|
OS
RETIRANTES NO ENSINO MÉDIO: O CÂNONE, A IDEOLOGIA E O PAPEL
DA ESCOLA NA OBRA DE GRACILIANO RAMOS
Carolina Beal Galina - Universidade Estadual De
Maringá (UEM)
Primeiro passo: perna direita
Quando escolhemos algo, estamos deixando de lado inúmeras
outras possibilidades para seguir por somente uma. Assim é a literatura.
Quando pensamos em literatura, pensamos nos “clássicos”,
no aprendizado de autores de obras consagradas, na nossa “boa instrução”,
e por isto, necessariamente, estamos escolhendo.
Escolher é um ato que traz conseqüências: nem sempre
o caminho que se toma é seguro, e às vezes é preciso
parar e repensar a rota. Em literatura, os textos que “devem ser
necessariamente lidos” também sofrem mudanças, dependendo
do novo rumo a ser tomado. Estes textos considerados “boa literatura”
são escolhidos devido a inúmeros fatores, quase todos determinados
a certo contexto histórico e social.
Mas afinal, quem decide o caminho a ser tomado nesta incursão?
Com que intenção? Estas são questões a serem
abordadas neste trabalho que pretende analisar diferentes “rumos”
tomados pelos livros didáticos do ensino médio quando abordam
a obra de Graciliano Ramos. O estudo tem o intuito de descobrir que linhas
regem os autores destes livros, além de determinar em quais paragens
anda o aprendizado do aluno e como funciona a escolha do “melhor”
caminho para descobrir o tesouro das obras.
Os caminhos percorridos
A escrita sempre foi uma forma de poder durante a história
da humanidade. Quem detinha a prática da escrita se destacava dentro
de seu grupo. O antigo escriba ou sacerdote era um ser inspirado, de destaque,
que estava a serviço do poder. Aliás, na escrita ou no interior
de qualquer formação cultural, as camadas dirigentes de
uma sociedade se valem de diversas formas discursivas e as transformam
em ideologia para assegurar o seu domínio. Assim, a literatura,
por constituir-se de um sistema de escrita especial em nossa sociedade,
também abriga estas relações de poder.
Quando lemos uma obra, nossa leitura está condicionada por nosso
estatuto de classe, pelo nosso “gosto” pessoal, por nosso
lugar ocupado no tecido social e por um dado momento histórico.
O texto encontra-se inserido em uma teia complexa de códigos culturais,
de convenções e de outros textos. Esses elementos todos
estão contidos dentro de um meio.
Segundo Candido, “o externo (no caso, o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto,
interno” (1985:4). Ou seja, quando consideramos uma obra, nela encontram-se
inerentes os fatores externos que influem em sua escrita.
Torna-se, portanto, indissociável a obra de um contexto histórico
sócio-cultural. Para Candido, estes fatores são responsáveis
mesmo pela formação da estrutura e da estética da
obra, além de seu conteúdo:
“É o que vem sendo percebido ou intuído por vários
estudiosos contemporâneos, que ao se interessarem pelos fatores
sociais e psíquicos, procuram vê-los como agentes da estrutura,
não como enquadramento nem como matéria registrada pelo
trabalho criador; e isto permite alinha-los entre os fatores estéticos”
(Candido, 1985:5)
É
o fator social que explica muitas vezes a estrutura da obra e mesmo seu
teor de idéias, fornecendo elementos para determinar a sua validade
e o seu efeito sobre nós (Candido,1985) . Portanto, torna-se inevitável
que devido à forte presença do contexto em uma obra literária,
as relações de poder também permaneçam ativas
no texto:
“Assim,
a primeira tarefa é investigar as influências concretas exercidas
pelos fatores sócio-culturais. É difícil discrimina-los,
na sua quantidade e variedade, mas pode-se dizer que os mais decisivos
se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às
técnicas de comunicação. (...) Assim, os primeiros
se manifestam mais visivelmente na definição da posição
social do artista, ou na configuração de grupos receptores;
os segundos, na forma e conteúdo da obra; os terceiros, na sua
fatura e transmissão” (Candido, 1985: 21).
