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  OS RETIRANTES NO ENSINO MÉDIO: O CÂNONE, A IDEOLOGIA E O PAPEL DA ESCOLA NA OBRA DE GRACILIANO RAMOS

Carolina Beal Galina - Universidade Estadual De Maringá (UEM)

Primeiro passo: perna direita

Quando escolhemos algo, estamos deixando de lado inúmeras outras possibilidades para seguir por somente uma. Assim é a literatura. Quando pensamos em literatura, pensamos nos “clássicos”, no aprendizado de autores de obras consagradas, na nossa “boa instrução”, e por isto, necessariamente, estamos escolhendo.
Escolher é um ato que traz conseqüências: nem sempre o caminho que se toma é seguro, e às vezes é preciso parar e repensar a rota. Em literatura, os textos que “devem ser necessariamente lidos” também sofrem mudanças, dependendo do novo rumo a ser tomado. Estes textos considerados “boa literatura” são escolhidos devido a inúmeros fatores, quase todos determinados a certo contexto histórico e social.
Mas afinal, quem decide o caminho a ser tomado nesta incursão? Com que intenção? Estas são questões a serem abordadas neste trabalho que pretende analisar diferentes “rumos” tomados pelos livros didáticos do ensino médio quando abordam a obra de Graciliano Ramos. O estudo tem o intuito de descobrir que linhas regem os autores destes livros, além de determinar em quais paragens anda o aprendizado do aluno e como funciona a escolha do “melhor” caminho para descobrir o tesouro das obras.

Os caminhos percorridos

A escrita sempre foi uma forma de poder durante a história da humanidade. Quem detinha a prática da escrita se destacava dentro de seu grupo. O antigo escriba ou sacerdote era um ser inspirado, de destaque, que estava a serviço do poder. Aliás, na escrita ou no interior de qualquer formação cultural, as camadas dirigentes de uma sociedade se valem de diversas formas discursivas e as transformam em ideologia para assegurar o seu domínio. Assim, a literatura, por constituir-se de um sistema de escrita especial em nossa sociedade, também abriga estas relações de poder.
Quando lemos uma obra, nossa leitura está condicionada por nosso estatuto de classe, pelo nosso “gosto” pessoal, por nosso lugar ocupado no tecido social e por um dado momento histórico. O texto encontra-se inserido em uma teia complexa de códigos culturais, de convenções e de outros textos. Esses elementos todos estão contidos dentro de um meio.
Segundo Candido, “o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (1985:4). Ou seja, quando consideramos uma obra, nela encontram-se inerentes os fatores externos que influem em sua escrita.
Torna-se, portanto, indissociável a obra de um contexto histórico sócio-cultural. Para Candido, estes fatores são responsáveis mesmo pela formação da estrutura e da estética da obra, além de seu conteúdo:

“É o que vem sendo percebido ou intuído por vários estudiosos contemporâneos, que ao se interessarem pelos fatores sociais e psíquicos, procuram vê-los como agentes da estrutura, não como enquadramento nem como matéria registrada pelo trabalho criador; e isto permite alinha-los entre os fatores estéticos” (Candido, 1985:5)

É o fator social que explica muitas vezes a estrutura da obra e mesmo seu teor de idéias, fornecendo elementos para determinar a sua validade e o seu efeito sobre nós (Candido,1985) . Portanto, torna-se inevitável que devido à forte presença do contexto em uma obra literária, as relações de poder também permaneçam ativas no texto:

“Assim, a primeira tarefa é investigar as influências concretas exercidas pelos fatores sócio-culturais. É difícil discrimina-los, na sua quantidade e variedade, mas pode-se dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às técnicas de comunicação. (...) Assim, os primeiros se manifestam mais visivelmente na definição da posição social do artista, ou na configuração de grupos receptores; os segundos, na forma e conteúdo da obra; os terceiros, na sua fatura e transmissão” (Candido, 1985: 21).

É interessante perceber que em cada um destes fatores sociais, há uma implicação de poder. Uma certa classe dominante, para expressar sua ideologia, utiliza-se de um meio (no caso, a literatura), a fim de atingir o receptor (classe dominada). Todos estes fatores vão convergir na formação do cânone literário. Segundo Reis (1992:69), o critério de escolha destes textos segue o seguinte esquema: “numa dada circunstância histórica, indivíduos dotados de poder, atribuíram o estatuto de literário àquele texto (e não outro), canonizando-o”.

