Simone Freitas da Silva Gallina - UNICAMP
É curioso como às vezes se diz que os filósofos
não têm estilo, ou que escrevem mal. Deve ser
porque não se os lê (Gilles Deleuze).
Ao analisarmos a inserção da filosofia nas
escolas percebemos que para os professores de filosofia a prática
de ensino adquiriu, na última década, uma conotação
mais teórica do que prática. A pretensão de ensinar
filosofia quase sempre é acompanhada de muitas dúvidas quanto
à condução das atividades na sala de aula. Muitas
vezes a demasiada preocupação com os conteúdos que
compõem a grade curricular e com o material a ser utilizado, acaba
deixando de resolver um outro componente importante para as atividades
de sala de aula, qual seja, o problema acerca do que vem a ser uma atividade
filosófica propriamente dita.
Pensamos que sem o esclarecimento dessa questão, qualquer conteúdo
ou qualquer posicionamento acerca da didática que orienta a prática
de ensino do professor, podem se tornar irrelevantes do ponto de vista
filosófico. Pois essa concepção sobre a atividade
filosófica não se reduz a uma mera aquisição
de uma habilidade por parte do professor, antes sim, pretende ser uma
concepção teórica que ultrapassa os limites da atividade
de sala de aula, não obstante seja fundamental para o desenvolvimento
de atividades em sala de aula.
Mas por que pensar a atividade filosófica assume tanta importância
no contexto atual do ensino de filosofia? Porque a importância dos
meios utilizados, a orientação didática e a participação
dos estudantes são fatores que estão subordinados a uma
atividade. Com essa questão pretendemos sinalizar com alguns aspectos
próprios à atividade filosófica e que não
deixam de orientar a prática de ensino em filosofia, pois do contrário
a prática de ensino acabaria perdendo a dimensão de experimentação
filosófica. Com isso também pretendemos contribuir para
que o professor possa pensar o que ele desenvolve em sala de aula, ou
seja, apontar algumas questões que o coloque em condições
de analisar e avaliar tanto o seu desempenho, quanto o desempenho dos
estudantes com os quais ele interage na sua prática docente.
Além disso, pensar acerca da atividade filosófica pode permitir
que o professor elabore um mapa da aula, descobrindo aspectos subjacentes
ao que se realiza nela, aspectos estes que em muitas situações
são decisivos para o bom desenvolvimento das atividades que aí
se praticam. Pois, dificilmente se pode fazer uma avaliação
conseqüente da prática cotidiana de sala de aula, para a qual
inclusive contribuem certas atitudes dos estudantes, sem uma referência
teórica mais geral do que orienta o ensino-aprendizagem em filosofia.
Ao defendermos que o professor deve estar apoiado numa concepção
acerca da atividade que ele irá exercer em sala de aula, não
estamos somente reivindicando que o planejamento de suas atividades em
sala de aula deva estar orientado por uma teoria, mas que a mesma se apresenta
como uma instância que justifique e legitime a sua atividade pedagógica.
A exigência de que o professor precisa ter uma teoria sobre o fazer
filosófico é imprescindível para a sua prática
docente, do mesmo modo que pensamos ser imprescindível para todos
aqueles que pretendem pensar os problemas a partir da filosofia. Mas em
que consiste propriamente a atividade filosófica? Inicialmente
podemos dizer que ela se constitui de dois componentes principais: a leitura
e a escrita. Destas duas pretendemos examinar mais detidamente o caso
da leitura.
Para pensar as questões da atividade filosófica a partir
da leitura, enquanto componente indispensável para o diálogo
com a tradição argumentativa na qual se desenvolve a criação
filosófica, será preciso identificar os vínculos
que compõem a atividade do filosofar e as relações
com os conteúdos datados pela escritura fixada na História
da Filosofia. Neste sentido, realizaremos um recorte mediante o qual limitaremos
as questões de cunho filosófico acerca da leitura, e sua
vinculação com a capacidade de realização
de uma atividade de experimentação criativa em relação
aos conceitos pensados no interior da filosofia.
