preparatório para o vestibular. A escola mantém
frentes de trabalhos sociais, como auxílio a creches, Educação
de Jovens e Adultos – EJA, programas com menores abandonados, asilos,
dentre outros. As observações foram em uma sala de 3º
período – sala de alfabetização, no turno vespertino.
Referencial teórico
Para fazer uma análise das atividades desenvolvidas
na sala de reforço e verificar se atividades de alfabetização
propiciam eventos de letramento, tomamos como referência os procedimentos
de ensino identificados por Monteiro (2001) em sua pesquisa de mestrado:
Exercícios para compreender o sistema de escrita: O caso “Letra
Viva”.
Segundo Monteiro (2001, p.44) “ao realizar o que se pede no enunciado
do exercício, o aluno estará colocando em prática
algum tipo de procedimento de aprendizagem”. A mesma autora destacou
alguns procedimentos de ensino, que foram mais recorrentes, em sua análise
do livro de alfabetização “Letra Viva – Programa
de Leitura e Escrita (1993)” que propiciam a prática de vários
tipos de procedimentos de aprendizagem.
Monteiro (2001) identificou nove procedimentos de ensino, agrupando-os
em três categorias: (1) procedimentos que possibilitam uma atitude
reflexiva do aluno diante do objeto de conhecimento, no caso, a apropriação
do sistema de escrita; (2) procedimento que possibilita ao aluno uma posição
reflexiva diante das hipóteses de escrita do outro e; (3) procedimentos
que contribuem para a memorização dos atributos convencionais
do objeto de conhecimento.
Os procedimentos de ensino, pertencentes à 1ª categoria, que
possibilitam uma atitude reflexiva do aluno diante do objeto de conhecimento,
são: (a) comparação, (b) identificação,
(c) decomposição e composição de palavras
e frases, (d) escrita e leitura sem modelo de palavras e frases e, (e)
resolução de desafios.
O procedimento que possibilita uma posição reflexiva de
um aluno diante das idéias e hipóteses de outro aluno, incluído
na 2ª categoria de procedimentos de ensino, é o debate e a
resolução de exercícios em grupos.
E, por fim, os procedimentos pertencentes à 3ª categoria,
que contribuem para a memorização dos atributos convencionais
do objeto de conhecimento, são: (a) cópia, (b) reconhecimento
de palavras e unidades maiores no texto e (c) jogos de memorização.
Juntamente com os estudos de Monteiro (2001), consideramos os conceitos
de alfabetização e de letramento abordados por Soares. Optamos
por nos ater aos estudos dessa autora por constatarmos que duas de suas
obras, datadas de 1985 e 1998, respectivamente, “As muitas facetas
da alfabetização” e “Letramento: um tema em
três gêneros”, foram amplamente divulgadas e utilizadas
como referencial teórico no meio acadêmico e por professores
do Ensino Fundamental. No texto “As muitas facetas da alfabetização”
a autora aborda as várias facetas da alfabetização
sob a luz do conceito, da natureza e dos condicionantes desse processo
e na obra “Letramento: um tema em três gêneros”,
a autora relata a história dos usos da palavra letramento, em português
e na literatura internacional, além de discutir sobre a avaliação
e a medição desse termo em contextos variados. Acompanhando
as publicações da autora, pudemos perceber as modificações
e reflexões propostas por Soares, até chegar às confusões
conceituais que o próprio fenômeno detonou.
Objetivos
A partir das reflexões de Monteiro (2001) e de
Soares (1985, 1998, 2004) nosso objetivo é a descrição
de um dia de atividades pedagógicas de leitura e/ou escrita desenvolvidas
nas salas de reforço escolar, a saber - sala de recuperação
na escola pública e oficina de leitura e escrita na escola particular
- para analisá-las e classificá-las como atividades de alfabetização
e atividades que propiciam um evento de letramento.
Embora em sua proposta, Monteiro (2001) não faça tal classificação,
tomamos como referência seus estudos para balizar nossas reflexões.