O caminho certo

O termo cânon vem do grego kanon, (espécie de vara de medir) e representa “norma” ou “lei”. Durante os primórdios da cristandade, o termo foi aplicado pelos teólogos para selecionar os textos que deveriam ser preservados na Bíblia, descartando os que não seriam utilizados. Logo, a idéia de cânon implica um princípio de seleção e exclusão, não podendo se desvincular do poder que o autoriza a isto.
Escarpit explica o cânone como uma forma intimamente ligada à literatura, já que esta é ensinada através destas obras sobreviventes ao tempo. Segundo ele, a produção literária resulta de um grupo de escritores “que, através dos séculos, é submetida a flutuações análogas às de todos os outros grupos demográficos...“ (Escarpit, 1969:51)
Para o autor, existem duas formas de passar adiante estas obras literárias. O primeiro seria fazer uma lista de todos os autores publicados num país durante um período e o segundo seria listar obras de “qualidade reconhecida” (Escarpit, 1969). A questão é que nenhum destes processos é satisfatório, já que o primeiro acrescentaria qualquer um que escreveu um livro e o segundo, seria composto por um processo de seleção e exclusão. Prevaleceu o segundo modelo.
O cânon tornou-se assim um perene e exemplar conjunto de obras, guardado como patrimônio da humanidade, que preservado para as futuras gerações, ensinaria o que é a “boa literatura”. Mesmo o conceito de literatura, que surgiu com a ascensão da burguesia, é influenciado pela questão do cânone literário, já que a literatura seria o campo onde a beleza (estética) destes textos poderia ser contemplada a salvo das mazelas do capitalismo. Assim, o cânon enaltecia um certo tipo de escrita, peculiar às elites educadas, desprezando outras formas da cultura popular. (Reis, 1992)
Atualmente, apesar de ser comum o consenso de que o cânone é formado principalmente por questões políticas e não somente devido à qualidade dos textos, estas escolhas continuam sendo perpetuadas em instituições de ensino. O conjunto de obras que “devem ser lidas”, originárias de autores, em sua grande maioria, brancos, europeus, homens e pertencentes a uma alta classe social, continuam figurando entre os livros didáticos e os cursos universitários.
Sendo assim, o cânone se presta ainda hoje a consolidar a hegemonia das elites letradas, reforçando a divisão social, transformando o discurso de uma classe em discurso de toda uma sociedade.
Por isto torna-se importante perceber como o cânon é reproduzido e como circula na sociedade.

Andando em círculos

No Brasil, a literatura, desde a ocupação de nosso território, foi utilizada para reforçar o domínio português. Era a literatura principalmente que transmitia os valores europeus aos colonizados, no intuito de dominá-los. Nenhuma imagem é mais demonstrativa de tal situação do que a catequização dos índios.
Porém é no projeto de independência que as elites brasileiras finalmente firmam a tradição da leitura e escrita como prática social no Brasil, afinal é este aparato cultural que favorece o programa nacionalista em curso, beneficiando-se dele. Foi nesta época, que surgiu, apoiada pela literatura da geração romântica, a idéia do “verdadeiro brasileiro”. Apesar disto, o espírito nacional não trouxe a democratização da educação e o grande número de analfabetos continuou durante muito tempo à mercê da dominação dos letrados. (Lajolo e Zilberman , 1991)
Vê-se claramente que a literatura brasileira e as instituições de ensino, sempre estiveram impregnadas da ideologia dominante, seja a do colonizador português, seja da elite brasileira. A reforma burguesa prometida pela classe elitista, democratizando a cultura, de fato, nunca aconteceu. Por isto, segundo Lajolo e Zilberman (1991:7), “num país como o Brasil, em que os problemas de circulação e leitura de obras literárias começaram com a ocupação do território e arrastaram-se até hoje, parece oportuno investigar as formas de inserção social da literatura”.
Logo, a educação como um processo emancipatório, ainda hoje sofre com alguns questionamentos:

“Como dar certo em países como o Brasil, periféricos e dependentes, onde o processo de aburguesamento não se completa nunca, ou dizendo de outra maneira, onde o aburguesamento concretiza-se apenas parcialmente em alguns segmentos sociais, deixando outros inalterados?” (Lajolo e Zilberman, 1991: 8-9).