É
interessante perceber que em cada um destes fatores sociais, há
uma implicação de poder. Uma certa classe dominante, para
expressar sua ideologia, utiliza-se de um meio (no caso, a literatura),
a fim de atingir o receptor (classe dominada). Todos estes fatores vão
convergir na formação do cânone literário.
Segundo Reis (1992:69), o critério de escolha destes textos segue
o seguinte esquema: “numa dada circunstância histórica,
indivíduos dotados de poder, atribuíram o estatuto de literário
àquele texto (e não outro), canonizando-o”.
O caminho
certo
O termo cânon
vem do grego kanon, (espécie de vara de medir) e representa “norma”
ou “lei”. Durante os primórdios da cristandade, o termo
foi aplicado pelos teólogos para selecionar os textos que deveriam
ser preservados na Bíblia, descartando os que não seriam
utilizados. Logo, a idéia de cânon implica um princípio
de seleção e exclusão, não podendo se desvincular
do poder que o autoriza a isto.
Escarpit explica o cânone como uma forma intimamente ligada à
literatura, já que esta é ensinada através destas
obras sobreviventes ao tempo. Segundo ele, a produção literária
resulta de um grupo de escritores “que, através dos séculos,
é submetida a flutuações análogas às
de todos os outros grupos demográficos...“ (Escarpit, 1969:51)
Para o autor, existem duas formas de passar adiante estas obras literárias.
O primeiro seria fazer uma lista de todos os autores publicados num país
durante um período e o segundo seria listar obras de “qualidade
reconhecida” (Escarpit, 1969). A questão é que nenhum
destes processos é satisfatório, já que o primeiro
acrescentaria qualquer um que escreveu um livro e o segundo, seria composto
por um processo de seleção e exclusão. Prevaleceu
o segundo modelo.
O cânon tornou-se assim um perene e exemplar conjunto de obras,
guardado como patrimônio da humanidade, que preservado para as futuras
gerações, ensinaria o que é a “boa literatura”.
Mesmo o conceito de literatura, que surgiu com a ascensão da burguesia,
é influenciado pela questão do cânone literário,
já que a literatura seria o campo onde a beleza (estética)
destes textos poderia ser contemplada a salvo das mazelas do capitalismo.
Assim, o cânon enaltecia um certo tipo de escrita, peculiar às
elites educadas, desprezando outras formas da cultura popular. (Reis,
1992)
Atualmente, apesar de ser comum o consenso de que o cânone é
formado principalmente por questões políticas e não
somente devido à qualidade dos textos, estas escolhas continuam
sendo perpetuadas em instituições de ensino. O conjunto
de obras que “devem ser lidas”, originárias de autores,
em sua grande maioria, brancos, europeus, homens e pertencentes a uma
alta classe social, continuam figurando entre os livros didáticos
e os cursos universitários.
Sendo assim, o cânone se presta ainda hoje a consolidar a hegemonia
das elites letradas, reforçando a divisão social, transformando
o discurso de uma classe em discurso de toda uma sociedade.
Por isto torna-se importante perceber como o cânon é reproduzido
e como circula na sociedade.
Andando em
círculos
No Brasil,
a literatura, desde a ocupação de nosso território,
foi utilizada para reforçar o domínio português. Era
a literatura principalmente que transmitia os valores europeus aos colonizados,
no intuito de dominá-los. Nenhuma imagem é mais demonstrativa
de tal situação do que a catequização dos
índios.
Porém é no projeto de independência que as elites
brasileiras finalmente firmam a tradição da leitura e escrita
como prática social no Brasil, afinal é este aparato cultural
que favorece o programa nacionalista em curso, beneficiando-se dele. Foi
nesta época, que surgiu, apoiada pela literatura da geração
romântica, a idéia do “verdadeiro brasileiro”.
