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  UNIVERSIDADE, LEITURA E FORMAÇÃO DOCENTE

Filomena Maria Formaggio - Universidade do Contestado – UnC – Concórdia/SC

Mire veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas sempre estão mudando...
Guimarães Rosa

Introdução. O presente artigo se insere num debate acerca do papel da leitura na formação inicial de professores e parte da consideração de histórias de leitura de professores formadores de professores no período em que cursaram a universidade*. Propõe, igualmente, uma reflexão sobre a relevância da leitura no período inicial de formação docente e na produção do conhecimento, rumo – quem sabe – à superação da mudez telepática presente em nosso tempo.
Trata-se de um estudo de caráter qualitativo, na modalidade investigação narrativa. O universo da pesquisa constituiu-se de seis docentes e o critério de escolha dos sujeitos baseou-se no fato de todos serem formadores de professores. A coleta dos dados foi realizada por meio de entrevistas audiogravadas e, posteriormente, transcritas. Os dados foram analisados a partir dos relatos dos sujeitos.
No período investigado – a formação inicial - as leituras dos sujeitos assumem a forma de alguns artigos e textos de apostilas. No caso de um entrevistado - fez Letras Clássicas - livros para análise e alguns trechos da Ilíada, e da Odisséia. Outro se interessava pelas leituras sobre questões de psicologia uma vez que cursava Filosofia como aluno ouvinte e costumava freqüentar a biblioteca da faculdade. Nenhum dos entrevistados se lembra, porém, de, na Graduação, a leitura ter ocupado um papel de destaque, tanto no que se refere ao incentivo/estímulo dos professores a outras/novas leituras quanto às solicitações dos diversos cursos.
As lembranças de leitura que os sujeitos trazem da época em que cursaram a universidade não diferem substancialmente das trazidas dos períodos anteriores de escolarização. São, em sua maioria, marcadas pelas leituras de trechos de livros, apostilas, alguns artigos trazidos pelos professores e tratados, invariavelmente, de forma fragmentada.
Ao se referirem à formação inicial deixam escapar certa frustração, especialmente em relação à leitura, que se manifestam em suas vozes. Tal frustração, a nosso ver, pode ser entendida como a não concretização das expectativas que os sujeitos apresentavam em relação ao ensino superior.
Vale ressaltar, porém, que a Universidade tem compromisso com o saber, posto que um dos seus compromissos básicos é com o ensino,

...pois a difusão do saber dá-se no âmbito da sala de aula, ainda quando esta, formalmente, confunde-se com o laboratório, a sala de projeção, o anfiteatro, a biblioteca. (...) é nela que ocorre a veiculação do conhecimento, despindo-o da sacralidade conferida por aqueles que o transformam num exercício do poder. A sala de aula é o espaço para o trânsito de idéias e concretização de uma aspiração da democracia: a de que todos tenham oportunidades iguais de acesso ao conhecimento e de pesquisar novas tecnologias enquanto condição do progresso social e da emancipação política (Zilberman, 1991:139).

A veiculação do conhecimento, de que fala a Autora, aparece nas falas dos entrevistados como não tendo ocorrido de forma satisfatória, quando claramente assumem que o ensino superior não lhes correspondeu aos anseios iniciais.

A minha Graduação foi uma calamidade em termos de leitura. O professor trazia três ou quatro páginas de um texto e nos dividia em grupos e dizia: “para o grupo um, do parágrafo tal ao parágrafo tal”; “para o grupo dois, do parágrafo tal ao tal...” Era tudo muito fragmentado... Nós não entendíamos nada do que estava no texto. A coisa ficava muito solta, muito perdida... Eu entendia os parágrafos que eu tinha lido, mas não conseguia conectar com aquilo que os colegas tinham lido...
...Outro professor trazia um questionário. Primeiro fazia uma exposição de, mais ou menos, uma hora e meia. Depois, nos dava um questionário com questões objetivas e tínhamos que responder conforme o que ele tinha falado na aula. Tínhamos que dizer qual era a alternativa certa que ele tinha falado.

...O professor de Sociologia nunca deu, nunca sugeriu um livro sequer para nós lermos...

...Eu acho que a faculdade foi meio “fajuta” pra mim... Eu não me lembro de ter esse... entusiasmo por parte de professor... Em nenhum momento...

... Nesse período eu pensava: ‘como eu gostaria de saber ler’, ‘como eu gostaria de gostar de ler’...

...Eu não sei se eu não gostava [de ler] ou tinha preguiça ou era uma coisa sem motivação ou porque eu não tinha dinheiro pra comprar os livros. Na biblioteca eu ia só quando precisava, quando na faculdade exigiam, então nunca fui lá [à biblioteca] pra catar um livro e ler e emprestar, por vontade própria...