Consideramos atividades de alfabetização, que propiciam
um evento de letramento, aquelas que possibilitam a aquisição
da base alfabética partindo dos usos sociais da leitura e da escrita,
enfatizam a relação grafema-fonema (o que leva o aluno à
apropriação do sistema de escrita) e, posteriormente, retornam
aos usos sociais da leitura e da escrita. Quando os exercícios
propostos não têm relação com usos sociais
de leitura e de escrita, são apenas exercícios de alfabetização
que não propiciam a inserção no letramento.
Metodologia
O plano de investigação orientou-se para
um estudo de caso em que pudemos fazer um acompanhamento sistemático
do cotidiano escolar. Procuramos captar os elementos necessários
para entender/analisar o processo de alfabetização e acompanhar
o desenvolvimento das atividades nas salas de reforço em ambas
escolas.
Na perspectiva do estudo de caso, utilizamos uma abordagem etnográfica.
O foco de análise da etnografia é a ação,
sempre embasada em interpretações e aberta a possibilidades
de reinterpretação e mudança. Fundamentamos essa
decisão nas considerações de Erikson (2001, p.16):
A combinação da etnografia com a microetnografia
é um meio de descobrir a natureza interacional dos ambientes de
aprendizagem num nível de especificialidade analítica que
pode sugerir maneiras de mudar, para melhor, as práticas pedagógicas
e curriculares, assim como compreendê-las e descrevê-las.
Durante a coleta de dados, as observações nas salas de aula
foram diretas, com início na segunda semana de aula do ano letivo
de 2003 estendendo-se por quatro meses, até o fim da primeira etapa
do calendário escolar.
Para a coleta de dados utilizamos observação participante,
observação sistemática e conversas informais, pois
observar e perguntar se completam e podem gerar diferentes tipos de fontes
e dados (Cox, 2001). O processo de observação participante
pode gerar “insights” sobre a organização das
ações e interpretações coletivas das cenas
corriqueiras do cotidiano, como o da sala de aula.
O observador na sala de aula deve saber dosar o distanciamento e a aproximação,
entre participar e não participar das atividades e, quando se observam
crianças, é necessário uma revisão da lógica
do adulto (Bogdan & Biklen, 1994), pois o observador deve se despir
de valores e conceitos pré-estabelecidos para evitar um julgamento.
O papel do observador é observar e não julgar. Muito embora
saibamos que é impossível despir-se totalmente de valores,
deve-se ter em mente que o objetivo maior da observação
é colher dados para descrevê-los sob a ótica dos participantes
e analisá-los sob a luz de teorias com as quais se deseja dialogar.
Além de anotações do Caderno de Campo, ainda utilizamos
das seguintes fontes de informações: registros escolares
dos alunos, materiais didáticos distribuídos pelas professoras,
livros didáticos, cópia dos cadernos e das provas de alguns
alunos, além da participação em Reuniões de
Ciclo e reuniões de pais e professores. Pudemos valer-nos também
de conversas informais com alunos, professores e corpo técnico
escolar.
Dia 26 de março de 2003– de 13:00h às
15:00h – Na Sala de Recuperação da escola pública
A sala era composta de 10 alunos, advindos de duas das
três salas de 3° ano do Ciclo Básico, sendo 4 alunos
da Sala 1, considerada a melhor turma dentre as três de 3º
ano, e 6 alunos da Sala do Porão .
A professora recuperadora era uma profissional com bastante experiência
de magistério. Já estava a se aposentar quando percebeu
que a contagem de seu tempo de serviço não era suficiente.
Como o quadro de docentes da escola já estava completo, foi designada
para retomar a Sala de Recuperação, extinta no ano anterior
por falta de professor que a assumisse.
Tal professora mostrou-se empenhada em seu desafio: fazer com que as crianças,
a ela encaminhadas, aprendessem a ler. O objetivo era fazer as crianças
lerem; considerando a leitura, em relação à escrita,
como a parte mais importante do processo de alfabetização.
13:00h – Início das aulas, espera para a acomodação
dos alunos.
A professora esperava seus alunos dentro da sala e aguardava até
que a maioria chegasse e se acomodasse. Os alunos chegavam, se acomodavam
nas carteiras e aguardavam que a professora desse início às
atividades. Presenciamos a professora ir ao encontro de seus alunos, no
pátio da escola, para garantir que todos cumprissem o horário
destinado às aulas de recuperação.
