Maria Lucia de Abrantes Fortuna - Departamento
de Educação (Dedu) da Faculdade de Formação
de Professores (FFP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Estar na escola básica, podendo pensá-la a partir de seu
cotidiano, tem sido uma prioridade em minha trajetória, desde os
anos 70, não só pelo próprio exercício do
magistério, como também pelos diversos estudos realizados
sobre as práticas escolares. Deste percurso, retiro algumas reflexões
que, mesmo pela natureza dinâmica desse lugar, podem me ajudar a
articular algumas formulações para esta apresentação.
A partir de 90, venho tentando compreender o lugar ocupado pelos condicionantes
subjetivos na teia das relações escolares, produtoras de
contradições e ambivalências, articulando, para tanto,
conceitos desenvolvidos pela Psicanálise, a partir da posição
Freudiana.
Neste sentido, tem chamado-me particular atenção as vivências
escolares relatadas pelos professores e professoras em suas histórias
de vida, bem como a relação delas com suas práticas
e suas razões. Tenho interessado-me em compreender melhor este
sujeito ensinante que, com tanta freqüência e ênfase,
fala de sua escola como uma referência identificatória, de
onde provem marcas inesquecíveis.
Assim, a partir de 1999, venho investigando, prioritariamente nas escolas
públicas, como as experiências escolares, vividas por professores
na época de sua escolarização, repercute em sua prática
docente atual. O trabalho pretende construir uma possibilidade de compreensão
sobre o mal estar docente na sociedade contemporânea, em especial,
na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Parece que o/a docente precisa
mudar seu olhar e sua escuta frente ao aluno e à aluna real, percebendo
a tarefa educativa não “como um espaço de totalidade,
onde todas as idealizações se realizam, mas um espaço
de possibilidades” (Diniz, 1998, p.220). Talvez assim seu mal estar
possa ser perguntado, contado e incluído, onde os impasses do cotidiano
possam ser ditos e discutidos fora do campo imobilizador da resposta onipotente.
Com este propósito, tenho dirigido-me especialmente às escolas
públicas do Ensino Básico, nos municípios de São
Gonçalo e de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro. A inclusão
de professores e professoras no trabalho é voluntária, mediante
a apresentação da proposta em contatos informais, no cafezinho,
durante o recreio, na sala dos professores.
As informações são colhidas na observação
direta do cotidiano escolar, por meio de entrevistas não diretivas,
contatos informais, realização de oficinas, participação
nas reuniões e observação das aulas. Nas entrevistas
procura-se resgatar aspectos da história de vida escolar, destacando-se
os professores e professoras mais marcantes, motivos na escolha da profissão
e fatos relativos ao período da formação docente.
Procura-se também favorecer um clima de conversação,
de modo a deixar eles e elas bem à vontade para falarem dos assuntos
que escolhem como sendo os mais importantes.
Numa análise preliminar destas entrevistas, parece que a escolha
da profissão se dá, em geral, por influência da família.
A maioria dos professores e professoras tem parente direto que trabalha
na área da educação. Parece haver também entre
seus familiares, uma forte valorização da educação
escolar, pois relatam que eram incentivados a estudar, mas também
que eram cobrados e exigidos nos resultados, tanto por seus pais, quanto
por seus professores. Reclamam que “hoje em dia não ocorre
o mesmo com os alunos”.