Apesar disto, o espírito nacional não trouxe a democratização
da educação e o grande número de analfabetos continuou
durante muito tempo à mercê da dominação dos
letrados. (Lajolo e Zilberman , 1991)
Vê-se claramente que a literatura brasileira e as instituições
de ensino, sempre estiveram impregnadas da ideologia dominante, seja a
do colonizador português, seja da elite brasileira. A reforma burguesa
prometida pela classe elitista, democratizando a cultura, de fato, nunca
aconteceu. Por isto, segundo Lajolo e Zilberman (1991:7), “num país
como o Brasil, em que os problemas de circulação e leitura
de obras literárias começaram com a ocupação
do território e arrastaram-se até hoje, parece oportuno
investigar as formas de inserção social da literatura”.
Logo, a educação como um processo emancipatório,
ainda hoje sofre com alguns questionamentos:
“Como dar certo em países como o Brasil, periféricos
e dependentes, onde o processo de aburguesamento não se completa
nunca, ou dizendo de outra maneira, onde o aburguesamento concretiza-se
apenas parcialmente em alguns segmentos sociais, deixando outros inalterados?”
(Lajolo e Zilberman, 1991: 8-9).
Como se descobre
um caminho
É
importante perceber que inúmeros teóricos abordam como a
literatura pode ser uma prática libertadora, transmitindo o conhecimento.
Candido considera que os elementos de produção de um texto
– autor, obra e público – são fundamentais para
a função social inserida na obra. Assim, através
da implicação destes três elementos, ele divide a
obra literária de duas formas: a de segregação e
a de agregação. (Candido, 1985)
Assim, a arte de agregação é a que insere os leitores
em uma comunidade, enquanto que a de segregação aumenta
a divisão entre diferentes leitores.
Neste contexto, torna-se necessário notar qual ideologia a arte
(e a literatura) afirma. Um dos elementos que influem nesta tomada de
posição é a posição social do escritor
e que postura ele toma com sua literatura.
“Isto
quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não
apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade, (que
o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando
um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo
profissional e correspondendo a certas expectativas de leitores ou auditores”
(Candido, 1985: 74).
Também,
os críticos literários, que geralmente manipulam o cânone,
são responsáveis por estes valores. Afinal, são eles
que determinam os textos a serem passados pelas gerações,
influenciando o que o leitor travará contato. Estes textos podem
ser tanto de agregação, como de segregação.
“Sobretudo,
a história proposta pelos escritores-críticos modernos não
é a de um observador neutro; é a de alguém engajado
não apenas numa narrativa mas também numa ação
que faz prosseguir o próprio objeto da narrativa histórica”
(Perrone-Moisés, 1998: 59).
Todos estes
elementos servem como mediadores entre os leitores e a literatura. Não
podemos esquecer que desempenhando papel-chave nesta mediação
encontra-se ainda a escola. Dentro destas questões, seria ideal
que as instituições de ensino tivessem como finalidade transmitir
o poder libertador da literatura a todos. São estas as expectativas
em relação ao processo de educação.
“(...) ler seria o modo por excelência de exercício
do poder modificador do livro e do impresso; por essa razão, teria
sempre um poder emancipador para o indivíduo e constituiria sempre
um fator de democratização social. Essa crença no
papel - e no valor - educativo, formador e emancipatório da leitura
termina por constituir os estudos sociais a seu respeito como expressão
de uma ética do direito à leitura e, assim, como um instrumento
de uma política para a criação ou reforço,
junto às populações estudadas, das crenças
e dos valores que estariam em sua origem” (Batista e Galvão,
1991: 16).
Porém,
a escola também sofre com as relações de poder e
acaba funcionando como uma reprodutora da ideologia dominante. Notamos,
conseqüentemente, que estas relações acabam por atingir
a maior parte dos estudantes brasileiros, em sua maioria oriundos da classe
dominada. Estes resultados tornam-se mais gritantes quando partimos para
o processo de educação estatal.