13:10h – Ficha no quadro, de letra cursiva, para os alunos copiarem:
Belo Horizonte, 26 de março de 2003.
Hoje é quarta-feira.
Eu me chamo ___________________________.
13:20h – A maioria dos alunos já havia terminado, com exceção
de um que chegou, neste momento, atrasado.
A professora distribuiu uma folha para leitura e pediu para os alunos
lerem em voz baixa. Era um pequeno texto retirado da página 48
do livro de alfabetização “No mundo das Letras”.
O texto da leitura será reproduzido, a seguir, assim como se apresentou
no caderno do aluno AN., que freqüentava a Sala de Recuperação.
Esse aluno não fazia distinção entre o caderno da
Sala de Recuperação e o caderno de sua sala de origem. Portanto
temos uma página já avançada em seu caderno, pois
ele o utiliza para todos os conteúdos relacionados ao aprendizado
da língua materna, seja em processo de alfabetização,
na Sala de Recuperação, ou nas aulas de Português
em sua sala de origem.

No livro
de alfabetização “No Mundo das Letras”, do qual
foi retirada a leitura, a página é colorida, apresenta gravura
que faz alusão ao texto e pressupõe um trabalho de compreensão
e interpretação do texto, quando traz, no enunciado do exercício
inicial, 1 - Leia e dê um título:

A professora propõe uma leitura coletiva porque alguns alunos já
anunciaram que terminaram a leitura silenciosa, proposta primeiramente.
A leitura coletiva, em nossa avaliação, foi toda desencontrada
- cada aluno estava lendo em um tempo diferente. Como a professora não
leu juntamente com os alunos, era difícil o entendimento das palavras
no conjunto.
A segunda leitura, do mesmo texto, a professora conduziu e, por uma terceira
vez, ela propôs que os alunos lessem sozinhos, sem o seu acompanhamento
e nos pediu que “tomássemos a leitura” de cada aluno,
individualmente.
A leitura era do texto que os alunos já haviam lido por três
vezes, ou seja, era uma leitura que os alunos já estavam muito
familiarizados e alguns haviam até mesmo memorizado o texto.
Como no momento não nos ocorreu indagar porquê a professora
gostaria de saber qual seria nossa avaliação do nível
de leitura dos alunos, aproveitamos para perguntar a eles próprios
o motivo que os levara a freqüentarem a sala de recuperação
e fizemos nossas observações, como reproduzimos a seguir.
Os alunos da Sala 1 assim disseram ao lhes perguntar porque estavam freqüentando
a Sala de Recuperação:
A aluna T. diz que “tem que melhorar a leitura para passar”
[de ano], por isso está na sala de recuperação. Ao
ouvir a leitura de T. das sentenças “É dia. Davi vai
à vila.” constatamos uma leitura de forma silabada: “é...,
é..., di, di, di, a ..., d...da..v..., vi, vaaa..., iii..., a ...,
v..., vi..., l..., la....”. T. freqüenta a sala de recuperação
desde o final do ano anterior.
O aluno S. justificou sua freqüência à sala de recuperação
da seguinte forma: “Porque eu não sei ler”. De fato,
em nossas observações, constatamos que S. não reconhece
nenhuma letra, está no reforço desde o ano anterior, quando
da criação desta sala, no mês de setembro.
P. V.: “Tenho dificuldade pra ler, sempre tive”. Esse aluno
apresentou uma leitura silabada e veio para o reforço no fim de
2002, junto com a aluna T.
O aluno R. alegou estar freqüentando a sala de recuperação
“porque eu estou precisando de reforço porque eu não
sabe ler, ano passado tinha vindo pra cá também.”
Foi um aluno que apresentou uma leitura silabada, como a maioria dos outros.
Os alunos da Sala do Porão também justificaram sua presença
na recuperação assim:
O aluno E.: “Não estou sabendo ler pra ficar junto com os
meninos” [de sua turma]. Também apresentou, em nossa avaliação,
uma leitura silabada. Está no reforço desde a criação
da sala de recuperação, no ano anterior, quando era do 2º
ano do Ciclo Básico.
AN. disse que está na sala de recuperação “pra
aprender a ler”. Como ele próprio percebe, não reconhece
nem mesmo as letras de seu nome, está freqüentando esta sala
desde seu início, em setembro do ano anterior.