Além das entrevistas, outras informações têm
sido obtidas através de encontros de grupos e/ou de oficinas, onde
a participação é voluntária. Tais atividades
têm ocorrido tanto nas escolas onde se realiza a pesquisa, nos períodos
de atualização e planejamento, quanto em outros espaços,
no interior de Seminários e/ou Jornadas Pedagógicas, organizadas
pelas escolas, pelas Secretarias e/ou pela Universidade. De preferência
são realizadas em salas sem carteiras, propiciando uma situação
de relaxamento, com vistas a recordar suas vivências escolares por
meio de reminiscência, que são relatadas, dramatizadas e/ou
representadas na forma de desenhos e discutidas, tentando-se perceber
como e porque repercutem nas suas práticas docentes atuais. Em
relação aos desenhos, seguindo a sugestão de Alicia
Fernandez e Jorge da Cruz (1999), no sentido de ser mais uma possibilidade
de abrir a escuta, solicitamos aos professores que desenhem uma “situação
de vivência escolar”, estabelecendo, em seguida, um diálogo
sobre o que foi desenhado, pedindo, ainda, que criem uma história
a partir do desenho feito.
Sobre este material, alguns aspectos, de início, chamam atenção,
como por exemplo, o fato de alguns participantes retratarem “a situação
de aprendizagem” fora do ambiente escolar, em locais de maior descontração,
como no bar ou no campo e a presença ora apenas do aluno ou aluna,
ora apenas do professor ou professora, que coincide com a sua situação
de gênero, revelando ser o autor do desenho, aquele que está
sendo desenhado, apontando, portanto, para o forte laço de identificação
presente nas relações entre professores, professoras, alunos
e alunas. (Morgado, 1995) Percebe-se que os desenhos, as conversas e as
histórias mantêm relação com as vivências
de aprendizagem de seus autores, mas percebe-se também uma crítica,
na medida em que representam situações percebidas como lugares
idealizados de aprendizagem, que em nada se assemelham às escolas
onde estudaram ou ensinam. Pode-se pensar também que quando assim
o fazem, indicam seu desejo de mudança sobre o processo de ensino-aprendizagem,
apesar de não enfocarem tal processo na relação entre
os sujeitos envolvidos, mas centrado em um dos seus protagonistas. Penso
que, conceber este processo fora da dinâmica relacional, conferindo
hegemonia seja ao aluno(a) ou ao professor(a), pode produzir em um dos
envolvidos um lugar de sujeito subjugado, trazendo em conseqüência
o “interdito do pensar”, porque submetido à autoridade
do outro, a quem é outorgado e/ou reivindica o domínio da
relação.
Durante as observações das aulas de alguns desses professores
e professoras, percebe-se sua insatisfação em relação
aos alunos e às alunas. Muitos se queixam como se estivessem magoados
pessoalmente. Atribuem como principais motivos desta mágoa, o desinteresse,
a falta de reverência para com eles, elas e a escola, a falta de
disciplina e a ausência de regras no convívio escolar. Conforme
já dito, muitos relembram com orgulho sua época de escola,
onde “tudo era diferente, o professor entrava na sala e a gente
se levantava”. Percebe-se, portanto, um certo sentimento nostálgico
de apego ao passado, onde o poder e o status do professor era reconhecido
e reafirmado por todos. Muitas vezes estas mágoas são manifestadas
em sala de aula. Uma professora admitiu que o desinteresse “parte
dos alunos, mas a gente também fica contaminada”. Num episódio
de aula, onde muitos alunos não haviam feito a tarefa de casa,
ela sentou-se em sua mesa e murmurou desanimada: “Eu já esperava
por isso!” Por vezes, percebe-se no profissional entusiasmo e mesmo
alegria antes de iniciar sua aula. Mas ao final dela, geralmente demonstram
insatisfação, avaliando que poderia ter sido melhor. Assim
ocorreu com uma das professoras que, com expressão de tristeza
pela tentativa fracassada de ilustrar sua aula com uma música,
afirma: “Eles não gostaram! Mas não têm limites,
não sabem o sentido das normas de educação. Esta
turma é muito difícil!”.