“Para
garantir a reprodução das relações de produção,
o que significa garantir a existência das classes sociais com seu
respectivo relacionamento de dominação e subordinação
econômica, política e ideológica, as classes dominantes
utilizam-se do Estado, que nada mais é que um instrumento de repressão
assegurador da dominação da primeira sobre a classe operária”
(Nosella,1981:24).
Se, no entanto,
parece contraditório que as instituições de ensino,
responsáveis pela educação e por seu poder emancipatório,
cada vez mais contribuam para a repressão dos estudantes, estas
noções se tornam claras quando pensamos que a burguesia
aproveita-se deste discurso para manter seu domínio social.
“Em
resumo, a classe burguesa dominante expressa os princípios de liberdade,
igualdade e fraternidade universais, quando, na realidade, promove uma
práxis antilibertadora, antiigualitária e antifraterna.
Para sustentar este tipo de ação opressora, é preciso
elaborar um discurso ideológico, que mistifique tal contradição.
Tal discurso ideológico poderia ser resumido da seguinte forma:
os indivíduos que compõem a comunidade nacional, são
apresentados, neste discurso ideológico, como tendo uma igual e
livre participação na vida social, econômica e política,
permanecendo, entretanto, sob a égide das classes dominantes, que
são consideradas como encarnando a vontade popular” (Nosella,1981:28).
Não
devemos esquecer ainda que são nestas implicações
sobre o sistema escolar que se encontra o livro didático. Responsável
por direcionar os trabalhos efetuados em sala de aula, o livro didático
oferece propostas que seguem uma linha dependente ao pensamento (e ideologia)
de seu autor, que geralmente objetivam a um determinado tipo de atitude
do leitor.
“(...)
se nas sociedades organizadas sobre a base do modo de produção
capitalista, as escolas desempenham, primordialmente, embora não
exclusivamente, a função de inculcação da
ideologia dominante, então, nessas sociedades, o livro didático
é introduzido nas escolas com a função precípua
de veicular a ideologia dominante” (Nosella,1981:13).
É aqui que aparece nosso trabalho, que tem a intenção
de verificar, em diferentes livros didáticos do ensino médio,
como se estruturam as visões dos diferentes autores a respeito
da literatura, das obras (no nosso caso, escolhemos como referência
a obra de Graciliano Ramos) e do próprio objetivo do livro em relação
ao seu leitor.
Passo a passo
Segundo
Foucault, “todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. (Souza,
1995: 18)
Sendo assim, tentamos verificar em nossa análise, como diferentes
autores fazem uso da obra de Graciliano Ramos em sua atividade pedagógica.
A escolha do autor tem uma origem justificada, já que em sua maioria,
as obras de Graciliano Ramos retratam um contexto social repressor. Por
se encontrar após a geração modernista, que já
havia finalmente se livrado das amarras do colonialismo, e por se encontrar
na geração de 30, que retratava um contexto social brasileiro
(e mundial) onde figuravam inúmeras crises, as obras de Graciliano
Ramos são um bom referencial de pesquisa para as diferentes concepções
ideológicas dos autores dos livros didáticos.
Com este objetivo pretendemos analisar as obras Português: linguagens,
Vol. III, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães;
Literatura: história e texto 3, de Samira Youssef Campedelli e
Português: novas palavras: literatura, gramática, redação,
de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio.
Seguindo uma análise comparativa e de discurso, a intenção
é correlacionar estes materiais didáticos, com o intuito
de perceber seus particulares modos de leitura:
“E,
assim, indefinidamente, haverá modos diferentes de leitura, dependendo
do contexto em que se dá e de seus objetivos. De certa forma, é
de suas condições de produção que estamos
falando” (Orlandi, 1996: 10).