As falas dos entrevistados são reveladoras de um modelo epistemológico/pedagógico assumido pela universidade. Modelo esse calcado na transmissão-recepção, e que privilegia a superespecialização, fragmentando, portanto, o conhecimento. Nessa perspectiva, a “posse da verdade”, característica deste modelo e das ações inspiradas ou fundadas no positivismo, parece tornar a leitura desnecessária ou supérflua, pois, quando ‘se sabe o fim da história, o final do livro, se o mocinho morre, se os protagonistas ficam juntos, a leitura perde a graça, se perde o interesse....’
Este modelo de educação pode ser caracterizado como aquilo que Santos (1987:18) identificou como paradigma dominante, paradigma este orientado pela racionalidade científica onde só há duas formas de conhecimento: as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais em contraposição àquilo que chamou de paradigma emergente que reconhece a intencionalidade, a não neutralidade e concebe a ciência como um ato humano e historicamente situado.
Na perspectiva da formação de professores, inserida nas ciências humanas, o modelo epistemológico/pedagógico assumido pela universidade, conforme relato dos sujeitos, apresentava a vinculação tradicional ao paradigma dominante especialmente por entender que a fragmentação e a superespecialização levariam ao conhecimento da realidade com a qual os entrevistados teriam que se deparar no exercício da profissão docente.

Considerações sobre algumas concepções de ensino. Muito se tem discutido acerca da qualidade da formação universitária e, em particular, dos licenciandos. Essas discussões têm buscado entender e, em certos casos, relacionar, o desempenho docente e a formação inicial de tais profissionais. Isso porque tem havido uma tendência a se procurar os ‘responsáveis’ pelos insucessos da educação, quer seja no Ensino Fundamental, Médio quer seja no Ensino Superior. E essa busca tem posto seu foco sobre o que se convencionou chamar de ensino tradicional.
O ensino tradicional apresenta alguns pressupostos já discutidos por autores como Santos (1987; 1994), Cunha (1998), Balzan (1995), Perrenoud (1993), Nóvoa (1991; 1992) entre outros que podem, para efeito didático, ser assim caracterizados conforme sistematização de Cunha (1998:10-12): (1) o conhecimento é tido como pronto e acabado, historicamente descontextualizado; (2) a disciplina intelectual é tomada como reprodução das palavras, textos e experiências do professor; (3) valoriza-se a memória, a precisão e a ‘segurança’; (4) destacam-se a resposta única e verdadeira e o pensamento convergente; (5) no currículo, cada disciplina é concebida como um espaço próprio de domínio do conhecimento que luta por quantidade de aulas para ter ‘toda a matéria dada’; (6) o professor é a principal fonte de informação e se sente desconfortável quando não tem todas as respostas prontas para os alunos; (7) a pesquisa é vista como atividade para iniciados, fora do alcance de alunos da graduação, na qual o aparato metodológico e as certezas se sobrepõem à capacidade intelectiva de trabalhar com a dúvida.
No âmbito da formação docente, o ensino e a aprendizagem delineada pelos pressupostos acima apresentados tem apontado para um descompasso entre o que se faz e o que seria desejável a uma formação que considera a alteridade e a provisoriedade do conhecimento.
Sabe-se, a partir de estudos em todas as áreas do conhecimento – inclusive na Física – que o universo não é linearmente planejado e que a sociedade humana é movida por forças contraditórias (Cunha, op. cit.). Dessa forma, a educação trazida pela universidade tem sido pautada nesse modelo linear valorizando a restrição do conhecimento à especialidade, à área à qual pertence. E o que foge a esta caracterização tende a ser considerado pouco científico e, como tal, colocado sob suspeita.
Se, se entender, porém, que o conhecimento é total – como o universo e a vida – e se constitui ao redor de temas, torna-se difícil aceitar a tendência à fragmentação informada pelos sujeitos, de vez que o conhecimento sendo total e constituído ao redor de temas, estes tendem a avançar/progredir ao encontro uns dos outros de maneira tal que se entrelaçam e buscam as mais variadas interfaces. Isso implica dizer com Santos (op. cit.) que nenhuma forma de conhecimento é, em si, racional e, portanto, dialoga com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas.
Essa dialogicidade presente no conhecimento pressupõe uma articulação necessária entre as áreas do saber e, conseqüentemente, das diversas formas e fontes de leitura presentes na universidade. Tal articulação apresentou-se – pelas vozes dos sujeitos – insuficientes, uma vez que informam que as leituras eram realizadas a partir de ações e procedimentos estanques. A utilização de ‘apostilas’ per se tende a apresentar um olhar imutável sobre o assunto, bem como os trechos de livros tratados de forma desarticulada.
Se as vozes dos sujeitos sugerem a desarticulação acima exposta, apresentam, ao mesmo tempo, mais duas possibilidades de observação/discussão. Em primeiro lugar, não foram consideradas até aqui neste estudo, as condições de leitura desses sujeitos. Em segundo lugar, não se cogitou também sobre o compromisso assumido, mesmo que tacitamente, dos entrevistados quando do ingresso na universidade.
Esses dois aspectos da formação dos sujeitos, no meu entendimento, precisam ser discutidos e considerados.

