Girlene Marques Formiga - Centro Federal de Educação
Tecnológica da Paraíba /CEFET-PB)
Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (Universidade Federal
da Paraíba – UFPB)
As adaptações de clássicos literários
para jovens leitores circulam no Brasil desde o século XIX, quando
a literatura escolar era fortemente influenciada por autores estrangeiros.
Dessa época, Figueiredo Pimentel e Carlos Jansen Müler são
nomes que se destacam na área da tradução e adaptação
de muitos clássicos da literatura universal. Assim, como no século
XX, na década de 20, Monteiro Lobato surge na literatura infanto-juvenil,
não apenas como escritor e editor, mas como tradutor e adaptador.
Confessa: anda com várias idéias, uma delas é vestir
à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo
em prosa e mexendo nas moralidades. Hoje, outros nomes já estão
consagrados como adaptadores em nosso país como Carlos Heitor Cony,
Ana Maria Machado, Paulo Mendes Campos e tantos outros menos reconhecidos
pela comunidade acadêmica. No entanto, embora seja uma leitura que
veicula em nosso país há algum tempo, não há
estudos acerca da adaptação. Por trás dessa ausência
encontra-se a concepção segundo a qual o texto literário
é um objeto intocável, que uma vez escrito dispensa a sua
materialidade, no caso, o suporte em que é dado a ler, seu caráter
de mercadoria e, principalmente, seus leitores reais, concretos. Indo
de encontro a essa visão, pretende-se discutir e formular alguns
pressupostos inerentes à adaptação, que fazem dela
um gênero legítimo, cuja elaboração implica
representações do leitor e da leitura. Nesse sentido, tentaremos
abordá-la na perspectiva elaborada por Chartier (1990), de que
a leitura envolve o texto, o leitor e o suporte.
A necessidade dessa investigação surgiu durante o Mestrado,
quando pesquisávamos a respeito das mais variadas adaptações
em que eram lidas As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, e
descobríamos a escassez de estudo desse suporte dos clássicos
infantis. Detectado o lugar menor que ocupa nas pesquisas acadêmicas,
e tendo em vista o número significante de leituras, oriundas de
textos adaptados, esta investigação vem suprir um pouco
dessa lacuna. Há de se convir que essas produções
merecem um trabalho de pesquisa, justificado inclusive pela necessidade
dos leitores, que efetivamente lêem através das adaptações.
Semelhante às primeiras traduções surgidas em nosso
país, algumas adaptações ainda hoje conservam a mesma
tradição da época, quando muitos daqueles livros
eram oferecidos nos mais diversos formatos e elaboração:
alguns apresentam mais informações e se aproximam bem mais
do texto de partida, ilustrados em cores, com encadernações
refinadas, representando um leitor mais exigente; outros ressaltam mais
o valor didático da obra primeira, sem ilustração,
com margens reduzidas e acabamento inferior, inclusive sem informar os
nomes dos adaptadores. As análises feitas a partir de As aventuras
de Pinóquio, quando da pesquisa do Mestrado, comprovam que a adaptação
varia conforme a editora, e uma mesma editora pode adaptar mais de um
texto de uma mesma obra, com dois tipos de leitores representados de forma
diferente. Como justificar essas obras? Que aspectos entram no texto maior
e no menor? Por que a supressão de certos elementos pelo mesmo
autor da adaptação?
Essa concepção de que a qualidade do texto pode variar conforme
a condição sócio-cultural de quem lê é
vista de forma limitada pela política editorial, que desconsidera
o leitor e suas práticas de leitura. É inegável que
os dispositivos textuais e formais – os suportes – estão
intimamente ligados à “comunidade de leitores”, porém
não podemos limitar as distâncias sociais a fatores exclusivos
que determinam a materialidade de um texto, pois outros princípios
devem marcar as diferenciações: idade, sexo, geração,
elementos que precisam ser considerados por alguns editores, que, ao produzirem
ou reconstruírem textos para crianças/jovens, representam
esse público apenas como grupo hierarquizado, e, mesmo considerando
a idade, representam-no como incapaz. Dessa forma estaríamos reduzindo
o leitor a categorias a ele impostas, como se o teor e a qualidade do
livro imprimisse a oposição sociocultural: ao rico e letrado,
livros caros, com adaptações zelosas; ao gosto popular,
livros baratos, com papel inferior e adaptação descuidada.