No primeiro
material, o espaço dedicado à apresentação
do autor Graciliano Ramos é composto por 7 páginas. Em um
primeiro momento, os autores tratam de explicar o contexto no qual pode
se formar “o romance de 30”. É interessante observar
que os autores apresentam este tipo de romance como uma literatura que
se volta mais para a “realidade”, para “analisá-la”
ou para “denunciá-la”.
O livro, primeiro, explicita o momento de crise no qual o Brasil estava
inserido naquele momento, depois expõe a herança dos modernistas
de 22 (ainda que a ligação com a nova geração
esteja um pouco supérflua) e por último, retoma os caminhos
da geração de 30.
Após esta contextualização, o material, traz uma
pequena biografia de Graciliano Ramos, ligando sua vida, inclusive com
algumas de suas obras (principalmente com o romance de memórias
Memórias do Cárcere e de suas crônicas de visita à
URSS, Viagem). Assim, começa a apresentar a obra completa de Graciliano
aos leitores, fazendo algumas referências às principais obras.
O interessante destas páginas (154-155) é que nelas se encontram
pequenos boxes, com referências de Antonio Candido a Graciliano
Ramos e de indicação de uma obra mais recente (de 1998)
de um autor contemporâneo que segue uma linha parecida a do autor.
Após as considerações iniciais, os autores, fazem
um pequeno resumo de São Bernardo, para logo em seguida inserir
um trecho da obra. O texto escolhido aborda uma questão mais psicológica,
ainda que contenha referências de Graciliano Ramos a algumas questões
sociais. De novo, paralelo a este texto, há um Box, com uma consideração
de Candido sobre São Bernardo.
Nas propostas de exercícios, a maior parte deles trata sobre a
interpretação literal do texto. Os exercícios pedem
características das personagens, formas da obra e interpretações
de trechos em específico. Apenas em uma das questões, os
autores colocam uma questão sobre a opinião da personagem
principal em relação ao capitalismo, no trecho abordado.
Vale ressaltar que, nesta questão há uma pequena explicação
sobre algumas idéias de Karl Marx, em relação ao
valor de troca e o valor de uso, assim como a reificação
das relações humanas.
Para finalizar os estudos, os autores indicam a leitura de algumas obras
como leitura extraclasse e reproduzem um pequeno trecho de Vidas Secas.
É interessante perceber que a referência com o presente,
para que o aluno perceba os contrastes sociais em seu cotidiano, é
quase nula, ainda que dê indicações com a questão
observada. Também, os autores se detém na análise
das duas obras mais comentadas pelos críticos: São Bernardo
e Vidas Secas.
Já a obra Literatura: história e texto 3, de Samira Youssef
Campedelli, dedica a Graciliano Ramos 8 páginas. Em um primeiro
momento, a autora coloca um pequeno resumo da biografia de Graciliano.
No entanto, nesta biografia, não há nenhum dado que faça
o leitor pensar em como era vida do autor que escreveu Vidas Secas. Ela
começa o texto com “Aos 18 anos, Graciliano Ramos foi viver
no Rio de Janeiro, onde trabalhou nos jornais Correio da Manhã,
A Tarde e O Século”. A autora não dá indicações
de onde ele era antes (se ele foi viver no Rio de Janeiro), nem o que
fazia antes. Depois fala que Graciliano voltou a sua terra natal, mas
não coloca nenhuma relação entre os acontecimentos.
Em uma de suas frases a autora coloca “Apaixonado por educação,
Graciliano Ramos não conseguiu permanecer muito tempo em cargos
políticos”, trazendo ao aluno desatento, um significado equivocado:
como se por incompetência do escritor, ele não conseguisse
trabalhar com educação e não colocando a situação
como um fator natural do andamento de sua vida. Quando a autora comenta
que Graciliano foi preso por nove meses, nem sequer menciona a obra Memórias
do Cárcere. Aliás, a biografia não tece nenhuma relação
com as obras do autor.