O aluno L. disse que está no reforço “pra ler, reforçar”.
Percebemos que esse aluno apresenta uma boa leitura e está no reforço
desde o carnaval, quando a sala de recuperação voltou a
funcionar. Freqüentou a sala apenas por uma semana. Logo depois a
supervisora pedagógica avaliou-o e percebeu que ele não
precisava do acompanhamento oferecido na sala. L. retornou para sua sala
de origem e lá permaneceu desenvolvendo as atividades propostas
para o 3º ano do Ciclo Básico.
M.: “Para aprender a ler e escrever, se esforçar mais.”
O aluno também apresentou uma leitura silabada, mesmo já
tendo feito várias leituras do texto, como já explicitado
anteriormente. Também freqüenta esta sala desde o ano anterior.
G. disse que está na sala de recuperação “para
aprender a ler mais um pouquinho”. Sua leitura não se diferenciou
da maioria, apresentando-se silabada. G. está freqüentando
a sala desde setembro/2002.
Pode-se constatar que o objetivo da sala de recuperação
não era recuperar os alunos do 3º ano do Ciclo Básico,
mas tinha como propósito a recuperação dos alunos
com dificuldades de aprendizagem no processo de alfabetização,
que propiciava atividades de alfabetização, não inseridas
em um contexto de letramento. Recebia os alunos que não haviam
adquirido as competências, atitudes e habilidades para os 1º
e 2º anos do Ciclo Básico, ou seja, aqueles que não
estavam alfabetizados, na avaliação das professoras e da
supervisora.
Enquanto nós interagíamos com os alunos, avaliando sua leitura
e questionando-os sobre sua permanência na sala de recuperação,
a professora retirou-se, propiciando um momento em que nós coordenávamos
as atividades até seu retorno.
Após esse momento de “tomar leitura”, a professora
retornou à sala sem se preocupar com nossa avaliação
e prosseguiu normalmente com suas atividades, sem que nos tivesse solicitado
algo.
Professora faz desenhos de algumas figuras, no quadro, para os alunos
copiarem e escreverem na frente a palavra correspondente ao desenho, como
podemos verificar com a reprodução da página 42 do
caderno de AN. As figuras eram um picolé, um sorvete, uma casa,
um sino, uma caneca, uma mala, uma laranja e um bule:
Logo às
13:50h, os alunos da Sala do Porão, que eram a maioria neste dia,
deixam a sala de recuperação para irem à aula de
Educação Física.
A seqüência das atividades, nesta sala, sempre era interrompida
pelas aulas de Educação Física. Não existia
um só dia na semana em que todos os alunos, recomendados ao reforço,
ficassem presentes todo tempo destinado ao trabalho de recuperação,
de 13h às 15:30h, período que antecedia ao recreio.
Cabe então questionar sobre a representação que os
alunos tinham da própria sala e de seus objetivos. Não conseguiam
desenvolver um ritmo de trabalho estável, pois sempre estavam sendo
interrompidos ou pelos horários das aulas de Educação
Física, ou por alunos e professores que entravam para retirar livros
didáticos (a sala também funcionava como depósito
de livros didáticos de todas as disciplinas e séries da
escola, porque não havia espaço na biblioteca).
14:05h – Professora escreve nova atividade no quadro em letra cursiva
e enfatiza: “São frases para a leitura. Não é
pra copiar”.
As frases eram as seguintes:
O bebê
bebeu água de coco.
A cuíca está no baú do Edu.
Duda e Edu são educados.
(Caderno
de Campo B – 26/03/2003)
O aluno S.
está copiando porque não sabe ler. Quando a professora percebe,
chama-o para a leitura.
O aluno P. V. lê duas vezes cada frase e repete uma terceira.
Nesse momento a professora diz: “Agora é leitura individual!”
P.V. inicia uma leitura silabada das frases que estão escritas
no quadro. R. lê um pouco melhor que P.V. L. lê fluentemente
e a professora não lhe dá atenção. Professora
pula a vez de S., que é um dos alunos que não sabe ler.