As condições de leitura. Em seus depoimentos a maioria dos entrevistados informou que freqüentava a universidade à noite, em função da necessidade de trabalhar para seu próprio sustento e/ou contribuir para o sustento da família. Os demais procuravam se dedicar aos estudos em tempo integral.
As condições nas quais a leitura ocorria aos que precisavam trabalhar durante o dia para, à noite, freqüentarem a escola, eram sobremaneira adversas, já que além do cansaço do trabalho ‘tinham’ que estar atentos o suficiente – e com vontade – para ‘assimilarem’ os conteúdos trazidos pela universidade, dado que pretendiam ser professores.
No primeiro caso, de acordo com as vozes dos sujeitos, driblar o cansaço, ficar atentos e ainda lerem – quaisquer portadores de textos – pareciam, de certa forma, incompatíveis. Isso porque os sujeitos apontam que as leituras eram realizadas na sala de aula e, segundo eles, de maneira ‘muito solta’, para responder aos questionários ou fazer a leitura de determinados ‘parágrafos’ de um mesmo texto.
Tais ações pedagógicas de leitura descontextualizadas parecem ter sido um fator de desestímulo aos sujeitos, já que suas histórias de leitura precedentes na escola não lhes haviam possibilitado uma formação de ‘leitores’ autônomos, dado que as leituras estiveram sempre atreladas às avaliações, em geral, dos conteúdos lidos, avaliações estas de caráter mecânico e sem significação a eles.
Além disso, as condições sociais nas quais estavam inseridos os sujeitos representava outro fator a ser considerado nesta discussão. Os entrevistados informam que, à época de suas graduações, por ‘precisarem’ trabalhar, não dispunham de tempo para estudar e, ainda segundo eles, ler... Em alguns casos, afirmam que só dispunham do fim de semana para tratarem de todas as disciplinas, além de cuidarem de suas vidas pessoais, colocando, desse modo, a leitura como algo que poderia ‘esperar’ ou ser realizada mais ou menos superficialmente, uma vez que as solicitações seriam para responder às questões de sala de aula e/ou comunicarem aquilo que denominaram ‘trabalhos’ em classe. Tais trabalhos eram divididos em grupos e cada grupo lia e apresentava aos demais um trecho do texto lido e/ou proposto pelo professor. Portanto, o aprofundamento das leituras estava, em certa medida, descartado.
Entretanto, qualquer trabalho que procure tornar a leitura conquista de uma realidade não pode esquecer o contexto de sua luta e tampouco excluir de seus horizontes a realização da felicidade individual no projeto de construção de uma sociedade democrática em todos os sentidos dessa expressão (Geraldi, 1996:86).
Outro problema trazido pelos entrevistados diz respeito à questão de ordem financeira. Afirmam alguns que, apesar de trabalharem para poderem se manter, não tinham condições de adquirir os livros que eventualmente eram sugeridos. Lembram, também, que os textos indicados pelos professores eram fotocopiados e que, até para tais cópias, o dinheiro de que dispunham era insuficiente.
As bibliotecas das universidades não foram levadas em conta neste período, à exceção de dois sujeitos que se dedicavam aos estudos em tempo integral.
Ao questionar os sujeitos que haviam sido ‘alunos-trabalhadores’ sobre os motivos pelos quais pouco ou quase nunca utilizavam a biblioteca da universidade, responderam que não tinham motivação, entusiasmo e que iam à biblioteca quando era imprescindível. Um dos entrevistados admitiu certa indefinição em não saber se não gostava de ler, se tinha preguiça ou se era porque não podia comprar os livros...
Tenho percebido – e as vozes dos sujeitos também indicam – que, ao chegarem ao ensino superior os licenciandos, de maneira geral, tentam reproduzir atitudes, comportamentos de leitura consoantes os desenvolvidos nos Ensino Fundamental e Médio. Em princípio tendem a ignorar que no Ensino Superior há diferentes estados de leitura. Freqüentemente, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio não se exige um nível de aprofundamento de teorias, pois se espera um determinado padrão de leitura que seja compatível (?) com aquele grau de escolaridade.