A atividade filosófica caracteriza-se enquanto um processo construtivo
cujos pólos da experimentação são a invenção
de problemas e as suas soluções, a qual também é
denominada de criação conceitual. Este processo inventivo
pressupõe o texto como fonte de uma atividade de produção
de sentido, e não somente como uma atividade do pensamento que
se limita a imitar aquilo que fora pensado. Nisso reside a importância
da leitura, a qual está intimamente relacionada com a aprendizagem
em filosofia, pois esta aprendizagem não pode ser levada a cabo
sem a decifração e a interpretação dos signos.
Devires da atividade filosófica
A atividade de leitura compõe um universo de experimentação
dos problemas filosóficos e, em grande medida, possibilita o desenvolvimento
de um estilo. Gilles Deleuze afirma que a atividade filosófica
deve ser contrária às práticas que apenas imitam
e simulam a constituição de problemas. Sendo neste sentido
a leitura filosófica uma dimensão imprescindível
para o fazer filosófico, um exercício de um modo de existência
que dá ao sujeito condições de reconciliar-se com
a solidão. Ao afirmarmos a importância da solidão
para a atividade de criação, estamos reconhecendo que o
exercício do estilo filosófico estabelece as condições
para o encontro, para a captura do desconhecido no próprio pensar.
Na experimentação que a leitura possibilita também
há uma aprendizagem de como devemos lidar com a dimensão
existencial, na qual nos deparamos em contato com o texto a ser lido,
apreendido e compreendido. Por mais que diversas vezes o leitor seja tomado
por um constrangimento ao identificar algumas limitações
na sua atividade de leitura, seja por não conseguir constituir
um estilo filosófico de abordagem dos conceitos, ou por ter problemas
em relação a construção argumentativa do texto,
ainda assim é fundamental que o leitor saiba a relevância
da leitura e a relevância de si próprio como um autor em
potencial, alguém que tem a elaboração textual como
um devir.
A leitura em filosofia intensifica uma descoberta de territórios
povoados por conceitos, que criam incessantemente os limites, as fronteiras,
os caminhos que indicam coordenadas ainda não pensadas. Disponibilizando
um universo novo, no qual se inscrevem as marcas de futuras criações
filosóficas, os textos apresentam traçados, uma textura
virtual que pode ser atualizada conceitualmente. Essa idéia do
texto filosófico como uma trama virtual, permite-nos pensar a atividade
filosófica enquanto possibilidade da novidade. Sendo assim, os
acontecimentos filosóficos estariam intimamente relacionados com
a elaboração de uma teia conceitual, produzida a partir
da atualização daquilo que nos textos se apresenta apenas
de modo virtual.
A atividade filosófica representada no esforço imposto pela
leitura implica a revelação dos alcances e dos limites do
próprio saber e, conseqüentemente, da ignorância. Mas
a ignorância aqui pensada não pode ser tomada num sentido
negativo, antes sim, positivamente, ou seja, como aquilo que vai ser transformado
num fazer filosófico.
Nisto parece residir o pleno sentido da pesquisa, a constante busca pelas
fissuras, pois é a partir delas que se delineia e se constrói
os sentidos que indicam o ensino e o aprendizado dos modos de existência,
constituídos a partir do agenciamento de outros modos de existência.
Pois do contrário, a leitura em filosofia pode tão somente
tangenciar os limites impostos pela História da Filosofia, enquanto
fonte do agenciamento de tais modos. Tomada neste preciso sentido, apenas
como revelação de algo que não se toma como material
para novas construções, os textos que representam um índice
da história da filosofia perdem sua riqueza virtual, sua disponibilidade
como fonte de novas atualizações.
Segundo Deleuze, a História da Filosofia tem exercido para muitas
gerações, inclusive a dele, um caráter opressor que
muitas vezes não permitiu ao estudante desenvolver as condições
de criação, de agenciamento das multiplicidades que constituem
os textos de filosofia. Mas, essa constatação negativa em
relação ao papel exercido pelos textos de filosofia é
o que permite ver o quão significativas são a leitura e
a escrita como atividades filosóficas inerentes a História
da Filosofia. Sem elas talvez a atividade filosofia seria tão somente
uma reprodução da própria Filosofia (Deleuze, 1988,
p.19). A leitura enquanto uma atividade filosófica possibilita
ao sujeito mover-se no turbilhão dos fluxos e intensidades que
tangenciem os enunciados e as práticas discursivas. Intensidades
que muitas vezes são imperceptíveis, como as que perpassam
a memória, a lembrança e o esquecimento do que pensamos
e de como pensamos.