T. lê com entonação de tédio.
Percebemos que, como a professora tinha mandado que os alunos repetissem
várias vezes a leitura das mesmas frases, a aluna T. já
as havia memorizado, tornando-se monótona a atividade.
E, logo em seguida, a professora propõe que todos leiam juntos
novamente.
Seguindo, às 14:15h, a professora propõe que os alunos copiem
as frases do quadro que já foram lidas várias vezes.
Às 14:20h, como todos os alunos já haviam terminado a cópia,
a professora propõe outra atividade.
No entanto, mais uma vez, a professora se ateve à reprodução
de atividades descontextualizadas. Reproduziu apenas a primeira, sem se
preocupar com a seqüência apresentada no livro. Essa atividade
também foi reproduzida do livro de alfabetização
No Mundo das Letras, página 33. Eram as seguintes proposições:
Figura 13
- No mundo das Letras, página 33
Às
14:23h, a professora chama atenção de R. por ter inferido
que, na pressa de terminar logo o exercício, ele não havia
feito a tarefa de acordo com o proposto Então, pega a folha e apaga
tudo, demonstrando estar descontente e fala rispidamente com o aluno.
Na seqüência “toma leitura” das palavras que foram
formadas pela aluna T.
Demonstrando ansiedade e cansaço, a aluna pergunta:
T.: Professora, falta muito para o recreio?
Profª.: Você não tem que se preocupar com o recreio,
tem que se preocupar em estudar.
T.: Calma! Eu só estou perguntando!
14:31h - A professora desfolha um livro de alfabetização;
não foi possível identificá-lo. Distribui aleatoriamente
uma folha para cada um dos alunos, em seguida solicita que recortem as
palavras, colem no caderno e separem em sílabas. Cada aluno recebeu
uma folha diferente, não havendo um conjunto de palavras comum
a todos os alunos.
Em vários momentos presenciamos esse tipo de atividade; uma vez
que esses livros tinham deixado de ser incluídos na análise
do PNLD, Plano nacional do Livro Didático, a professora recuperadora
os reaproveitava destacando suas folhas para utilizá-las como atividades
de alfabetização.
Vimos que o aluno A. não fez o exercício proposto, de acordo
com o que lhe foi solicitado, porque não está alfabetizado.
Porém, para não ficar sem executar a tarefa, recortou e
colou as palavras de modo aleatório, não compreendendo nem
mesmo a regra espacial do código escrito, colando palavras invertidas
– “de cabeça-para-baixo”. Esboçou, no
entanto, uma tentativa de cópia.
O aluno S., outro que também não está alfabetizado,
fica alheio à proposta e a professora chama sua atenção.
14:40h - Novamente a professora pede para T. ler as palavras que recortou
da folha do livro de alfabetização, mas a professora não
presta atenção a essa leitura, também pede a R. que
leia duas palavras que formou.
Os outros alunos retornam da aula de Educação Física
e a professora também distribui as folhas do livro de alfabetização,
assim como havia feito anteriormente, com palavras para serem recortadas,
copiadas e separadas em sílabas, como os outros estavam fazendo.
15:00h - Assim, os alunos vão terminando a tarefa e a professora
permite que lanchem antes de irem para o recreio.
Percebe-se que as atividades são variadas e o número de
atividades no período de duas horas é grande. São
quatro atividades de escrita: cópia da ficha do dia (13:10h), cópia
das frases para leitura (14:05h), formar palavras a partir das sílabas
numeradas (14:20h), recortar palavras, cola-las e separá-las em
sílabas (14:31h); e quatro atividades de leitura: leitura do texto
(13:20h), leitura das três frases (14:05h), leitura das palavras
formadas (14:20h), leitura das palavras recortadas da folha do livro de
alfabetização (14:40h).
Nas atividades de escrita, a ênfase é dada à cópia
de palavras e frases e as atividades de leitura são repetitivas,
possibilitando a memorização das frases e palavras por alguns
alunos.
As atividades são pouco exploradas, porém têm sempre
os mesmos objetivos: leitura e escrita voltados para a aquisição
da base alfabética.