Ao chegar ao Ensino Superior, entretanto, os licenciandos se deparam com outros níveis de leitura – e de exigência – pois as leituras acadêmicas, os textos teóricos pressupõem outras e diversas qualidades de leitura e isso se choca com as expectativas trazidas pelos alunos como um todo.
Apesar disso os sujeitos avaliaram seu desempenho na leitura, tanto quanto os motivos que os levaram a ler. Quase todos afirmaram que quando liam, além de atenderem às exigências das avaliações, liam também para buscar informações, mas que não gostavam de ler ‘livros grossos’. Além do mais, afirmaram também que tinham dificuldades em interpretar o que liam e que, às vezes, ‘divagavam’ no meio da leitura.
Nessa perspectiva, há que se considerar que não se pode ler um texto teórico como se lêem os romances, as novelas, os contos, enfim, a chamada literatura.
Por que entendo deste modo? Porque a leitura de textos teóricos, a meu ver, pressupõe e mobiliza capacidades intelectivas distintas. O foco tende a ser direcionado para tal natureza específica de texto e, certamente, nele está inscrita certa peculiaridade que exige do leitor uma compreensão crítica de tal leitura e que não ‘se esgota na decodificação pura da palavra escrita’ ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. E, na perspectiva freireana, a compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção entre o texto e o contexto (1997:11).
Por sua vez, a leitura de ficção traz em si um componente que, nem sempre, encontra-se nos textos teóricos: a fruição. Não estou afirmando que não se pode realizar uma leitura de fruição também dos textos teóricos. O que ocorre é que as leituras das obras de ficção tendem a, nas palavras de Manguel (1997), pressupor e, simultaneamente, criar a liberdade.
Quando, porém, aponto a fruição dos textos estou pensando na visão trazida por Barthes. Em termos mais específicos, trata-se do prazer que causa alguma forma de estranhamento e não do prazer ligeiro como tem sido vulgarizada a questão da fruição.
Para Barthes (1997:22) o texto de fruição é aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consciência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.
Já o texto de prazer, segundo o mesmo Autor (1997:22) é aquele que contenta, que enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável de leitura.
Além do mais, penso que se devem considerar os diferentes modos de ler, já que toda leitura é sempre diferente de outra leitura, ainda que se repitam textos e leitores. Nesse sentido, é preciso aprofundar a riqueza da diversidade sem cair na insensatez das regras fáceis de que tudo vale, que não há desigualdades a superar, que não há sentidos em circulação e compromissos entre leitores e autores (Geraldi, 2003).
Assim, o conflito vivenciado pelos licenciandos entre suas expectativas anteriores e o nível acadêmico de leitura, muitas vezes, tem provocado nos alunos certas impressões, dentre elas a de que não sabem ler nem escrever, não se vêem como leitores e, em certos casos, se referem às etapas anteriores de ensino como tendo sido frustrantes no que concerne à leitura. Muitos se sentem lesados e afirmam que a escola deveria ter-lhes preparado de maneira mais adequada e exigido mais deles.
Nesse sentido, levar em conta as condições de leitura dos sujeitos, me parece relevante, pois se assim não fosse, estaríamos, de certa forma, ignorando as histórias de vida desses sujeitos. Até porque não é possível pensar que só pelo fato de estarem no ensino superior e/ou na universidade os licenciandos já tinham superado as falhas da formação escolar, ou, que os problemas impostos pelas questões sociais não interferiram no desempenho ou mesmo nas atitudes de tais alunos.