Como se descobre um caminho

É importante perceber que inúmeros teóricos abordam como a literatura pode ser uma prática libertadora, transmitindo o conhecimento. Candido considera que os elementos de produção de um texto – autor, obra e público – são fundamentais para a função social inserida na obra. Assim, através da implicação destes três elementos, ele divide a obra literária de duas formas: a de segregação e a de agregação. (Candido, 1985)
Assim, a arte de agregação é a que insere os leitores em uma comunidade, enquanto que a de segregação aumenta a divisão entre diferentes leitores.
Neste contexto, torna-se necessário notar qual ideologia a arte (e a literatura) afirma. Um dos elementos que influem nesta tomada de posição é a posição social do escritor e que postura ele toma com sua literatura.

“Isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade, (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas de leitores ou auditores” (Candido, 1985: 74).

Também, os críticos literários, que geralmente manipulam o cânone, são responsáveis por estes valores. Afinal, são eles que determinam os textos a serem passados pelas gerações, influenciando o que o leitor travará contato. Estes textos podem ser tanto de agregação, como de segregação.

“Sobretudo, a história proposta pelos escritores-críticos modernos não é a de um observador neutro; é a de alguém engajado não apenas numa narrativa mas também numa ação que faz prosseguir o próprio objeto da narrativa histórica” (Perrone-Moisés, 1998: 59).

Todos estes elementos servem como mediadores entre os leitores e a literatura. Não podemos esquecer que desempenhando papel-chave nesta mediação encontra-se ainda a escola. Dentro destas questões, seria ideal que as instituições de ensino tivessem como finalidade transmitir o poder libertador da literatura a todos. São estas as expectativas em relação ao processo de educação.

“(...) ler seria o modo por excelência de exercício do poder modificador do livro e do impresso; por essa razão, teria sempre um poder emancipador para o indivíduo e constituiria sempre um fator de democratização social. Essa crença no papel - e no valor - educativo, formador e emancipatório da leitura termina por constituir os estudos sociais a seu respeito como expressão de uma ética do direito à leitura e, assim, como um instrumento de uma política para a criação ou reforço, junto às populações estudadas, das crenças e dos valores que estariam em sua origem” (Batista e Galvão, 1991: 16).

Porém, a escola também sofre com as relações de poder e acaba funcionando como uma reprodutora da ideologia dominante. Notamos, conseqüentemente, que estas relações acabam por atingir a maior parte dos estudantes brasileiros, em sua maioria oriundos da classe dominada. Estes resultados tornam-se mais gritantes quando partimos para o processo de educação estatal.

“Para garantir a reprodução das relações de produção, o que significa garantir a existência das classes sociais com seu respectivo relacionamento de dominação e subordinação econômica, política e ideológica, as classes dominantes utilizam-se do Estado, que nada mais é que um instrumento de repressão assegurador da dominação da primeira sobre a classe operária” (Nosella,1981:24).

Se, no entanto, parece contraditório que as instituições de ensino, responsáveis pela educação e por seu poder emancipatório, cada vez mais contribuam para a repressão dos estudantes, estas noções se tornam claras quando pensamos que a burguesia aproveita-se deste discurso para manter seu domínio social.

“Em resumo, a classe burguesa dominante expressa os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade universais, quando, na realidade, promove uma práxis antilibertadora, antiigualitária e antifraterna. Para sustentar este tipo de ação opressora, é preciso elaborar um discurso ideológico, que mistifique tal contradição. Tal discurso ideológico poderia ser resumido da seguinte forma: os indivíduos que compõem a comunidade nacional, são apresentados, neste discurso ideológico, como tendo uma igual e livre participação na vida social, econômica e política, permanecendo, entretanto, sob a égide das classes dominantes, que são consideradas como encarnando a vontade popular” (Nosella,1981:28).

Não devemos esquecer ainda que são nestas implicações sobre o sistema escolar que se encontra o livro didático. Responsável por direcionar os trabalhos efetuados em sala de aula, o livro didático oferece propostas que seguem uma linha dependente ao pensamento (e ideologia) de seu autor, que geralmente objetivam a um determinado tipo de atitude do leitor.

