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DE
QUE FORMA A QUESTÃO AMBIENTAL ESTÁ PRESENTE NA MÍDIA:
UMA ANÁLISE DO DISCURSO DE UMA MATÉRIA IMPRESSA
Harlei
Alberto Florentino (Faculdade de Educação da USP / FEUSP)
Valdir Barzotto (Faculdade de Educação da USP / FEUSP)
Este trabalho
consiste numa análise do discurso de uma matéria realizada
pelo jornalista Alexandre Mansur, publicada em 22 de dezembro de 1999
pela revista Veja, com o seguinte título: O planeta resiste aos
ataques. A análise será realizada com base em alguns pressupostos
teórico-metodológicos de Pêcheux (1975) e Osakabe
(1999). Para tanto, serão consideradas as condições
de produção, a partir das quais será apresentada
uma interpretação geral da matéria seguida de alguns
elementos da análise do discurso, segundo os dois teóricos
mencionados.
Considerando-se inicialmente as condições de produção,
temos o seguinte: a matéria foi publicada em uma edição
especial da revista Veja sobre a virada do milênio. Contém
uma retrospectiva do século XX e assuntos contemporâneos.
A avaliação geral apresentada pela revista é positiva,
inclusive da política brasileira. Um item do índice serve
como exemplo, “O país termina o ano melhor do que começou”.
Sendo o Brasil um país que vive sob um regime democrático
e que almeja fazer parte do grupo dos países desenvolvidos, espera-se
que o povo apoie a democracia e tome como modelo as ações
desses países. Se existem soluções para os problemas,
inclusive os ambientais, estas virão dos desenvolvidos e não
dos atrasados. O autor da matéria insere-se nesse contexto ao escrever
para uma revista que apoia a democracia e que pretende (neste momento)
transmitir uma visão positiva da democracia e do Brasil, que deve
se tornar tanto melhor, quanto mais próximo estiver dos países
desenvolvidos e democráticos. Nesse sentido, o locutor pode estar
se referindo a um interlocutor a sua própria imagem, já
que o discurso produzido pela sociedade acaba por tornar quase que indiscutível
valores associados à democracia e ao progresso material.
O locutor apresenta uma visão otimista da questão ambiental
na virada do século, associando-a com formas de governo e índice
de desenvolvimento. Legitima o desenvolvimento sustentável e cita
o Brasil como exemplo, colocando-o ao lado dos países desenvolvidos.
Busca a adesão do leitor a um discurso “verdadeiro”,
utilizando-se de uma linguagem impessoal, em terceira pessoa, nunca em
primeira pessoa, o que provoca o efeito de sentido segundo o qual informações
e fatos se confundem. Pois, como se sabe, a universalidade, a busca da
verdade universal é uma das marcas do discurso científico.
O leitor, assim, não podendo discordar dos fatos, acaba por aderir
ao discurso do locutor. É como se os fatos falassem por si sós,
é como se a única possibilidade de verdade fosse aquela
apresentada pelo locutor. Como exemplo cito um trecho do último
parágrafo: “O Brasil faz parte de um grupo de países
intermediários. As queimadas e as madeireiras continuam a destruir
a Floresta Amazônica sem que as autoridades consigam impedir, mas
a sociedade começa a se incomodar com a sujeira.”, ou o final
do primeiro parágrafo: “Dizia-se que, no ano 2000, as pessoas
precisariam usar máscaras de oxigênio nas grandes cidades
como Tóquio, São Paulo e Los Angeles.” Além
do que, justifica tais fatos afirmando que há estudos comprovando-os.
Utiliza-se, também, de certas significações como
se fossem equivalentes: “democracia”, “desenvolvimento”,
“planeta mais saudável”, “países desenvolvidos”,
“países atrasados”, “humanidade”, “responsabilidade
ambiental”, “tecnologia”, “autoridade”,
“expressar”, “crescer”, “enriquecer”,
que como argumentarei mais adiante, constróem uma posição
política atraente, baseada na democracia, no poder do povo, no
crescimento, na responsabilidade ambiental. Dessa forma, o autor acaba
por justificar um otimismo através de uma ideologia política
comum ao povo ocidental. Isto se torna mais evidente quando se observa
os fatos citados no início e no final da matéria:
Trecho inicial: “O homem devastou florestas, poluiu o ar das grandes
cidades, contaminou rios com produtos químicos, exterminou espécies
animais e abriu um buraco na camada de ozônio”
Trecho final: “Em função do efeito estufa, os últimos
25 anos foram os mais quentes da história. O uso indiscriminado
de agrotóxicos contamina rios e lagos. Já há 1000
espécies de praga imunes a pesticidas. Alguns problemas graves
persistem, principalmente nos países atrasados. Há muito
o que fazer ainda, mas tudo indica que o pior momento já passou”.
Os problemas ambientais continuam os mesmos. Os dados apresentados por
si só não justificariam um otimismo. Este otimismo parece
estar baseado no desenvolvimento tecnológico, na democracia e na
responsabilidade ambiental, características dos países desenvolvidos.