O compromisso assumido com o Ensino Superior. A segunda questão ainda relativa à desarticulação trazida pelos sujeitos e que mencionei anteriormente aponta para o compromisso com o ensino superior/universidade assumido pelos sujeitos, em particular e, pelos licenciandos, de maneira geral.
Ao ingressarem no ensino superior/universidade os sujeitos desta pesquisa conservavam certa expectativa e, segundo alguns, a escolha da licenciatura se deu por falta de opção quer seja em termos de freqüentar outro curso numa universidade pública quer seja ainda por questões sociais, como a impossibilidade de se deslocarem de suas cidades ou custearem uma universidade particular. Segundo três sujeitos, a opção pela licenciatura teria sido consciente e motivada pelo desejo de ensinar. Às vezes inspirados em algum ‘modelo’ de docente, às vezes porque se diziam dispostos a trabalhar com crianças e/ou jovens nas áreas por eles escolhidas.
O contato com o novo, o diferente, em princípio costuma despertar temores e deslumbramentos. É o que parece ter ocorrido com eles. Se, por um lado, o fato de estar no ensino superior/universidade lhes trouxe a sensação de conquista – e, nestas condições, sempre é –, por outro lado, a realidade do nível superior de ensino lhes causou receios e decepções.
Os depoimentos dos sujeitos sobre o período da graduação, especialmente em relação à leitura, são repletos de insatisfações, medos das avaliações, sensações de opressão, entre outras. Tem-se a impressão que o sentimento de malogro é, por vezes, maior do que aquela vitória inicial e o encantamento.
Mas, entendo que é necessário refletir um pouco sobre a questão do compromisso com o ensino superior/universidade.
Ao utilizar tal expressão estou pensando em algo que tem sido recorrente nas vozes dos docentes formadores de professores e que tem sido objeto de reuniões e reflexões, sem, contudo, vislumbrar-se um consenso.
Em reuniões, encontros, congressos e seminários que discutem as questões da universidade é usual a preocupação e, em certos casos, perplexidade de professores formadores sobre a ‘falta de compromisso’ que dizem perceber nos alunos em relação aos estudos, à universidade e à sua própria formação. Alguns se sentem angustiados diante daquilo que vêem como desinteresse e ‘falta de vontade’, independentemente do período e da instituição.
Tal situação tem gerado desconforto tanto de alunos quanto de professores. Os primeiros, muitas vezes se sentem desconfortáveis, pois não conseguem acompanhar seus colegas, ou as questões sociais são determinantes e sobrepujam a capacidade de os alunos ‘suportarem’ e acompanharem o ritmo da universidade. Outras vezes, esses alunos apresentam falhas em sua formação anterior e, por isso, se sentem incapazes na universidade.
Há casos – e não são poucos – nos quais os universitários sentem que ‘precisam’ freqüentar o ensino superior por imperativos vários, mas que, numa atitude de resistência, se negam a assumir as rédeas de seus estudos, de sua formação. Em outros termos: chegam a afirmar que apenas estão na universidade em função da certificação final – o diploma – para conseguirem melhores posições no mercado de trabalho, mas que não estão interessados (ou muito pouco interessados) em estudar e aprender. É como se, o que o ensino superior busca veicular não lhes interessasse absolutamente.
É necessário dizer que obviamente não se trata da grande maioria. Porém, o que se tem observado é que tal situação tem sido cada vez mais recorrente, em particular no que se refere às leituras.
Inicialmente pode-se atribuir o desinteresse pela leitura em função de a maioria dos alunos serem obrigados a conciliar o trabalho e os estudos. Porém, à medida que avançam os semestres das licenciaturas observa-se que os estudantes demonstram privilegiar atividades outras, propostas pelos grupos, nos quais o ‘estudo’ não seja prioridade, a efetivamente se aprofundarem nas leituras, nas experiências e na polissemia da própria formação.
Tal situação tem causado certa apreensão no meio acadêmico, pois percebem os professores que o risco que se tem é o de licenciandos se graduarem com uma formação aligeirada, o que certamente compromete a vida não apenas de tais graduandos, mas e, principalmente, de seus futuros alunos.
Assim, ao lado das dificuldades que foram observadas de alguns sujeitos desta pesquisa, observou-se também certa apatia ou uma atitude de acomodação às situações adversas, já que o movimento que seria desejável em direção à leitura para uma formação mais consistente esteve embaçado e/ou ocorreu muito aquém daquilo que usualmente se esperaria.
Nesse sentido, entendo que se deva levar em conta além das questões sociais, como as condições materiais e políticas objetivas em que se dá a formação dos sujeitos (Britto, 2003:125), a questão da cultura das ‘dificuldades’ como hipótese – ou seria justificativa? – para um certo descompromisso em relação à própria formação superior.
Vale ressaltar que não cabem aqui juízos de valor, mas tão-somente uma possibilidade de olhar para a formação superior tendo sempre em mente a inconclusão do ser humano e a provisoriedade do conhecimento.
Nesta perspectiva, penso ser interessante trazer à tona uma das teses de que trata Geraldi (2003:59) – em artigo intitulado “Paulo Freire e Mikahil Bakhtin. O encontro que não houve” – quando reconhece o futuro como centro de gravidade das decisões do presente. Aponta o autor referido, o encontro das vozes de Freire e Bakhtin que dizem sobre as possibilidades da História aos sujeitos.
Freire (1997:21) afirma: reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de ‘determinismo’, que o futuro, permita-se-me reiterar, é ‘problemático’ e não inexorável. Em outro momento continua Freire (1997:81): a inexorabilidade do futuro é a negação da História.
Por sua vez, Bakhtin (1992:33) declara: se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso nem viver nem agir; para viver, devo estar inacabado, aberto para mim mesmo (...) devo ser para mim mesmo um valor ainda por-vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade.
A partir, assim, das vozes destes Autores referidos é possível pensar o compromisso dos sujeitos desta pesquisa com a formação superior, com a universidade. Se, se considerar o ‘inacabamento’, a ‘inconclusão’, poder-se-ia indagar até que ponto tais sujeitos levaram em conta o ‘futuro como centro de gravidade das decisões daquele presente...’ Na formação superior inicial dos sujeitos teria sido considerado o futuro, como declara Geraldi (op. cit.)? E, a afirmá-lo positivamente, que futuro? Com que qualidade/possibilidade?
Nesse sentido, é possível inferir que a universidade desvelada pelos sujeitos pode ser entendida como aquela convertida em mercado de trabalho e não a que tinha originalmente e que expressava um compromisso de qualidade com o ensino, posto que, no dizer de Zilberman (1991:140),