“(...) se nas sociedades organizadas sobre a base do modo de produção capitalista, as escolas desempenham, primordialmente, embora não exclusivamente, a função de inculcação da ideologia dominante, então, nessas sociedades, o livro didático é introduzido nas escolas com a função precípua de veicular a ideologia dominante” (Nosella,1981:13).

É aqui que aparece nosso trabalho, que tem a intenção de verificar, em diferentes livros didáticos do ensino médio, como se estruturam as visões dos diferentes autores a respeito da literatura, das obras (no nosso caso, escolhemos como referência a obra de Graciliano Ramos) e do próprio objetivo do livro em relação ao seu leitor.

Passo a passo

Segundo Foucault, “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. (Souza, 1995: 18)
Sendo assim, tentamos verificar em nossa análise, como diferentes autores fazem uso da obra de Graciliano Ramos em sua atividade pedagógica. A escolha do autor tem uma origem justificada, já que em sua maioria, as obras de Graciliano Ramos retratam um contexto social repressor. Por se encontrar após a geração modernista, que já havia finalmente se livrado das amarras do colonialismo, e por se encontrar na geração de 30, que retratava um contexto social brasileiro (e mundial) onde figuravam inúmeras crises, as obras de Graciliano Ramos são um bom referencial de pesquisa para as diferentes concepções ideológicas dos autores dos livros didáticos.
Com este objetivo pretendemos analisar as obras Português: linguagens, Vol. III, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães; Literatura: história e texto 3, de Samira Youssef Campedelli e Português: novas palavras: literatura, gramática, redação, de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio.
Seguindo uma análise comparativa e de discurso, a intenção é correlacionar estes materiais didáticos, com o intuito de perceber seus particulares modos de leitura:

“E, assim, indefinidamente, haverá modos diferentes de leitura, dependendo do contexto em que se dá e de seus objetivos. De certa forma, é de suas condições de produção que estamos falando” (Orlandi, 1996: 10).