São os editores, além dos impressores, tipógrafos,
capistas, quem manejam a materialidade do texto pressupondo diferentes
leitores, pondo no mercado textos excessivamente adaptados, de sentidos
por eles delimitados, quando trabalham com a concepção de
leitor que, em um grupo, necessite de um tom condescendente na linguagem,
com sentenças curtas, recheadas de ilustrações, pressupondo-o
inábil; em um outro grupo, um leitor mais habilitado e mais exigente.
Chartier (1990) explica que a oposição macroscópica
entre texto popular e letrado perdeu a sua pertinência, o que comprova
que não é o grupo social, como querem algumas editoras,
o que determina a forma do texto, mas o suporte que desperta a atenção
dos leitores, porque se assim não o fosse incitaríamos a
desigualdade dos bens culturais e privaríamos os leitores de importantes
obras.
Para Chartier (2001), o texto não atua sobre o leitor por si só,
mas através de uma materialidade, um formato, imagens, uma capa,
uma distribuição e outros elementos que vão contribuir
no processo de construção de sentido do leitor. Se continuarmos
a ignorar outras formas materiais, que implicam formas de entendimento
de texto, estaríamos corroborando a autoridade imposta pelo texto
de que ele só tem uma forma de ser lido, ignorando a relação
que se estabelece entre a leitura, o leitor e sua materialidade de que
faz uso no momento de sua produção cultural. Motivo pelo
qual se faz necessário pesquisar sobre a adaptação,
cuja forma de transmissão tende a direcionar o leitor a caçar
sentidos que não são encontrados no texto de partida. Para
tanto, pretendemos buscar respostas de forma que, ao final de nossa investigação,
possamos construir um pouco da história do processo que faz com
que uma obra seja recortada, simplificada, diminuída, e lida por
tantos leitores. Eis algumas questões: Por que se adapta? Qual
a finalidade? A adaptação é um texto (gênero)
menor? Existe um cânone de adaptação? Desde quando
se adapta? A adaptação está ligada ao caráter
de mercadoria do livro? Há instâncias de poder (censores)
que determinam a adaptação que veicula no mercado editorial?
Se a tradução pode se configurar como o primeiro olhar sobre
o texto de partida, portanto um novo texto, o que dizer da adaptação,
que muitas vezes é feita a partir dessa reconstrução?
Os estudos sobre adaptação são inéditos no
Brasil, razão pela qual surge a necessidade de se buscar subsídios
na área da tradução, que, embora consista em um campo
inicial de pesquisa em nosso país, desde o final do século
XVI, surgem os primeiros comentários teóricos acerca do
ato de traduzir feitos pelos ingleses, e a maioria dessas idéias
continuam sendo pertinentes até o século XX. Segundo Milton
(1998), até então era comum a prática de traduzir,
atualizar ou adaptar as obras sem que se fizessem referências às
fontes. No século XV, por exemplo, versões inglesas de ballade
française, de Boccaccio, além de contos franceses e latinos,
eram recontadas livremente, tornando-as importantes no estabelecimento
das raízes da literatura inglesa. William Shakespeare, por exemplo,
como muitos outros dramaturgos da época, tomou por empréstimo
elementos de obras traduzidas para compor suas peças. Contudo,
após o chamado período Augustan (final do séc. XVII
e XVIII), época das mais famosas traduções para o
inglês – a Ilíada, de Homero, traduzida por Alexander
Pope, e a Eneida de Virgilio, traduzida por John Dryden – houve
uma maior preocupação em reconhecer a tradução
em si. Apesar de algumas divergências sobre o ato de traduzir, os
tradutores Augustans consideram que o original não seja sagrado.
O mesmo pensamento atribui-se à figura mais importante da tradução
de poesia de língua inglesa no século XX, Ezra Pound, ao
defender que na tradução não se pode manter tudo
no original porque nessa atividade deve-se acrescentar a voz do tradutor
ao texto de partida. Outras abordagens contemporâneas foram levantadas
por Jorge Luis Borges, Walter Benjamim, Jacques Derrida, Roland Barthes,
Augusto e Haroldo de Campos, entre outros, e, embora haja algumas divergências
entre si, todos são unânimes quanto à importância
da tradução no desenvolvimento da literatura. Essa crença
é compartilhada por nós e estendida, naturalmente, a um
suporte bem próximo da tradução – a adaptação,
que se constitui uma outra forma de ler, além de assumir um papel
social, proporcionando o acesso inicial do leitor a obras difíceis
de serem lidas e compreendidas em determinada época de sua vida.