Portanto é nos países atrasados que os “problemas
graves” são predominantes. Outro ponto interessante está
na escolha de quais sujeitos são explicitados. No primeiro trecho,
o responsável pela destruição ambiental é
o “homem”, ou seja, a humanidade, não havendo forma
de atribuir culpa a qualquer subconjunto desta (obviamente também
não aos países desenvolvidos). Já no segundo trecho,
“os países atrasados” são explicitados e associados
aos problemas graves que ainda persistem.
O quadro presente na matéria que apresenta o “saldo ambiental”
também sugere um ponto de vista otimista que pode influenciar o
leitor. No canto esquerdo e superior do quadro está escrito: “o
balanço do século não é dos piores”
e ao seu lado um ícone representando um rosto sorrindo indicando
“bom”, e de um rosto triste, indicando “ruim”.
Em todo o quadro existem 4 ícones indicando “bom” e
três indicando “ruim”.
Também o título da matéria e em destaque, logo abaixo,
a frase “Apesar do desmatamento e da poluição, o mundo
não está tão mal como se previa” tornam explícitas
a posição do locutor. Não tão explícitas
são as formas e significações que podem levar à
adesão do leitor.
Como justificativa de uma análise em que uma ideologia política
é utilizada como forma de buscar a adesão do leitor, e de
que os aspectos informativos do texto se deixam comprometer pelas significações,
vou me remeter a noção de entidade dominante e dominada
e de equivalência de enunciados (OSAKABE, 1999).
O dominador é o locutor, pois é ele quem enuncia e no momento
que enuncia manipula as coordenadas do discurso. A entidade dominada se
caracteriza pela inércia, pois como é o caso da leitura
de uma matéria, não se realiza um diálogo entre o
locutor e o leitor em tempo real, ou seja, o discurso de um não
é produzido na sua interação com o outro. No entanto,
a interação se dá no momento da leitura, sem a qual
um texto não cumpriria seu papel sócio cultural, tornando-se
apenas associado ao universo do indivíduo. A matéria sugere
que o locutor não escreve para qualquer leitor e que busca sua
adesão. A forma como o locutor coordena o seu discurso pode ser
analisado levando-se em conta as condições de produção,
o que traz consigo as perguntas formuladas por Michel Pêcheux (1975):
quem sou eu para lhe falar assim? e, quem é ele para eu lhe falar
assim? cujas respostas forneceriam o jogo de imagens que sustentariam
a produção do discurso, acrescidas de uma definição
da natureza do ato a que o locutor visa praticar e a relação
deste com o leitor (OSAKABE, 1999).
Diversos trechos de enunciados servem como dados para análise,
de que argumentos políticos ideológicos justificam o otimismo
com relação às questões ambientais e não
os fatos apresentados na matéria. Abaixo uma relação
dos considerados relevantes:
1) “...a humanidade caminhava em direção ao caos.”
2) “O tempo mostrou, contudo, que é possível crescer
– e enriquecer – com responsabilidade ambiental”.
3) “Era preciso um governo sério que cumprisse sua missão
de fiscalizar sem se corromper e uma sociedade em que as pessoas pudessem
exigir providências da autoridade. Ou seja, a proteção
ambiental depende diretamente da democracia”.
4) “Os estudos confirmam isso. Procure-se um país onde não
há democracia, ou seja, onde a sociedade não tem o direito
de se expressar, e lá se irá encontrar a devastação.
Africanos ainda queimam lenha das árvores para cozinhar...”
5) “Já nos países desenvolvidos os indicadores ambientais
são animadores.”
6) “O mico-leão-dourado, brasileiro, o mais famoso primata
do país, que saiu da lista de animais em risco de extinção:
o tempo mostrou que é possível crescer e enriquecer com
responsabilidade ambiental”.
7) “Alguns problemas graves persistem, principalmente nos países
mais atrasados. Há muito o que fazer ainda, mas tudo indica que
o pior momento já passou. O mundo entra no próximo século
com a perspectiva de continuar se desenvolvendo, em um planeta mais saudável”.
Nenhuma dessas
enunciações são postas em discussão pelo locutor
e somadas à forma como os fatos foram apresentados, o texto, que
poderia ter um caráter informativo, acaba por ter um caráter
persuasivo.
O primeiro enunciado citado, que aparece logo no início da matéria,
sugere que a humanidade, que antes caminhava para o caos, hoje não
caminha mais. Caminha para algo diferente do caos. O segundo enunciado
aponta, com a ajuda da história, que o desenvolvimento sustentável
ocorreu. Pode-se crescer e enriquecer com responsabilidade ambiental.