No primeiro material, o espaço dedicado à apresentação do autor Graciliano Ramos é composto por 7 páginas. Em um primeiro momento, os autores tratam de explicar o contexto no qual pode se formar “o romance de 30”. É interessante observar que os autores apresentam este tipo de romance como uma literatura que se volta mais para a “realidade”, para “analisá-la” ou para “denunciá-la”.
O livro, primeiro, explicita o momento de crise no qual o Brasil estava inserido naquele momento, depois expõe a herança dos modernistas de 22 (ainda que a ligação com a nova geração esteja um pouco supérflua) e por último, retoma os caminhos da geração de 30.
Após esta contextualização, o material, traz uma pequena biografia de Graciliano Ramos, ligando sua vida, inclusive com algumas de suas obras (principalmente com o romance de memórias Memórias do Cárcere e de suas crônicas de visita à URSS, Viagem). Assim, começa a apresentar a obra completa de Graciliano aos leitores, fazendo algumas referências às principais obras.
O interessante destas páginas (154-155) é que nelas se encontram pequenos boxes, com referências de Antonio Candido a Graciliano Ramos e de indicação de uma obra mais recente (de 1998) de um autor contemporâneo que segue uma linha parecida a do autor.
Após as considerações iniciais, os autores, fazem um pequeno resumo de São Bernardo, para logo em seguida inserir um trecho da obra. O texto escolhido aborda uma questão mais psicológica, ainda que contenha referências de Graciliano Ramos a algumas questões sociais. De novo, paralelo a este texto, há um Box, com uma consideração de Candido sobre São Bernardo.
Nas propostas de exercícios, a maior parte deles trata sobre a interpretação literal do texto. Os exercícios pedem características das personagens, formas da obra e interpretações de trechos em específico. Apenas em uma das questões, os autores colocam uma questão sobre a opinião da personagem principal em relação ao capitalismo, no trecho abordado. Vale ressaltar que, nesta questão há uma pequena explicação sobre algumas idéias de Karl Marx, em relação ao valor de troca e o valor de uso, assim como a reificação das relações humanas.
Para finalizar os estudos, os autores indicam a leitura de algumas obras como leitura extraclasse e reproduzem um pequeno trecho de Vidas Secas.
É interessante perceber que a referência com o presente, para que o aluno perceba os contrastes sociais em seu cotidiano, é quase nula, ainda que dê indicações com a questão observada. Também, os autores se detém na análise das duas obras mais comentadas pelos críticos: São Bernardo e Vidas Secas.
Já a obra Literatura: história e texto 3, de Samira Youssef Campedelli, dedica a Graciliano Ramos 8 páginas. Em um primeiro momento, a autora coloca um pequeno resumo da biografia de Graciliano. No entanto, nesta biografia, não há nenhum dado que faça o leitor pensar em como era vida do autor que escreveu Vidas Secas. Ela começa o texto com “Aos 18 anos, Graciliano Ramos foi viver no Rio de Janeiro, onde trabalhou nos jornais Correio da Manhã, A Tarde e O Século”. A autora não dá indicações de onde ele era antes (se ele foi viver no Rio de Janeiro), nem o que fazia antes. Depois fala que Graciliano voltou a sua terra natal, mas não coloca nenhuma relação entre os acontecimentos. Em uma de suas frases a autora coloca “Apaixonado por educação, Graciliano Ramos não conseguiu permanecer muito tempo em cargos políticos”, trazendo ao aluno desatento, um significado equivocado: como se por incompetência do escritor, ele não conseguisse trabalhar com educação e não colocando a situação como um fator natural do andamento de sua vida. Quando a autora comenta que Graciliano foi preso por nove meses, nem sequer menciona a obra Memórias do Cárcere. Aliás, a biografia não tece nenhuma relação com as obras do autor.
Quando Campedelli apresenta as obras do autor sergipano, o resultado é ainda pior. “os temas de Graciliano são rudes, dolorosos...” (grifo nosso). Qual o aluno gostaria de ler sobre um tema doloroso?
Também coloca que nas obras do autor, a exploração das personagens segue a linha “o homem é o lobo do homem”, sem nem sequer contextualizar este termo. Também coloca que nas obras do autor resta “para o intelectual que pensa a angústia ou a prisão”. Só o intelectual que pensa? O sertanista, o cabra, não? Quer dizer, que o estudante, também pensante vai ler uma obra em que o pensante sofre? Para quê?
“Não encontraremos em suas obras um ambiente de festas e alegrias, mas fome, desespero e opressão”, refere-se a autora, esquecendo que estes sentimentos retratam uma condição da personagem. E ainda coloca: “Graciliano faz (grifo nosso) desses temas uma obra de arte, com textos bem construídos, que figuram entre os melhores da literatura brasileira”. Talvez o aluno que pudesse perceber o absurdo desta afirmação, chegaria a conclusão de que Graciliano Ramos é um aproveitador da miséria humana.
Mais uma vez, quando compara a obra de Graciliano Ramos com a de Jorge Amado, a autora é infeliz: “Se a sociedade brasileira é representada por Jorge Amado de forma saborosa e colorida – mesmo quando criticava os poderosos - Graciliano Ramos faz uma crítica dura...”. Se a obra de Jorge Amado é tão saborosa, para que o aluno vai ler uma obra chata de Graciliano?
Sobre a linguagem do autor, Campedelli afirma “procurava cortar (grifo nosso) os excessos, enxugando os textos”. Graciliano, em sua visão é um excêntrico e não um trabalhador do texto, que busca com sua linguagem atingir certos efeitos, particularizando sua literariedade. “Seus temas pediam um texto cortante, porque a realidade que representava assim o solicitava”, afirma, esquecendo-se de explicitar a qual realidade ela se refere.
Também quanto à linguagem do autor, Campedelli explica: “com esse procedimento harmonizava a forma do romance aos temas duros, secos e cortantes da realidade....”, ignorando que a linguagem de Graciliano não intenciona “harmonizar” e sim, retratar.
Nas páginas 174 e 175, a autora apresenta a obra São Bernardo ao estudante, sem nenhuma reflexão. Reproduz ainda parte de um trecho da obra (o mesmo que o do livro de Cereja e Magalhães),
As cinco perguntas de trabalho sobre o texto são todas reificadoras, já que as questões abordadas são as sensações do leitor acerca do narrador, identificação de trechos, foco narrativo, entre outros. A única questão é de reflexão sobre a colocação social que o narrador faz.
Na página 177, a autora ainda apresenta Vidas Secas ao leitor, explicitando mais as características do enredo. Depois de reproduzir um trecho da obra, todas as questões referentes ao texto são sobre a estrutura gramatical. Não há nenhuma reflexão profunda proposta ao estudante, nenhuma relação com o presente deste aluno.
Já na obra Português: novas palavras: literatura, gramática, redação, de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio, as nove páginas sobre Graciliano são um pouco melhor aplicadas. Também começando por uma pequena biografia do autor, o livro traz uma correlação de sua vida e de sua obra. Assim, dá-se a base para um resumo de Vidas Secas, começando com uma citação de Lúcia Miguel-Pereira, na obra Ficção e Confissão de Antonio Candido, a respeito de tal romance. O interessante deste resumo é que os autores vão tecendo os quadros de opressão sofridos pelas personagens. Cada passagem vem seguida da indicação da página onde se encontra tal assunto dentro do livro de Graciliano. Para finalizar o resumo, os autores retomam algumas considerações de Candido.
Nas páginas 200 e 201, encontra-se a reprodução de um trecho de Vidas Secas, seguida de um comentário sobre a relação entre o narrador e as personagens, explicando o porquê das escolhas do autor.
Nos exercícios propostos, o material traz questões de vestibulares, geralmente bem-escolhidos. Para exemplificar, em uma das questões há um poema de Chico Buarque, uma charge de Henfil e um trecho de Graciliano Ramos (Vidas Secas). A proposta é correlacionar estes textos. Em um outro, há a diferenciação de uma obra de Graciliano e de José de Alencar, explicitando as duas maneiras diferentes de ver a realidade do povo brasileiro.
Seguindo esta linha, os exercícios trazem questionamentos interessantes, colocando a obra mais perto da realidade do aluno e permitindo a ele reflexões em relação à outras leituras.