A atividade filosófica enquanto modo de existência representa
a possibilidade da criação de conceitos e a destruição
de preceitos que controlam as condições da vida. A leitura,
por sua vez, é uma prática que tem como finalidade instalar
uma descontinuidade nos arranjos da história do pensamento, à
medida que ela é um fluxo de devires que são meio para uma
vida mais que pessoal. Esta descontinuidade deve permitir que se desenvolvam
práticas pedagógicas com o intuito de estabelecer uma noção
de vida que reconheça que “o objetivo da escritura é
o de levar a vida ao estado de uma potência não pessoal”
(Deleuze; Parnet, 1998, p.63).
Deste modo, a partir das noções de modo de existência,
leitura e práticas pedagógicas, aliadas as noções
de devires e descontinuidade será relevante pensarmos as condições
sob as quais a atividade filosófica pode ser concebida nos processos
formativos, e conseqüentemente, estabelecer as razões pelas
quais é imprescindível à filosofia um saber sobre
as condições da sua prática.
Do que foi exposto até aqui, certamente alguém poderá
objetar que o ensino e o aprendizado da leitura não é uma
tarefa que compete aos filósofos. Certamente se falamos de leitura
num sentido geral essa objeção parece ter sentido, contudo,
se a leitura pode ser pensada como uma atividade que se exerce num determinado
domínio do saber, nesse caso específico, o filosófico,
essa objeção parece perder a sua importância. Por
mais banal que possa parecer, a leitura é intrinsecamente relacionada
à produção em filosofia, ou seja, ela se constitui
enquanto o desenvolvimento de um dos elementos que compõem a própria
atividade filosófica. A atividade filosófica segundo Deleuze
e Guattari implica na criação de conceitos e, neste sentido,
o processo de engendramento da criação conceitual implica
a leitura, como uma instância fundamental para a atividade filosófica.
Sem leitura não há problemas e sem problemas não
há criação conceitual, pois os conceitos são
elaborados a partir da solução dos problemas.
Ocorre que o texto em si mesmo não pode ser visto como constituído
de problemas independente da leitura, ao contrário, é a
leitura efetivamente que constitui os vetores e estes permitem a atualização
de problemas, idéias e sentidos. Sendo assim, torna-se relevante
compreendermos de que maneira o texto se apresenta como uma condição
para os processos de subjetivação; da mesma forma que se
torna relevante compreender como a leitura pode encontrar os silêncios
latentes, as rupturas, os vetores indispensáveis para a criação
conceitual. Se pensarmos que a atualização de problemas
e das suas soluções tem a ver com a constituição
de um campo de forças, do qual emerge o processo de criação
conceitual, permitindo assim a emergência dos acontecimentos filosóficos,
então tem sentido dizer que é a leitura que permite a instauração
desse campo de forças, que é por seu intermédio que
se coloca o problema inicial.
Uma vez realizada, a leitura sai do plano de identificação
para um plano de distanciamento, o qual somente é possível
mediante a construção de um deslocamento textual. Um deslocamento
que se dá a partir da relação do leitor com o texto.
Contudo, seria trivial se pensássemos que um tal deslocamento consistisse
tão somente numa abstração feita pelo leitor, sequer
pode ser indicado como uma recognição, visto que toda recognição
pressupõe algo que apesar de possuir uma identidade própria,
algo pronto que pode servir de objeto para o pensamento. O texto não
pode ser visto como contendo possíveis, pois aquilo que é
possível já contém uma identidade própria,
algo pronto e acabado a espera de alguém que o traga a realidade,
visto que o possível é carente de realidade de existência.
Ao contrário, se pensarmos que o texto contém virtualidades,
o pensamos como portador de uma realidade que pode ou não ser atualizada,
dependendo evidentemente da atividade exercida por aquele que o lê.
Com isto evitamos pensar o texto como algo que pertence a uma temporalidade
circunscrita entre o presente e o passado, como se o texto fosse o depósito
de coisas prontas. O texto e a textura que o compõe são
reais, apenas não são atuais. Esta distinção
entre uma ordem lógica e uma ordem real é fundamental para
entendermos a atividade de leitura. Por quê? Porque se aquilo que
o texto contém fossem possíveis e não virtuais, então
estaria vedada à leitura a criação, sendo ela somente
uma atividade de análise e polimento de algo já estabelecido.