...o caráter seletivo do mercado de trabalho na área do ensino coloca sob suspeita a inclinação democrática que a educação hipoteticamente contém. A profissão a que a universidade habilita é igual a que é exercida no seu interior, mas, num caso e no outro, o efeito é a contradição de princípios, num círculo vicioso difícil de romper.

O paradigma emergente e um modelo não-tradicional de ensino. Para se pensar em termos de contraponto ao que foi discutido sobre o que se entende por paradigma dominante e ensino tradicional, busco também em Cunha (1998:13) as características possíveis de um paradigma emergente – que busca a ruptura – e uma concepção não-tradicional de ensino.
Santos (1987:39) ao contrapor o que denominou como paradigma emergente ao paradigma dominante, chama a atenção para o fato de o paradigma emergente negar as contradições que fazem parte do paradigma dominante e aponta que, o paradigma emergente admite a não neutralidade, reconhece a intencionalidade e concebe a ciência como um ato humano, historicamente situado.
Considero relevante apontar os estudos de Santos (op. cit.) acerca desse tema, uma vez que o Autor referido busca aproximar a questão epistemológica com as estruturas sócio-culturais, das quais nos dão conta Cunha (op. cit.) declarando que esta ótica nos ajuda a compreender a prática pedagógica que se desenvolve na universidade...(p. 29).
Nesse sentido, buscando uma concepção não-tradicional de ensino e, novamente numa perspectiva didática, trazida pela Autora acima citada, levanto possíveis características de uma concepção não-tradicional de ensino e que, por trazer em seu bojo o paradigma emergente, propõe uma ruptura com as formas de entender o conhecimento e o mundo.
Uma proposta de ensino numa perspectiva não-tradicional, segundo Cunha (1998:13), poderia levar a atividades pedagógicas que: (1) enfocariam o conhecimento a partir da localização histórica de sua produção e o perceberiam como provisório e relativo; (2) seriam contrárias à repetição, valorizando as habilidades intelectuais de compreensão e reinterpretação do já descoberto e dito; (3) valorizariam a curiosidade, o questionamento e a incerteza; (4) perceberiam o conhecimento de forma interdisciplinar, propondo pontes de relações entre eles e atribuindo significados próprios aos conteúdos, em função dos objetivos sociais e acadêmicos; (5) entenderiam a pesquisa como um instrumento do ensino e a extensão como ponto de partida e de chegada da apreensão da realidade; (6) valorizariam as habilidades sócio-intelectuais tanto quanto os conteúdos, já que cada vez mais são necessárias pessoas que entendam as interdependências postas no universo, desde a questão ambiental até as estruturas de poder e suas relações com o conhecimento.
No caso presente, a universidade trazida pelos sujeitos trabalhava na perspectiva do paradigma dominante, desenvolvendo uma proposta de ensino tradicional, procurando, explicar a vida pela ciência e viver a vida segundo a ciência (Geraldi, 2003).
Assim, me parece que tal modelo e/ou concepção de ensino deixou de possibilitar aos sujeitos a criação de um entorno social cálido, em que as palavras, enunciados, movimentos, interações, humor, bem como as rotinas e comportamentos que conformam o ‘currículo oculto’, favorecessem uma maior transparência e comunicação (Aragão, 2003:10).
A observação trazida por Aragão, acima citada, remete àquilo que usualmente se tem notado acerca da formação docente em relação às leituras. Certa vez, Kafka ao ser perguntado sobre por que ler, respondeu: ler para fazer perguntas. Mas, por meu turno, observo: a formação inicial dos sujeitos desta pesquisa propiciou-lhes a criação de um entorno social cálido, como afirma Aragão, para que pudessem fazer as perguntas, interrogar?
O modelo educacional apontado pelos sujeitos ao longo da formação inicial, como afirmado anteriormente, estava atrelado à concepção tradicional de ensino e, como tal, calcado na transmissão de conteúdos disciplinares, numa perspectiva essencialmente técnica. Nesse sentido, as vozes dos sujeitos são eloqüentes quando dizem:

... o professor trazia três ou quatro páginas de um texto e nos dividia em grupos e dizia – “para o grupo um do parágrafo tal ao parágrafo tal”; “para o grupo dois, do parágrafo tal ao tal”. Era tudo muito fragmentado...

... outro professor trazia um questionário. Primeiro fazia uma exposição de mais ou menos uma hora e meia. Depois nos dava os questionários com questões objetivas e tínhamos que responder conforme o que ele tinha falado na aula...

... tinha uns professores que trabalhavam Platão, Sócrates... mas eles já contavam que a gente não ia ler – porque era curso noturno – então eles davam aula como se os alunos não tivessem lido o texto.... a maioria das pessoas não lia, aproveitava o que era dado na aula...

... tivemos uma formação que deixava a desejar... porque acho que eles [os professores] podiam exigir mais do curso noturno... pensando no curso como um todo, era um curso muito fraco nesse sentido [da exigência da leitura].

É possível inferir dos depoimentos acima que a leitura, na perspectiva aqui apontada, não foi trazida como uma oferta de contrapalavras do leitor que, acompanhando os traços deixados no texto pelo autor, faz estes traços renascerem pelas significações que o encontro de palavras e contrapalavras produz (Geraldi, 2003). Em outros termos: a abordagem da leitura proposta pela universidade aos sujeitos negava-lhes, em certa medida, as contrapalavras das quais fala o Autor, uma vez que ao desconsiderarem as histórias de leitura dos sujeitos e, ao tempo da formação inicial, não lhes darem voz, também lhes impossibilitava ressiginificarem as palavras dos autores que não chegaram a acompanhar.
Assim, a formação oferecida pela universidade afigurou-se-lhes algo distante de seus anseios e, segundo eles, em relação à leitura, muito fraca. A leitura aparecia como meramente instrumental-utilitarista, pois as ações pedagógicas a ela ligadas não davam conta do seu caráter dialógico, da busca de significados, sentidos e encontros que ela possibilita. Daí, possivelmente, a sensação de ‘fracasso’ que alguns sujeitos sentiram com a leitura na formação inicial. Talvez as palavras de Geraldi, já citado, possam expressar uma resposta à muda indagação que perpassa os depoimentos dos sujeitos: ler sem deixar-se levar, mas se permitir embalar pelas palavras, pois os homens não se fazem no silêncio, senão na palavra, no trabalho, na ação e... na reflexão (Freire: 2003: 78).