Quando Campedelli apresenta as obras do autor sergipano, o resultado é
ainda pior. “os temas de Graciliano são rudes, dolorosos...”
(grifo nosso). Qual o aluno gostaria de ler sobre um tema doloroso?
Também coloca que nas obras do autor, a exploração
das personagens segue a linha “o homem é o lobo do homem”,
sem nem sequer contextualizar este termo. Também coloca que nas
obras do autor resta “para o intelectual que pensa a angústia
ou a prisão”. Só o intelectual que pensa? O sertanista,
o cabra, não? Quer dizer, que o estudante, também pensante
vai ler uma obra em que o pensante sofre? Para quê?
“Não encontraremos em suas obras um ambiente de festas e
alegrias, mas fome, desespero e opressão”, refere-se a autora,
esquecendo que estes sentimentos retratam uma condição da
personagem. E ainda coloca: “Graciliano faz (grifo nosso) desses
temas uma obra de arte, com textos bem construídos, que figuram
entre os melhores da literatura brasileira”. Talvez o aluno que
pudesse perceber o absurdo desta afirmação, chegaria a conclusão
de que Graciliano Ramos é um aproveitador da miséria humana.
Mais uma vez, quando compara a obra de Graciliano Ramos com a de Jorge
Amado, a autora é infeliz: “Se a sociedade brasileira é
representada por Jorge Amado de forma saborosa e colorida – mesmo
quando criticava os poderosos - Graciliano Ramos faz uma crítica
dura...”. Se a obra de Jorge Amado é tão saborosa,
para que o aluno vai ler uma obra chata de Graciliano?
Sobre a linguagem do autor, Campedelli afirma “procurava cortar
(grifo nosso) os excessos, enxugando os textos”. Graciliano, em
sua visão é um excêntrico e não um trabalhador
do texto, que busca com sua linguagem atingir certos efeitos, particularizando
sua literariedade. “Seus temas pediam um texto cortante, porque
a realidade que representava assim o solicitava”, afirma, esquecendo-se
de explicitar a qual realidade ela se refere.
Também quanto à linguagem do autor, Campedelli explica:
“com esse procedimento harmonizava a forma do romance aos temas
duros, secos e cortantes da realidade....”, ignorando que a linguagem
de Graciliano não intenciona “harmonizar” e sim, retratar.
Nas páginas 174 e 175, a autora apresenta a obra São Bernardo
ao estudante, sem nenhuma reflexão. Reproduz ainda parte de um
trecho da obra (o mesmo que o do livro de Cereja e Magalhães),
As cinco perguntas de trabalho sobre o texto são todas reificadoras,
já que as questões abordadas são as sensações
do leitor acerca do narrador, identificação de trechos,
foco narrativo, entre outros. A única questão é de
reflexão sobre a colocação social que o narrador
faz.
Na página 177, a autora ainda apresenta Vidas Secas ao leitor,
explicitando mais as características do enredo. Depois de reproduzir
um trecho da obra, todas as questões referentes ao texto são
sobre a estrutura gramatical. Não há nenhuma reflexão
profunda proposta ao estudante, nenhuma relação com o presente
deste aluno.
Já na obra Português: novas palavras: literatura, gramática,
redação, de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo
Leite e Severino Antônio, as nove páginas sobre Graciliano
são um pouco melhor aplicadas. Também começando por
uma pequena biografia do autor, o livro traz uma correlação
de sua vida e de sua obra. Assim, dá-se a base para um resumo de
Vidas Secas, começando com uma citação de Lúcia
Miguel-Pereira, na obra Ficção e Confissão de Antonio
Candido, a respeito de tal romance. O interessante deste resumo é
que os autores vão tecendo os quadros de opressão sofridos
pelas personagens. Cada passagem vem seguida da indicação
da página onde se encontra tal assunto dentro do livro de Graciliano.