Parafraseando Nietzsche, com a leitura estaríamos às voltas
polindo cadáveres, jamais criando conceitos a partir dos problemas
que ela suscita.
O texto é devir, é composto por densas camadas de virtualidades,
cuja atualização não pode ser possível sem
mediante uma atividade, uma atividade de atualização, enfim,
pela leitura. Neste sentido, as práticas de leitura assumem uma
nova dimensão, engendram um processo de criação conceitual.
Engendram uma autoria que, mesmo não se desprendendo das amaras
da tradição a qual o texto remonta, ainda assim se apresenta
como uma atividade de criação. A leitura de um texto consiste
num encontro com signos, numa atividade que é constantemente guiada
pelas forças atualizáveis, forças que servem como
indicadores, como caminhos que apontam para novos territórios.
O texto para Deleuze é um objeto para ser amassado, torcido e rasgado.
Segundo ele, a relação leitor/autor e texto deve ser uma
relação de captura e de roubo (cf. 1998, p.11). Ler é
desdobrar aquilo que no texto somente se apresenta como um vetor. A leitura
de um texto enseja outros textos, signos, imagens, desejos, que dão
direções ao nosso pensamento. Por isso, diz Deleuze, “a
boa maneira para se ler hoje, porém, é a de conseguir tratar
um livro como se escuta um disco, como vê um filme ou um programa
de televisão, como se recebe uma canção: qualquer
tratamento do livro que reclamasse para ele um respeito especial, uma
atenção de outro tipo, vem de outra época e condena
definitivamente o livro” (Deleuze; Parnet, 1998, p.11). O texto
é um acontecimento, traz consigo virtualidades que, uma vez atualizadas,
contribuem para a (re)criação de significações.
A leitura consiste num processo pelo qual inventamos problemas, estabelecemos
tendências, organizamos signos suscetíveis de novas interpretações
e de novas inquietações. Ler é agenciar, pois é
no e pelo agenciamento que produzimos os enunciados que compõem
o texto: “O enunciado é o produto de um agenciamento, sempre
coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de nós,
populações, multiplicidades, territórios, devires,
afetos, acontecimentos” (Deleuze, 1998, p.65). O texto se caracteriza
pelas fissuras, cortes e rupturas, as quais, a partir da ação
do leitor, podem-se constituir em agenciamentos de intensidades, de forças
que povoam a Filosofia.
Compreender a Filosofia enquanto uma atividade que se dá no interior
dos processos de leitura, enquanto atividade de atualização
e virtualização de conceitos, implica reconhecer uma necessária
ruptura nas práticas canônicas da formação
do leitor-filósofo. Pois muitas vezes o leitor é tomado
por um constrangimento frente ao que já foi pensado, sendo muitas
vezes levado a acreditar que o texto que se apresenta não é
fonte de novas elaborações, novas configurações
argumentativas e/ou problematizadoras. Esta nova relação
leitor/autor/texto deve representar uma relação na qual
o texto serve para o leitor como uma fonte de possíveis problemas.
Por isso o texto é fundamental para a Filosofia, independente de
sabermos ou não o que pode confere ao texto uma perspectiva filosófica.
Posto deste modo, nada parece ser mais significativo do que propor enquanto
atividade filosófica aquilo que se apresenta como uma exigência
propriamente filosófica: produzir acontecimentos através
da leitura, criar conceitos a partir de problemas. Ainda mais significativo
é fazer com que os estudantes reconheçam que o texto porta
vetores, velocidades e fluxos, reconheçam que a atividade filosófica
é uma atividade de criação, numa eclosão de
novas dimensões. Mostrar que a formação filosófica
não pode ser pensada como um processo de imitação,
de repetição, que ela jamais está condicionada ao
Mesmo.