A leitura/a linguagem: a constituição do sujeito e as relações de poder. Algumas considerações sobre a constituição do sujeito e as relações de poder considero importante levantar. A primeira porque a linguagem é incontestavelmente a chave e a porta que se abre para a compreensão do processo de constituição do sujeito. A segunda, porque entendo que o poder se desloca com freqüência, apesar de observarmos constantemente as estruturas de exclusão nas quais se intentam encaixar políticas de inclusão.
Se entendo com Kramer (1994: 107) que a linguagem regula a atividade psíquica, constituindo a consciência, porque é expressão de signos que encarnam o sentido como elemento da cultura, entendo também que o sentido é construído pelas relações sociais. Nessa perspectiva, a linguagem é construída considerando-se a alteridade, o eu e o tu, já que um não se constrói sem o outro, visto que somos seres inacabados e, a linguagem, também o é.
Dessa forma, concordo com a indagação de Geraldi (1996:100) sobre qual o papel reservado à leitura neste processo da subjetividade? Aponta o autor que

...incluída a leitura entre as formas de interação, por isso mesmo lugar de compartilhar e fazer circular sentidos – leituras do mundo e da palavra (Freire, 1982), processos concomitantes na constituição dos sujeitos, a primeira não ocorre sem a segunda – com a leitura alargam-se nossos horizontes de possibilidades de construirmos, neste diálogo constantemente tenso com a palavra alheia, nossas próprias palavras de compreensão.

Assim, ao mesmo tempo em que a linguagem é constituidora do sujeito, se configura como elemento imprescindível para a compreensão sobre o que ocorre nas relações de poder.
Ao discorrer sobre a questão da consciência – e da subjetividade – Bakhtin (1995:33) alerta que ...a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos. E, mais adiante, afirma que a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais, pois a lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social (p. 35-6).
Isso autoriza a dizer que a consciência e a subjetividade são forjadas na interação e a partir do meio ideológico e social. Além do mais, e o que nos importa neste trabalho, é destacar que o centro que organiza as enunciações está situado no meio social que envolve o indivíduo, segundo o pensamento bakhtiniano.
Tal perspectiva aponta para a compreensão e a consideração do inacabamento, da inconclusão do indivíduo cuja consciência seria constituída a partir de nossas interações sociais. Daí pensar como elemento fundante deste trabalho a consideração do “outro” em amplitude.
Ao assim pensar, estou levando em conta que a interação social, em certa medida, orienta a linguagem no sentido de ‘organizar’ as relações de poder, já que, como referido anteriormente, o poder se desloca com freqüência. O que isso significa? Em termos plurais, significa que a linguagem pode ser utilizada para bloquear o acesso ao poder, como afirma Gnerre (1998). Mas, de outro lado, pode também ser utilizada para possibilitar, nas relações sociais, tomadas de posição que levem à libertação/liberdade de esquemas excludentes. Isto porque, novamente, estou considerando a incompletude e a inconclusão do ser humano.
Esse caráter dialógico da linguagem precisa ser explicitado uma vez que esta, como já apontado, pode servir a esquemas de exclusão. Isto é possível entre outras coisas, pela própria organização formal (sintática, por exemplo) de mensagens, de conteúdos.
Alguns esquemas de exclusão podem aparecer em determinadas comunidades que, por não dominarem o repertório de conhecimentos e lingüísticos, presentes no meio social em que vivem, ficam à margem da compreensão ‘real’ dos sentidos expressos pela linguagem do sujeito e tendo, assim, bloqueado seu acesso ao poder.
Assim, quando falo em ‘poder’ estou pensando no poder que o domínio do repertório de conhecimentos e da linguagem hegemônica representam.
Ao mesmo tempo, porém, devido ao seu caráter dialógico, a linguagem e mediações pedagógicas conseqüentes podem ser provocadoras de experiências epistemológicas significativas que podem levar o sujeito à emancipação. Nesse sentido, a leitura pode ser reveladora das relações de poder presentes na universidade.
Vale indagar, porém, de que forma isso acontece? Como é possível tal relação? Para Cunha, já referida neste texto,

o conhecimento, na universidade, representa um espaço de poder, definindo limites e ‘propriedades’ para os que o dominam. Cada indivíduo ou departamento tem uma especialidade e, assim como ‘respeita’ o campo do colega, reage quando sente invadido seu terreno de saber. Os títulos qualificam as pessoas e permitem ou impedem o exercício do conhecimento, definindo profissões e dividindo papéis sociais, interferindo, desta forma, na organização econômica da sociedade (1998:20).

É comum observar nas universidades certo ‘receio’, dos docentes formadores, em relação à leitura e à escrita. Tal situação aparece geralmente configurada nas ‘reclamações’ sobre as dificuldades dos alunos tanto em relação à hermenêutica dos textos quanto na produção de material inteligível.
Apontam os docentes que pouco adianta solicitarem leituras de livros ou artigos uma vez que a tendência dos estudantes é não lerem, sob as mais diversas alegações.
Por outro lado, tais docentes, ao reduzirem as solicitações de leitura possibilitam a continuidade de uma situação que acaba por se transformar num círculo vicioso, pois os estudantes não lêem porque os professores – e a universidade – não lhes solicitam (ou solicitam pouco) e os professores pouco ou nada solicitam porque os alunos não lêem.
Dessa forma, as relações de poder presentes na universidade tendem a ficar, se não diluídas, ao menos balanceada já que o poder ora se encontra com os docentes ora com os estudantes.
Esse deslocamento do poder nas relações universitárias tem gerado certas incongruências que se refletem e se refratam na proliferação daquilo que Chauí chamou de universidade operacional .
Afirma a autora mencionada (2001:191) que

A docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência ricos em ilustrações e com duplicatas em CDs. [...] A docência é pensada ou como habilitação rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente no mercado de trabalho, do qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis... [...] Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação.