Para finalizar o resumo, os autores retomam algumas considerações
de Candido.
Nas páginas 200 e 201, encontra-se a reprodução de
um trecho de Vidas Secas, seguida de um comentário sobre a relação
entre o narrador e as personagens, explicando o porquê das escolhas
do autor.
Nos exercícios propostos, o material traz questões de vestibulares,
geralmente bem-escolhidos. Para exemplificar, em uma das questões
há um poema de Chico Buarque, uma charge de Henfil e um trecho
de Graciliano Ramos (Vidas Secas). A proposta é correlacionar estes
textos. Em um outro, há a diferenciação de uma obra
de Graciliano e de José de Alencar, explicitando as duas maneiras
diferentes de ver a realidade do povo brasileiro.
Seguindo esta linha, os exercícios trazem questionamentos interessantes,
colocando a obra mais perto da realidade do aluno e permitindo a ele reflexões
em relação à outras leituras.
Fim da Linha
Verificamos
neste trabalho como diferentes materiais didáticos apresentam diferentes
leituras das obras, tomadas por diferentes ideologias e com isto, diferentes
objetivos em relação ao leitor. Utilizando as definições
de Candido, a obra de Campedelli seria uma obra segregadora, que reifica
o aluno, reproduzindo os valores da classe dominante.
Já o livro didático de Amaral, Ferreira, Leite e Antônio
é uma obra mais agregadora, que propicia ao leitor o valor emancipatório
da literatura, enquanto que Cereja e Magalhães situam-se num meio-termo
entre os dois outros materiais didáticos.
Em nossa análise, pudemos confirmar que há a possibilidade
de se utilizar o livro didático (e portanto o sistema educacional)
com finalidades diferentes, dependendo apenas de questões políticas.
É função da sociedade optar que tipo de preparo quer
deixar às próximas gerações.
Por enquanto nos defrontamos ainda com um ensino precário, que
alimenta nossas diferenças sociais, e ajuda a reprimir cada vez
mais a classe dominada. Porém, sempre há direções
contrárias a este apontamento.
Escarpit coloca que “a educação é o cimento
do grupo social” (Escarpit (1969). Então, que este cimento
constitua vias seguras ao conhecimento de nossos alunos, para que cada
vez mais a estrada de chão árido dos retirantes nordestinos
fique apenas na ficção.
Bibliografia
BATISTA,
Antônio A. G. & GALVÃO, Ana Maria de O. Leitura –Práticas,
impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1985.
ESCARPIT, R. A sociologia da literatura. Lisboa: Arcádia, 1969.
LAJOLO, M. & ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita: Livro e literatura
no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1991.
NOSELLA, M.de L.C.D. As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos
didáticos. 3o ed. Coleção Educação
Universitária. São Paulo: Moraes, 1981.
ORLANDI, Eni P. Discurso & Leitura. Campinas: Editora da Universidade
de Campinas, 1998.
PERRONE-MOISÉS, L. Altas Literaturas: escolha e valor na obra crítica
de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, J.L. Palavras de crítica:
tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro:
Imago, 1992.
SOUZA, Adalberto de O. A ordem do discurso de Michel Foucalt. In: Apontamentos
Nº 29. Maringá: EDUEM, 1995.
LIVROS DIDÁTICOS
ANALISADOS:
AMARAL, Emília;
FERREIRA, Mauro; LEITE, Ricardo & ANTÔNIO, Severino. Português:
Novas palavras: literatura, gramática,redação. Vol.
3, Coleção Novas Palavras. Ensino Médio. São
Paulo: FTD, 1997.
CAMPEDELLI, Samira Y. Literatura: história e texto 3. 6º edição
reformulada. São Paulo: Saraiva, 1999.
CEREJA, William Roberto & MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português:
linguagens. Vol. III. 3o ed. Revista e ampliada. 6ª reimpressão.
Ensino Médio. São Paulo: Atual, 1999. |
|