Seguindo a seqüência do caderno do aluno M., exclusivo para
as aulas na sala de recuperação, no período de fevereiro
a junho de 2003, período este correspondente à primeira
etapa do ano letivo, constatamos que as atividades iniciaram-se com a
identificação de letras, vogais e consoantes sem o uso dessa
nomenclatura distintiva; depois passaram a pequenos textos dando ênfase
às sílabas das consoantes C, B, P, L, R, S, F, B, nesta
seqüência, e seguiram com a identificação das
vogais U, O, retomando as sílabas da consoante B, e voltando para
a identificação das letras A, E e outras.
Houve, nesta sala de recuperação, o desenvolvimento de atividades
em que predominavam os procedimentos de ensino de comparação,
identificação, cópia, decomposição
de palavras e memorização; procedimentos esses que possibilitam
uma ação reflexiva diante do objeto de conhecimento. Eram
atividades de alfabetização.
O foco das atividades foi no processo de alfabetização como
a aquisição do código escrito, cujo objeto de conhecimento
é a descoberta e automação do sistema alfabético
de escrita; não propiciaram um evento de letramento, pois não
houve ênfase nas práticas sociais de leitura e escrita.
A ênfase da professora recuperadora foi sempre em “tomar a
leitura”, ou seja, o principal objetivo era que seus alunos aprendessem
a decodificar o sistema de escrita e, para isso, seguiu, literalmente,
a proposição de “tomar leituras” a todo momento.
Foram poucos os momentos propostos pela professora recuperadora que se
caracterizavam como atividades reflexivas diante das idéias e hipóteses
de escrita de outros alunos - debates e resoluções de exercícios
em grupo. Exceto nos momentos em que era proposto aos alunos trabalharem
em duplas. Essa proposta favorece a reflexão sobre as hipóteses
de escrita, mesmo que o exercício proposto não traga, em
seu enunciado, um trabalho a ser desenvolvido com o colega.
Dia 10 de
abril de 2003 - de 13:30h às 15h – Na Oficina de Leitura
e escrita da escola particular
Às
13:30h os alunos se encaminham para a sala da Oficina, chegam e vão
se organizando em roda como habitualmente fazem. A professora inicia explicando
a proposta de trabalho para o dia:
“ Vamos brincar com um jogo de pares! Vou distribuir duas cartelas
com o nome e a figura de animais para cada aluno. Depois vamos começar....”.
As cartelas não eram do mesmo animal. A figura era de um animal
e o nome de outro.
A professora distribui as cartelas e continua:
“Agora vou escolher um aluno para mostrar, no centro da roda, a
sua cartela; quem tiver o mesmo animal, na cartela de figura ou de escrita,
também deve colocar no centro e assim vamos fazer com todos”.
À medida que vão saindo os nomes dos animais, a professora
os registra no quadro, perfazendo um total de 22 palavras.
Eram as seguintes, assim dispostas no quadro:
SAPO CACHORRO TARTARUGA
MACACO
GATO PATO
LEÃO
BORBOLETA
RATO QUATI
GIRAFA ABELHA
COELHO PORCO
BALEIA PEIXE
FORMIGA XEXÉU
COBRA VACA
GALINHA PAPAGAIO
(Caderno
de Campo A – 10/04/2003)
Percebemos
que a atividade foi muito longa, pois eram muitos os pares de animais,
22, e o grupo de crianças era grande, 24 alunos, nesta Oficina.
Sendo crianças de 6 anos de idade, elas se dispersam com muita
facilidade, o que foi confirmado pela fala da supervisora que passou pela
sala: “Ela [se referindo à professora] está aflita
com seus alunos e com razão, pois neste grupo estão as crianças
que não têm muita concentração; ainda com a
ajudante nova, não está dando conta das crianças”
(Fala da Supervisora).
Continuando a atividade, a professora pede ajuda a um aluno para entregar
uma cartela para que cada um lesse o nome que estava escrito, sem a gravura.
A professora orienta:
“É para ler baixinho para o colega que está do lado”.
A professora se aproxima, individualmente, de cada aluno, pedindo que
leiam a cartela para ela. Nesta atividade, podemos dizer que a professora
“toma leitura” de seus alunos.
É um exercício que demanda leitura, identificação
e comparação entre as palavras e as figuras. Sendo assim,
verificamos a presença do procedimento de ensino de identificação.
No exercício referido, a ênfase é na palavra, no nome
dos animais.