Nessa perspectiva, tal universidade se caracteriza pela ausência de reflexão, de crítica, do exame de conhecimentos instituídos, sua mudança ou superação, exatamente porque nesse modelo de universidade não há tempo para pensar e o que tende a predominar é a fragmentação.
Assim, as leituras trazidas por estas organizações são pensadas levando-se em conta seu grau de facilidade em função do tempo que ‘corre’ rapidamente, das exigências do mercado e, não, da formação. A linguagem acaba por ser destituída de densidade, de sentido e serve apenas como instrumento que pode ser utilizado para controlar alguma coisa.
Na verdade, ao assumir esse tratamento, a linguagem e, por conseguinte, a leitura se despe do mistério e do sentido que uma dada sociedade ou um dado contexto lhes atribui. Isso equivale dizer que os estudantes e os docentes, ao se decidirem mutuamente por tais linguagens/leituras também se decidem por um modelo epistemológico – que é hegemônico – e que acaba por reforçar as exclusões presentes na sociedade, já que segundo Fiorin (2003: 75) a opção e o uso de determinadas leituras, determinados discursos, são uma forma de agir no mundo.
Em termos específicos, as opções que a universidade tem selecionado e/ou possibilitado – em relação às leituras – deixam de contribuir para uma formação autônoma dos docentes, isto porque

...para ser professor, não basta conhecer a matéria, ter conhecimento, mas é preciso, sobretudo, ter competência ou “ser competente” para, em termos “autônomos”, transformar, por exemplo, o ‘saber disciplinar’ em conteúdos acessíveis aos alunos, colocando-o em “disponibilidade pedagógica para ser aprendido”. Parece ser este o exemplo maior de autonomia e competência docente: “o ensino gerando aprendizagem” (Aragão, 2003:8). [os destaques são da autora].

A leitura, desde esse ponto de vista, se configura como algo imprescindível para a aludida formação, conforme destaca a Autora referida e, entendo que, a contar pela opção metodológica, também se explicitará em termos inclusivos a opção epistemológica assumida pela universidade.
No que se refere aos sujeitos desta pesquisa, os depoimentos de alguns entrevistados são claros no sentido de apontar a opção epistemológica que fundamenta os procedimentos metodológicos relacionados à leitura, visto que as eventuais solicitações de leitura não provocavam ‘conflitos cognitivos’. Ao contrário disso, os depoimentos de alguns sujeitos confirmam que as solicitações tinham objetivos pré-definidos, quais sejam, as respostas prontas, mecânicas, calcadas na memorização. A dúvida, como elemento desencadeador de reflexão, buscas, curiosidade científica, não era destacada, tampouco o debate e as discussões. Isso seria desejável na perspectiva de uma formação que considera a universidade e, mais ainda, a sala de aula, lugares privilegiados de construção do conhecimento. Nesse âmbito, à leitura cabe papel fundamental para tal formação, notadamente, se se pensar em termos inclusivos.
Assim, considerar a leitura na universidade, numa abordagem dialógica, poderia estimular tal construção do conhecimento e a formação de profissionais autônomos na perspectiva de Aragão (2003:9) conforme parece demandar o presente.
Além disso, uma formação docente comprometida com esta autonomia, evidencia como o ‘poder’ e/ou as relações de poder se põem na universidade e, como conseqüência, que profissionais se pretende formar.

Considerações finais. Nosso olhar acerca da formação dos sujeitos desta pesquisa em relação à afirmação acima incide sobre a dimensão desta realidade de tal modo que os depoimentos dos entrevistados são reveladores dessas relações de poder. Em outros termos, a formação desvelada pelos entrevistados diz respeito àquilo que se pretendia realizar na formação inicial: graduar profissionais para atuarem no mercado de trabalho na visão da universidade operacional.
Apesar de os sujeitos deste trabalho serem de diversas regiões do país e oriundos em sua maioria das universidades privadas e/ou comunitárias, fica evidente, pelas vozes desses sujeitos, que a formação inicial de todos ocorreu numa perspectiva de similitude em relação às leituras e, por conseguinte, no que se refere à concepção de professor que se pretendia formar.
Isso significa que à época de suas formações a universidade evidenciada não era aquela comprometida com a formação de profissionais autônomos e diferenciados em termos de qualidade de reflexão que seria desejável para um posterior exercício profissional numa perspectiva freireana: a aprendizagem [e o ensino] em comunhão.
Ao final, buscando compreender a formação inicial dos sujeitos desta pesquisa com a formação inicial de docentes em geral, vale ressaltar que, no presente, as ações e intenções da universidade de forma ampla não diferem, como alertado no início deste artigo, daquelas discutidas até aqui neste trabalho, uma vez que, via de regra, o modelo de universidade que tem sido mais freqüente aponta para o chamado modelo operacional e a leitura, em que pesem as pesquisas sobre a necessidade de valorizá-la, não tem se destacado como um dos pontos mais importantes na formação de professores. E, como uma das conseqüências, a universidade tem deixado a desejar em relação àquilo a que veio: a formação, efetivamente. Fica, porém, a indagação: o que aconteceu a esses sujeitos-professores após o período da graduação e como praticam a leitura como profissionais? A resposta, certamente, buscarei em próxima investigação...

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