Parece-me que a compreensão destes professores e professoras sobre
o processo de ensino – aprendizagem, mantêm forte relação
com suas vivências escolares. Na realidade, não só
as situações de aprendizagem, no sentido estrito, parecem
influenciar sua prática, mas também outras situações
vividas fora da sala de aula dentro do ambiente escolar. Interessante
constatar que, de maneira geral, declaram ter a preocupação
de não repetirem com seus alunos e alunas as situações
constrangedoras pelas quais passaram ou assistiram na escola. Por outro
lado, expressam admiração pelos professores e professoras
percebidos como mais enérgicos e ciosos de seus conteúdos.
Percebe-se em suas falas um conteúdo idealizado, pois descrevem
estes professores e professoras como que providos de todas as qualidades
e de muito poder. Parece se tratar do segundo tipo de identificação
apresentado por Freud no capítulo VII de Psicologia de Grupo e
Análise do Eu (1921), onde “a identificação
esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo
o aspecto daquele que foi tomado como modelo”. (Freud, 1976, v.18,
p.134) Como, em geral, descrevem suas escolas com traços conservadores
e tradicionais, reconhecem que não havia espaço de escuta
para eles e elas, no sentido de permitir-lhes acesso a uma fala espontânea
e verdadeira. Mesmo assim, orgulham-se desta escola e a consideram melhor
do que seu atual local de trabalho, avaliando-se como alunos e alunas
mais aplicados do que os seus atuais. Parece que estes professores e professoras
ainda permanecem sob o efeito da tentação narcísica
de seus professores e professoras, que não resistiram ao fascínio
de modulá-los conforme si mesmo. (Imbert, 1999) No entanto, parece
também que, ao permanecerem embrutecidos por esta sujeição,
sem se dar conta dela, repetindo em suas práticas a mesma expectativa
narcísica, acabam por reforçar em si mesmo o sentimento
de impotência e de fracasso diante do aluno e da aluna que não
lhe confere o mesmo lugar de idealização, até porque
trata-se hoje de estudantes inscritos numa cultura que, por total abandono
do Estado à causa educativa, patrocina um crescente lugar de desvalorização
da profissão docente. È comum escutar deste profissional
um lamento pelo não reconhecimento, por parte de seus alunos e
alunas, do esforço que fazem. “Foi uma pena vocês não
aproveitarem! Nós, professores, nos sentimos frustrados quando
preparamos a aula com toda preocupação e vocês simplesmente
não dão a mínima”.
Pela escuta destes professores e professoras, parece não ser mais
possível ver a docência como um conjunto de competências
e capacidades. O discurso pedagógico com tom idealista não
dá conta do cotidiano real de nossas escolas. Tanto o professor
e a professora, quanto seus alunos e alunas têm uma história
de vida que precisa ser levado em conta na relação ensino-aprendizagem,
que constitui a subjetividade de cada um, permanentemente em jogo com
a subjetividade do outro, no interior dessas relações escolares.
Um dos professores, numa conversa informal, de forma pensativa, desabafa:
“parece que a gente tá remando contra a maré. Não
sei, deve haver alguma coisa, ou mais profunda, ou muito simples, que
a gente não tá conseguindo achar”. Nesta fala, parece
que o professor desconfia da presença de algo que ele não
sabe nomear. Algo que lhe escapa, mas que atua, tanto na sua subjetividade,
quanto na subjetividade de seu aluno e de sua aluna. Algo que interfere
e condiciona as relações escolares. Neste sentido, talvez
fosse proveitoso existir um espaço onde o professor e a professora
pudesse perguntar sobre estas subjetividades em jogo. Talvez assim, possa
localizar melhor, os lugares de onde parte, possa contar-se nisso mesmo
que fala, nisso mesmo que se queixa, acolhendo a si mesmo e ao aluno e
à aluna “com a realidade de suas pulsões, de sua angústia,
de seus questionamentos, de seu desejo, sem lhe contar histórias,
sem reprimir sua inteligência, sem pretender modelá-lo”.