Este enunciado fala em favor da indústria que promove desflorestamento
de um lado e reflorestamento do outro. É omitido pelo locutor que
o desenvolvimento do capitalismo e consequentemente das indústrias,
é responsável pelo aumento da desigualdade social e permitiu
a criação das expressões, “países desenvolvidos
e “países atrasados” O terceiro enunciado traz a idéia
de que a democracia é fundamental para a preservação
ambiental e de que o povo é ativo no processo. O quarto enunciado
justifica as idéias presentes no terceiro ao apresentar dados que
foram obtidos a partir de estudos. Percebe-se a construção
de autoridade pela busca de uma voz de poder que é a ciência,
a qual pode ser entendida, neste caso, como politicamente neutra. Ela
não toma posição e sim apresenta fatos. A ciência
então, corrobora a idéia de que a democracia é fundamental
para a preservação, já que em países não
democráticos há devastação. Os problemas ambientais,
portanto, são decorrência do tipo de regime e do nível
de desenvolvimento. O autor não menciona que a lógica do
desenvolvimento capitalista, empregada pelos países “democráticos”
desenvolvidos, é responsável pela maior parte da devastação
ambiental em seus territórios e nos territórios dos países
“atrasados” e “não democráticos”.
Interessante notar que segundo o enunciado, a África como um todo,
como se fosse um único país, vive queimando lenha das árvores
para cozinhar. Está implícita a idéia de um continente
considerado atrasado, não democrático e agora, também
responsável pelos problemas ambientais do planeta. Além
do mais, queimar lenha não favorece indústrias e empresas,
que têm responsabilidade ambiental, portanto deve ser combatido.
Em nenhum momento a matéria traz enunciados provenientes destes
“países atrasados”, o que demonstra a tomada de posição
do locutor e o caráter persuasivo da matéria. Não
é colocado em questão, por exemplo, o modo de vida ou o
significado da extração da lenha nestes países..
O quinto enunciado reforça o argumento dos países desenvolvidos
dando exemplo de preservação ambiental em seus territórios,
nada sendo citado sobre as ações desses países em
territórios dos países atrasados, já que atualmente
as manifestações capitalistas são amplamente globalizadas.
O sexto enunciado aproxima o Brasil da condição de país
desenvolvido ao associar a eliminação de um animal do risco
de extinção com um desenvolvimento sustentável (crescer
e enriquecer com responsabilidade ambiental). Quem cresce e enriquece
são os países desenvolvidos, assim também como os
que têm responsabilidade ambiental. Interessante notar que o trecho:
“o tempo mostrou que é possível crescer e enriquecer
com responsabilidade ambiental” aparece no segundo enunciado, e
precede no texto da matéria a relação feita entre
países desenvolvidos, democracia e preservação ambiental.
O locutor utilizou-se da mesma construção, em destaque na
matéria, para finalizar este enunciado, só que agora relacionando-o
com o Brasil. O argumento usado pelo locutor é frágil pois
usa como símbolo de transformação, de que a sociedade
começa a se incomodar com a “sujeira”, a triplicação
do mico-leão-dourado (inclusive há uma foto de um mico-leão
tomando grande parte do espaço onde foi escrita a matéria).
É discutível se a sociedade teve uma real participação
neste caso, pois é somente informada pelos meios de comunicação
de fatos como este. Não houve e não há “votação”
ou qualquer outra forma de a sociedade como um todo optar pela preservação
desta ou daquela espécie. A preservação do mico-leão-dourado
pode ter acontecido por um acúmulo de casualidades, desde o interesse
particular de alguns pesquisadores ao interesse de instituições
que liberam verbas para pesquisa, públicas ou não. Sua preservação
não aconteceu baseada em uma análise de importância
ecológica. A possibilidade de extinção de insetos
polinizadores, por exemplo, que possuem uma importância ecológica
indiscutível, não sensibiliza a população
como um mico-leão-dourado ou um boto-cor-de-rosa, causam repulsa,
e nem ficariam tão atraentes como imagem em uma matéria
como esta. Muitas outras espécies estão correndo risco de
extinção ou já foram extintas sem que a sociedade
soubesse ou pudesse tomar alguma atitude.
O sétimo enunciado reforça a idéia de que nos países
atrasados é que estão os problemas mais graves, ou seja,
nos países desenvolvidos os problemas estão praticamente
resolvidos. Há uma relação entre país atrasado
e ausência de democracia na matéria, sugerindo que a expressão
“Há muito o que fazer ainda, mas tudo indica que o pior já
passou” esteja relacionada com a difusão da democracia pelo
mundo. No passado havia a ameaça da guerra fria, hoje temos uma
potência hegemônica que continua pregando a democracia pelo
mundo mas não possui rivais não democráticos a altura
em termos de armamentos para pô-la em risco. Por fim, conclui associando
desenvolvimento com planeta saudável.
Referências
Bibliográficas
GADET, F.
& Hak, T. (orgs) Por uma análise automática do discurso:
uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997.
ORLANDI, E.P. Discurso e leitura. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.
OSAKABE, H. Argumentação e discurso político. São
Paulo: Martins Fontes, 1999. |
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