Pensar a atividade filosófica como uma atividade de leitura, é
pensar que ela não é apenas um instrumento didático,
mas uma condição efetiva para as novas dimensões
da atividade do pensamento. Por essa razão é necessário
superar a tendência de ver a leitura como uma decifração
de códigos, pois é impossível que apenas os códigos
não portam os vetores e as forças próprias à
criação. Como diz Deleuze, os códigos não
têm o poder de “fazer com que alguma coisa em mim se mexa”
(1992, p.15). Para que isso de fato aconteça, será preciso
que a leitura seja orientada pela intensidade do acontecimento que se
dá a partir do texto, pelas forças que emergem no processo
de atualização.
Quando falamos que existem forças que emergem da leitura e que
as mesmas transbordam a própria textualidade, estamos falando daquilo
que acompanha a criação, pois não se cria nada sem
que haja uma força para tal. Não importa que às vezes
essas forças produzam silêncios e, noutras vezes, dêem
origem a verdadeiros turbilhões. O mais significativo é
que a leitura expressa devires e não modelos a imitar: “jamais
imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo” (Deleuze; Parnet,
1998, p.10). Ou seja, a atividade filosófica deve ser vista como
uma atividade que intensifica descobertas. Mas o que se descobre por seu
intermédio? Descobre-se novos territórios povoados por conceitos.
Leitura e pedagogia filosófica
Um dos problemas da pedagogia filosófica parece
advir da instituição de dois diferentes domínios
filosóficos, a saber, o da atividade filosófica e o da prática
do ensino da filosofia. Mesmo sendo lugar comum a defesa do caráter
indissociável da atividade filosófica e do ensino de filosofia,
é difícil não reconhecer que há entre eles
uma significativa dicotomia. Se levarmos em conta as atividades dos que
se ocupam da filosofia nas academias, é possível perceber
a primazia de um modelo de atividade voltada para a produção
filosófica escrita. Mantida as devidas exceções,
a vida acadêmica nos cursos de filosofia se desenvolve a partir
de atividades que priorizam os trabalhos teóricos, quer seja de
leitura, quer seja de investigação.
A própria tradição filosófica poderia ser
utilizada para ilustrar uma certa primazia das atividades teóricas
em relação às atividades práticas (entendida
neste contexto como atividades de ensino). Contudo, essa notória
distinção estabelecida entre a filosofia e seu ensino, também
indica a origem de sérios problemas para a efetivação
do próprio ensino como atividade filosófica. Pois, se levarmos
às últimas conseqüências essa diferença,
vamos encontrar o que caracteriza a atividade do filósofo e a do
professor de filosofia. O primeiro poderia ser pensado como um especialista,
alguém cuja atividade e esforço próprio lhe permitiu
um alto grau de compreensão racional, uma capacidade para tratar
dos conceitos e das teorias filosóficas. O segundo poderia ser
pensando como aquele cuja atividade é filosoficamente inferior
a do filósofo, alguém que sempre lida com as mediações;
aquele que procura adaptar a filosofia às condições
contextuais do seu ensino.
Se tomarmos como exemplo um professor que leciona filosofia numa escola
onde os estudantes apresentam limites quanto o interesse pela leitura,
a motivação para o estudo, etc, veremos que esse contraste
não parece ser tão fantasioso quanto poderia parecer à
primeira vista. Essa situação não é somente
característica do ensino médio, ela também é
vivenciada pelos professores que lecionam nos cursos de licenciatura,
pois é própria da singularidade do contexto de sala de aula
a existência de fatores que se apresentam como limites à
efetivação do ensino de filosofia. Ela revela uma complexidade
inerente ao ensino de filosofia e, sobretudo, as dificuldades que os professores
de filosofia enfrentam nas escolas do ensino médio, onde os estudantes
sequer vêem a filosofia como uma futura perspectiva profissional.
Se acrescentarmos à atividade do professor de filosofia do ensino
médio os limites quanto ao uso da linguagem filosófica,
os limites em relação à compreensão da história
da filosofia, indispensável como ponto de referência para
as discussões em aula, veremos que as dificuldades em relação
ao ensino de filosofia se tornam ainda maiores.