(Imbert, 1999, p.45). Freud em seu texto "Algumas reflexões
sobre a psicologia do escolar"(vol XIII, p 285-288), afirma, a partir
de sua experiência de aluno, que os caminhos das ciências
passam através dos professores ou seja, que a influencia das matérias
ensinadas está atravessada pela personalidade dos mestres, que
se constitui uma corrente oculta e constante junto aos alunos e alunas,
podendo ser, por isso mesmo, aberto ou definitivamente bloqueado o acesso
a elas.
Para tanto, o processo ensino-aprendizagem necessita ser concebido fora
do lugar de ideal acabado, para cada vez mais habitar o campo das possibilidades,
da subversão potencial, que prepara a independência do sujeito
com relação às figuras autoritárias que promovem
a servidão voluntária, assumindo o desafio permanente da
busca de uma alternativa entre a privação da escola cárcere
e a permissividade da escola deserta.
Importa compreender que a educação é antes de tudo
uma prática humana, política e social e, por isso, contraditória,
inacabada, dialética, permanente, multirreferenciada, enfim, um
terreno volumoso e aberto. (Foucault, 1999) Mas também importa
perceber que, historicamente, a escola, enquanto instituição
social, é responsabilizada pela educação formal dos
cidadãos, esperando-se dela a transmissão, a transformação
e a criação do chamado saber científico, que se acumula
historicamente, bem como pelo desenvolvimento da consciência crítica
e cidadã dos seus usuários, ou seja, que patrocine a possibilidade
de que nela habitem sujeitos que pensem com autonomia e autoria, construindo,
assim, uma escola de qualidade. Independente do indiscutível valor
desta proposição parece que são idealizações,
facilmente tomadas como exigências absolutas e não como possibilidades
utópicas a nos oferecer uma direção, arriscando colocar
aqueles que nela se envolvem, profissionais da escola, alunos e alunas,
pais e mães, diante de uma tarefa hercúlia e onipotente.
Diante deste impasse, da ordem do impossível, penso que favorecer
um ambiente onde a participação se coloque prioritariamente,
pela troca dos diferentes saberes, pela cordialidade respeitosa das relações
e pela transparência das informações, numa prática
reiteradamente vivenciada no cotidiano escolar parece oportunizar a manifestação
destas subjetividades em busca de um caminho possível. Especialmente,
quando a observação empírica vem confirmando a existência
deste mal estar docente no ambiente escolar, flagrado de forma notória
durante as reuniões de professores e professoras, como nos Conselhos
de Classe, onde aparece com insistência uma queixa impotente destes,
diante das dificuldades em sua prática, como os problemas de indisciplina
e de aprendizagem. São nestes impasses que outros profissionais
especializados por vezes são convocados, tais como psicólogos
psicopedagogos e/ou fonoaudiólogos, ficando, também de forma
ilusória, depositários de um suposto saber, de onde se espera
uma solução absoluta e salvadora. Neste sentido importa
que tais profissionais também tenham clareza de seus limites, posicionado-se
diante destas demandas, que incluem a escola e a família, como
integrantes de uma equipe que tenta desvendar e abrir um campo de investigação,
entendendo a complexidade contraditória da lógica do sujeito,
da escola e da educação, no interior de uma sociedade. Assim,
sobre a Psicanálise como matriz teórico-metodológica
de análise e compreensão das relações escolares,
venho pensando, a partir deste meu percurso, ainda de maneira provisória,
que ela pode ser uma possibilidade para localizarmos este jogo de subjetividades
que subjaz invisível, mas condicionando o processo de ensinar e
de aprender. Trata-se de algo que ocorre neste espaço invisível,
que se dá para além da materialidade das disciplinas e que
inclui uma complexidade de fatores, de diferentes origens. Penso que a
partir da Psicanálise podemos, por exemplo, indagar sobre este
lugar de suposto “todo" saber, onde professores e professoras,
alunos e alunas padecem sem saber. Abrir para o campo do saber possível,
onde o não saber também possa entrar como valor, pode ser
a chance de se continuar podendo aprender e ensinar.
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