Às 14:15h a professora propõe que os alunos sentem-se nas
mesas, organiza-os em grupos de quatro e apresenta a nova atividade: Bingo
de Letras. Ela sorteia, fala e mostra a letra e os alunos devem olhar
e marcar em suas cartelas.
É uma atividade de identificação de letras que, assim
como a anterior, o Jogo dos Pares, apresenta o procedimento de identificação.
As duas atividades propostas neste dia são de reconhecimento de
palavras e letras. São o que poderíamos classificar como
atividades de alfabetização, onde se prioriza a aquisição
da base alfabética. Porém, durante a primeira, a professora
apoiou a atividade de escrita, escrevendo as palavras, que eram apresentadas
pelos alunos, no quadro negro, o que vem a reforçar a escrita e
reconhecimento das letras, sílabas e palavras.
Num segundo momento, a professora “toma leitura” das palavras
que já haviam sido faladas e identificadas na roda e escritas no
quadro. Esse tomar leitura aproxima-se muito das atividades desenvolvidas
na Sala de Recuperação, na escola pública, com a
diferença do tipo de texto. Na Sala de Recuperação
eram textos simples, descontextualizados do conteúdo explorado
na sala, na Oficina de Leitura e Escrita, eram parlendas, listas de objetos
e animais, contextualizadas.
A atividade posterior, O Bingo de Letras, tinha como objetivo a identificação
das letras do alfabeto; era também considerada como de alfabetização
porque visava a aquisição da base alfabética.
Notamos que, no período de uma hora e meia, foram propostas duas
atividades: a roda com o Jogo dos Pares (13:30h) e o Bingo de Letras (14:15h).
Dispondo de uma hora e meia, meia hora a menos em relação
ao dia descrito na escola pública, a professora desenvolveu duas
atividades, ambas exploradas verbalmente antes de sua execução.
Considerações
Finais
Dispondo
de uma hora e meia, meia hora a menos em relação ao dia
descrito na escola pública, a professora da escola particular desenvolveu
duas atividades, ambas exploradas verbalmente antes de sua execução.
É importante ressaltar que o tempo destinado às Oficinas
é menor do que o tempo da Sala de Recuperação, na
escola pública. As Oficinas de Leitura e Escrita aconteciam duas
vezes por semana, às terças e quintas-feiras, de 13:30h
às 15:00h, totalizando um período de três horas semanais.
A Sala de Recuperação funcionava diariamente, no período
de 13h às 15:30h, perfazendo um total de doze horas e meia por
semana.
Considerando que, semanalmente, os alunos têm, em média,
vinte e duas horas e meia de aula dentro da escola pública, aqueles
com dificuldades de aprendizagem na alfabetização, deveriam
passar 55,5% de seu tempo na Sala de Recuperação, enquanto
os alunos na escola particular passavam 13,3% de seu tempo escolar semanal
na Oficina de Leitura e Escrita.
A análise das atividades observadas nas salas de reforço
levou-nos a refletir sobre a (con)fusão dos termos alfabetização
e letramento.
É interessante notar que existem muitos momentos de confusão
e poucos de fusão. Alfabetizar letrando, que caracteriza a fusão
dos dois conceitos, é pouco explorado.
As atividades propostas nas salas se atinham, na maioria das vezes, à
alfabetização, às atividades de aquisição
da base alfabética.
A pesquisa acabou por revelar que, se os conceitos de alfabetização
e letramento estiverem bem definidos e compreendidos pela escola/professores,
a aplicação prática dos mesmos será sua fusão
através de atividades de alfabetização que propiciem
o letramento, e de eventos de letramento que propiciem a aquisição
do código escrito.
Sabendo-se que as intenções da escola/professores são
de aperfeiçoar o sistema de ensino e de torná-lo cada vez
mais acessível, sugere-se que práticas de letramento e de
alfabetização, sejam trabalhadas concomitantemente, para
possibilitarem o sucesso dos alunos considerando suas características
sociais, culturais, econômicas e cognitivas proporcionando um melhor
aproveitamento pedagógico.
Referências
Bibliográficas
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em Educação – Uma introdução à
teoria e aos métodos. Portugal (Coleção Ciências
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