Tendo em vista o nosso interesse em evidenciar o valor do suporte através
do qual atinge o seu leitor, propomos estudar a adaptação
como uma prática cultural em que o suporte toma parte na construção
do sentido, entendendo que ao criar esse suporte outras mãos –
não apenas o autor que só produz os textos – atuam
sobre a leitura que dele se fará, como os interventores gráficos
(editores, impressores, desenhistas etc). Perspectiva abordada por Michel
de Certeau (2000:226) que afirma: quer se trate do jornal ou de Proust,
o texto só tem sentido graças a seus leitores; muda com
eles; ordena-se conforme códigos de percepção que
lhe escapa; e também defendida por Chartier (1990:127) ao afirmar
que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler,
que não há compreensão de um escrito, qualquer que
ele seja, que não dependa das formas através das quais ele
chega ao seu leitor,
Ao adaptar, o novo autor trabalha com uma série de fenômenos,
como as variedades lingüísticas, culturais e temporais, que
constituirão um outro texto, resultado de uma relação
entre o dito (o texto de partida) e o instituído pelo adptador.
Há uma aproximação entre os dois textos, nunca uma
identificação, dado os interlocutores serem diferentes.
Essa habilidade em estabelecer relações de equivalência
entre elementos lingüísticos, culturais e históricos
dos textos – de chegada e de partida – é o que configura
um trabalho de adaptação.
A adaptação se constitui de um exercício efetivo
entre os leitores, não apenas os infantis/juvenis, mas todo aquele
que se disponha a lê-la, por isso deve-se buscar subsídios
para que se enquadre esse tipo de texto como gênero literário
legítimo. Para tanto, buscamos a fundamentação em
Bakthin (2000:314) para quem os enunciados dispõem de uma forma
padrão e relativamente estável de estruturação
de um todo, ou seja, de um gênero do discurso:
Nossos enunciados (que incluem as obras literárias) estão
repletos de palavras dos outros, caracterizadas, também em graus
variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas,
também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado.
As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu
tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.
Tal concepção pode ser adequada à
adaptação à medida que o autor constrói o
seu “querer dizer” a partir de uma referência (o texto
que servirá como base), definindo o estilo e a composição
do enunciado que poderá ser determinado pelo destinatário,
pelo leitor. Considerando esses elementos, a adaptação é
uma unidade de sentido legítimo e deve ser reconhecida como um
gênero. A apropriação do discurso do outro é
explícita e integral na medida em que é utilizada a idéia
geral da obra sobre a qual está sendo construído o novo
texto. Nesse diálogo, que se estabelece com o texto do outro, está
a idéia de escolher e completar sentidos.
Conceder a importância das versões condensadas que circulam
em nosso país é reconstituir os espaços possíveis
de cada indivíduo ou de uma “comunidade de leitores”
que constrói suas próprias formas de ler, e mais: é
conceder o papel fundamental que desempenha a história dos suportes
dos textos, da leitura e dos leitores na literatura. Além de valorizar
outras práticas que não só reconhecem o estatuto
do leitor aos do texto canônico literário.
Os catálogos das editoras comprovam que a literatura adaptada veicula
na escola, com indicação feita inclusive pelo Ministério
da Educação, a exemplo da coleção Literatura
em minha casa, formada por clássicos universais, quais sejam: Os
miseráveis – Victor Hugo – tradução e
adaptação de Walcir Carrasco – FTD; O mágico
de Oz – L. Frank Baum – Record; A ilha do tesouro –
Robert Louis Stevenson – adaptação de Claire Ubac;
Ali Babá e os quarenta ladrões – adaptação
de Luc Lefort – Ática. Embora haja uma resistência
em relação aos textos adaptados, o fato não impede
que esse novo texto se fortaleça como outro suporte para leitura
– outras categorias de se ler –, conforme atesta o próprio
Estado, que institucionaliza a adaptação de clássicos.
É inegável que as adaptações circulam, comprovadas
pelo volume de edições que movimentam a indústria
do livro, atingindo um público diversificado, dados os variados
formatos, os diferenciados preços e as múltiplas reescrituras.
Se há a prática de leitura de adaptações,
isso nos estimula a continuar pesquisando esse suporte que atrai tantos
leitores, de diferentes épocas, idades e categorias.
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