Por um lado, o professor poderia assumir a tarefa de ensinar filosofia
sem levar em consideração as condições impostas
pelos limites inerentes ao contexto de sala de aula. A fidelidade à
filosofia e aos procedimentos e discursos que coordenam os trabalhos de
investigação e de produção filosófica,
pode fazer com que aquilo que o professor ensina seja algo que os estudantes
não estejam preparados para entender. O professor que não
se atém aos limites que normalmente caracterizam o ensino de filosofia,
apenas irá proceder conforme o rigor próprio da investigação
e da produção filosófica. O seu discurso poderá
se encaminhar para um grau de especificidade e precisão tais, que
não será mais possível aos estudantes acompanharem
aquilo que ele apresenta em sala de aula. A ausência das devidas
mediações poderá fazer com que os estudantes se tornem
apenas meros expectadores, cuja atitude para com aquilo que o professor
apresenta, poderá oscilar entre o fascínio e o desinteresse.
Esse posicionamento do professor frente ao ensino de filosofia pode resultar
em brilhantes apresentações sobre filósofos ou sobre
temas filosóficos, nas quais ele poderá demonstrar o domínio
dos conteúdos e dos procedimentos filosóficos. Se as técnicas
de apresentação forem adequadas, o professor poderá
no máximo lograr êxito em relação ao ‘acúmulo’
dos conteúdos por parte dos estudantes que freqüentam as suas
aulas. Mas isso parece ser muito pouco para uma disciplina que é
reputada como fundamental para a formação dos jovens. Um
ensino de filosofia que não pressupõe atividades que priorizem
a problematização, a crítica e a investigação
por parte dos estudantes, contribui para a concepção que
vê na escola uma instituição onde predominam o treinamento
e a reprodução do conhecimento já constituído.
Esquece-se que o ensino não é a mera reprodução
de teorias e técnicas.
O professor de filosofia deve assumir o compromisso de fazer da atividade
de sala de aula uma atividade propriamente filosófica, isto é,
de criação de acontecimentos filosóficos. Também
deve reconhecer a complexidade da disciplina, as exigências e as
limitações inerentes ao seu ensino. Pois somente desse modo
é possível que as investidas filosóficas dêem
conta de alguns aspectos que compõem a formação dos
jovens, fazendo com que as práticas que gravitam em torno das banalidades
cotidianas sejam transformadas em práticas pautadas na criatividade.
Certamente é difícil romper com as práticas que são
o reflexo imediato da condição a qual foi relegada tanto
a filosofia quanto o seu ensino no seio da cultura escolar brasileira.
A ausência da filosofia, o seu esquecimento por parte da sociedade,
deu origem a um outro esquecimento, este por parte daqueles que gravitam
em torno da filosofia, qual seja, o esquecimento do caráter criativo
do fazer filosófico.
Ora, esquecer que a atividade filosófica é uma atividade
de criação, é esquecer da importância que a
leitura tem na formação dos jovens. O professor de filosofia
não pode reduzir a atividade de leitura à atividade de organização
de certos conteúdos que favoreçam o aprendizado dos estudantes.
Pois deste modo a leitura torna-se uma atividade estéril, uma atividade
na qual impera a capacidade explicativa do professor, cabendo ao estudante
ouvir e reconhecer aquilo que o texto apresenta. A leitura em filosofia
não pode ser equivalente a um certo domínio que o professor
deve ter para explicar as questões contidas num texto.
A ênfase nesse tipo de abordagem da leitura acaba por reduzir a
mesma a uma capacidade teórica que o professor precisa ter para
explicar determinado tema em consonância com o rigor filosófico
da academia. Com isso não queremos dizer que não seja importante
para um professor de filosofia o domínio dos conteúdos filosóficos.
Contudo, qualquer posição que promove uma redução
da leitura a um “saber explicar”, atrelado ao rigor com que
a questão é tratada por especialistas, acaba por pensá-la
como uma habilidade, cuja aquisição e significado permanecem
obscuros.
Ao propormos que a leitura seja reconhecida como uma atividade intrínseca
à filosofia, não podemos nos esquecer de duas importantes
questões: A primeira consiste em reconhecer que o ensino em filosofia
se pauta por atividades nas quais os estudantes aprendem a ler filosoficamente;
a segunda consiste em também reconhecer que o professor que implementa
uma tal atividade, também ele precisa ter uma teoria sobre a leitura
em filosofia. Uma vez observadas essas duas questões, talvez seja
possível restituir à leitura o papel que tem em filosofia,
qual seja, a de ser uma atividade na qual o estabelecimento de problemas
dá origem a novos conceitos.
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