Fim da Linha

Verificamos neste trabalho como diferentes materiais didáticos apresentam diferentes leituras das obras, tomadas por diferentes ideologias e com isto, diferentes objetivos em relação ao leitor. Utilizando as definições de Candido, a obra de Campedelli seria uma obra segregadora, que reifica o aluno, reproduzindo os valores da classe dominante.
Já o livro didático de Amaral, Ferreira, Leite e Antônio é uma obra mais agregadora, que propicia ao leitor o valor emancipatório da literatura, enquanto que Cereja e Magalhães situam-se num meio-termo entre os dois outros materiais didáticos.
Em nossa análise, pudemos confirmar que há a possibilidade de se utilizar o livro didático (e portanto o sistema educacional) com finalidades diferentes, dependendo apenas de questões políticas. É função da sociedade optar que tipo de preparo quer deixar às próximas gerações.
Por enquanto nos defrontamos ainda com um ensino precário, que alimenta nossas diferenças sociais, e ajuda a reprimir cada vez mais a classe dominada. Porém, sempre há direções contrárias a este apontamento.
Escarpit coloca que “a educação é o cimento do grupo social” (Escarpit (1969). Então, que este cimento constitua vias seguras ao conhecimento de nossos alunos, para que cada vez mais a estrada de chão árido dos retirantes nordestinos fique apenas na ficção.

Bibliografia

BATISTA, Antônio A. G. & GALVÃO, Ana Maria de O. Leitura –Práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985.

ESCARPIT, R. A sociologia da literatura. Lisboa: Arcádia, 1969.

LAJOLO, M. & ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita: Livro e literatura no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1991.

NOSELLA, M.de L.C.D. As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos. 3o ed. Coleção Educação Universitária. São Paulo: Moraes, 1981.

ORLANDI, Eni P. Discurso & Leitura. Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1998.

PERRONE-MOISÉS, L. Altas Literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, J.L. Palavras de crítica: tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

SOUZA, Adalberto de O. A ordem do discurso de Michel Foucalt. In: Apontamentos Nº 29. Maringá: EDUEM, 1995.

LIVROS DIDÁTICOS ANALISADOS:

AMARAL, Emília; FERREIRA, Mauro; LEITE, Ricardo & ANTÔNIO, Severino. Português: Novas palavras: literatura, gramática,redação. Vol. 3, Coleção Novas Palavras. Ensino Médio. São Paulo: FTD, 1997.

CAMPEDELLI, Samira Y. Literatura: história e texto 3. 6º edição reformulada. São Paulo: Saraiva, 1999.

CEREJA, William Roberto & MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. Vol. III. 3o ed. Revista e ampliada. 6ª reimpressão. Ensino Médio. São Paulo: Atual, 1999.

 
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